15/12/2011

três corações

Foi num sábado.

E sábado, além da cerveja, da cachaça, da travessa de torresmo ou de mandioca, havia o olhar de esperança no rumo do ponto de ônibus, na ponta da praça. 

Esperança de que aparecesse alguma mulher diferente daquela meia dúzia de mulheres que a gente já tinha decorado todas as pintas e dobrinhas das costelas. Diferente dessas meninas que a gente viu correr de nariz escorrendo e pés descalços. Tomar bomba em matemática na sétima série, cair de bicicleta e vomitar de fora da boate. Ser coroada na igreja, tocar lira na Fanfarra, empelotadas e bocejando nos pelotões de Sete de Setembro. 

Primeira comunhão, primeiro beijo. 

E trocar o perfume Thaty por alguma fragrância Boticário. Às vezes, se casar e se separar. Parir e tirar filhos. Ir embora cursar faculdade nalgum lugar distante. Algumas voltavam formadas, ou com o maridão obscuro ao volante do carro de vidros fechados. Outras, vinham sozinhas empunhado o queixo contra vento venci na vida e vocês ainda estão aqui nessa vidinha male ou meno?. A maioria, claro, sumiu sem dar explicação, como tudo nessa vida.

Mas acontece que essas mulheres, que a gente nunca deixou de chamar de meninas (mesmo quando fala mulheres), são quase nossas irmãs. Sabemos tudo sobre elas. Elas sabem tudo sobre a gente. 

Não dá liga. 

Restava esperar. A ponta da praça. Encarar aquele ônibus à espera de um novo messias de saia.


***


02/12/2011

Três ou quatro pontos sobre "A árvore da vida"





1) A árvore da vida (The Tree of Life, 2011), de Terrence Malick, é um filme que dialoga diretamente com o livro de Jó. Já na epígrafe, nos deparamos com um recorte do cap. 38. O cap. 38, é composto por um longo poema, é a primeira resposta de Deus a Jó. Até ali, Jó está emparedado no silêncio de Deus, com o corpo cheio de feridas, indagado pela mulher: “Persistes ainda em tua integridade?”. E Deus calado. Mudo. Indiferente. A postura de Jó diante do sofrimento é a contemplação: se aceitamos o bem que Deus nos dá, por que não deveríamos aceitar o mal? (Deus oferta o mal?) Todavia, quando finalmente vem a resposta de Deus, composta por uma série de perguntas, longe de esclarecer a Jó sobre a razão de seu sofrimento (sobre a questão ontológica do sofrimento no mundo), a resposta desvela um mistério ainda maior. Um abismo que aponta para insignificância da existência humana, do estar no mundo. E nesse ponto, é Jó quem se cala. Sem sombra de dúvidas, um dos textos mais misteriosos, belos e fascinante das escrituras.




2) As cenas iniciais do filme de Malick tratam de duas vias para fruir a vida. O caminho da Graça e o caminho da Natureza. O caminho da Graça é o caminho da contemplação, da suspensão dos juízos, da fé. Já o caminho da Natureza, é o caminho da estética, dos prazeres. Essa questão retorna no sermão do pastor (ou padre). O pastor explana sobre Jó. Fala como o sacrifício próprio, o sofrimento, a retidão de caráter, a integridade, não evitam nada. Nada nos salva da desgraça. Ela sempre esteve aí e sempre vai estar. E mesmo Jó, que era o mais justo dos servos de Deus, não conseguiu evitar que a desgraça caísse sobre sua vida, de uma hora para outra. E sem razão. Sem um telos, sem finalidade nenhuma. Tentar viver no caminho da Graça, de modo algum, evita que a Natureza (matéria cega, a finitude, a desgraça), nos esmague de uma hora para outra.




3) Tudo vai acabar, não importa o que você faça ou como tente evitar. Não temos para onde fugir. É disso que o padre nos fala (nos lembra). Acho que, em certa medida, o padre aponta para visão de Kierkegaard. Não dá para ancorar a existência na fruição estética, inventariar prazeres, porque essas coisas são efêmeras. Tampouco dá para ancorar-se em valores morais, no dever para com as ideias gerais. A única saída é saltar no Absurdo, afinar o coração no eterno. A transcendência.




4) Eu lhe dei um murro na cara sem motivo. O que mais agradou no filme (além do uso fabuloso dos monólogos, da fotografia exuberante, da narrativa fragmentada), é a possibilidade que Malick nos dá de pensar o laço entre pai e filho (Por que ele nos machuca, o nosso pai?), em relação aos laços das personagens com Deus (Onde estava tu?). É como se a paternidade fosse um castigo a ser espalhado.




5) De resto, penso que: se em Melancholia (Lars von Trier, 2011) a constatação da existência como mal aponta para o desaparecimento como única saída viável, em A árvore da vida a constatação é: o homem não é a causa (única causa) do mal e do sofrimento (uma ideia mais ou menos cristalizada). Se existe algo de bom no mundo (a Natureza, Deus, o Universo são indiferentes e fechados em si mesmos), o homem é a única causa desse bem. Precário, frágil. E fadado ao fracasso, claro.