26/07/2010

Dormir não bastava

Entrou no apartamento e não acendeu a luz. Caminhou em linha reta através da sala esquivando-se por intuição da quina do sofá e da aresta da mesa de vidro. Quando o tapete tocou a ponta do salto, deixou a bolsa cair; veio ruído da queda; era a poltrona maior, três lugares, à esquerda. Um facho de luz atravessou a vidraça e abriu um clarão no centro da sala, subiu no rumo do teto enquanto desvelava a existência da parede branca e da abertura retangular sem portal; fez o caminho inverso e desapareceu junto ao barulho abafado do motor do carro. Penumbra. Ela estendeu os braços até os dedos alcançarem algo firme; pôs-se a tatear as duas paredes laterais enquanto caminhava corredor adentro. Um, dois, três, quatro passos. Parou, tocou a reentrância da porta à direita. Esfregou a superfície de madeira com a palma da mão enquanto traçava pequenos círculos irregulares e incompletos. Rastreava a maçaneta revestida de protuberâncias; ao encontrar, envolveu-a entre os dedos; mas não forçou. Soltou, resvalou a mão no portal, reconheceu a parede, voltou a caminhar. Um, dois, três: o som do bico do sapato ao bater na porta no quarto semi-aberta. Empurrou, deu dois passos pra frente, tirou o sapato e se jogou na cama, de bruços; começou a se mexer, se enroscou no edredom como se roubasse um abraço e sentiu cheiro de amaciante; virou de lado, dobrou os joelhos, encolhida. Tinha sede de ar; puxou profundamente; na hora de soltar, abriu a boca e sentiu correr através das gengivas, entre os dentes, pelos cantos dos lábios, esvaziava os pulmões. Três vezes: cheio, depois vazio. Retina quase acostumada a escuridão: identificou o guarda-roupas, às portas abertas, casacos imóveis sem  partículas de uma festa tediosa e enfumaçada. Puxou o ar, soltou. Trouxe o travesseiro para o peito e abraçou, e abraçou bem forte. Juntou os pés, esfregou um no outro. Prendeu o ar. Jogou o rosto sobre o travesseiro e prendeu. Prendeu o ar, prendeu o travesseiro no rosto, apertou até seus olhos começarem a doer. Não dormiu; dormir não bastava.

20/07/2010

Foi isso

Ela disse que queria caminhar. Eu disse por que não. Andamos por duas horas seguidas.  Mas foi ao parar que desconfiei: ela precisava deixar alguma coisa pra trás. Não era uma rua ou qualquer das casas de telhado coberto de limo; o barulho da multidão em festa; uma paisagem específica no céu. Ela queria deixar alguma coisa pra trás, uma espécie de peso, o peso de alguma coisa que começa e acaba mas não vai embora, por isso a gente se afasta, pra longe; mas não tive coragem de perguntar, por isso hesitei: três, quatro, cinco vezes pela mesma rua, esquina, quarteirão; eu a seguia, atento as palavras  dela; não tanto quanto à boca. Ela, que movia as pernas por intuição, a intuição confusa de que diante da possibilidade do novo é preciso se livrar das sobras, do resto, do já vivido,  desse antes petrificado dentro da gente. Ela, que caminhava por pura necessidade de abrir um mundo distinto, sem saber pra onde; como se fugisse de si mesma pra se encontrar livre, diante de mim, na próxima esquina.

Foi isso.




08/07/2010

"Follow me to nowhere"


Não sei onde estava com a cabeça que me esqueci do disco novo do Crystal Castles , intitulado Crystal Castles II (2010).  O álbum é vibrante, criativo, tosco, inteligente, com vibe e sem vibe.  Destaque pra três faixas: Celestica, Bird e Not in love.
 
Quando ouço uma banda criativa, em primeiro álbum,  longo penso: ou vão gravar o mesmo álbum pra sempre, fazer cover de si mesmo(Coldplay), numa eterna repetição, ou vão tentar reconstruir seu estilo a fim de que o segundo álbum cause a mesma sensação de originalidade que o primeiro; mas isso não é fácil.  É a tal síndrome de segundo disco. Bom, a meu ver, Ethan Kath e a vocalista Alice Glass não tomaram conhecimento dessa tal síndrome.





1 Fainting Spells 2:43
2 Celestica 3:50
3 Doe Deer 1:38
4 Baptism 4:13
5 Year Of Silence 4:54
6 Empathy 4:11
7 Suffocation 4:02
8 Violent Dreams 4:36
9 Vietnam 5:09
10 Birds 2:31
11 Pap Smear 3:43
12 Not In Love 3:33
13 Intimate 4:45
14 I Am Made Of Chalk 3:09