20/08/2012

A arte de encontrar uma vaga para estacionar



"Só tinha se dado conta naquele momento de que encontrar uma vaga para estacionar o carro seria um problema. Durante os vinte e cinco minutos seguintes, Louis e Renée passaram pelo prédio de Peter Stoorhuys oito vezes. O trânsito estava intenso e anormal, os carros se arrastando pelos quarteirões aburguesados num cakewall invertido, todos esperando que um espaço vagasse. Louis dava voltas e mais voltas, a cada uma delas se afastando cada vez mais do prédio de Peter. Ignorava vagas que lhe pareciam distantes demais e depois, quando voltava a elas com uma ideia mais bem informada de seu valor, elas já tinham sido ocupadas. (Era como aprender da forma mais difícil em que momentos comprar ações da Bolsa.) Tentava fazer o carro entrar em vagas que ele já sabia que eram pequenas demais. Metia o pé no freio quando passava em frente a hidrantes e em seguida metia o pé no acelerador. Furou sinais vermelhos. E quando, mais perto das dez horas do que das nove, encontrou uma vaga livre a um quarteirão do prédio de Peter, quase ficou desconfiado demais para pegá-la. Três carros na frente dele haviam passado por ela com o júbilo dos insiders. Não parecia haver nenhum hidrante, nem entrada de garagem, nem placa informando ser a vaga exclusiva do morador, e, embora devesse ter acabado de aparecer, o espaço de alguma forma não parecia fresco. Louis entrou de ré na vaga, franzindo o cenho ressabiado, como um tigre na floresta faria se encontrasse uma picanha crua embrulhada em papel encerrado. Seu quadril estava molhado do suor que tinha escorrido de suas axilas.


'Parecia boa a festa lá' ".


Jonathan Franzen, Tremor. Tradução: Sonia Morreira. Companhia das Letras, 2012. p. 136-137

18/08/2012

"pó de ferrugem"


Ashes, 1894. Edvard Munch


"Um ano depois, mudam-se para um sobradinho na periferia da cidade. Com 54 metros quadrados, é a miniatura de uma casa, o que de certa forma misteriosa lhe agrada. Num dos quartos minúsculos do segundo andar, faz uma estante primitiva que cobre a parede inteira e cujas tábuas de araucária, lixadas, pintadas e repintadas, montadas, desmontadas e refeitas, seguirão por toda a sua vida, numa transformação perpétua. Ele gosta de mexer com madeira. (Sonha às vezes com um espaço de garagem, uma bancada, um torno, uma minimarcenaria que jamais terá na vida.) E a altura e largura da estante serão o termômetro da melhora de seu padrão de vida, nas mudanças seguintes, pela parede a mais que sobrar, para os lados e para cima, O preço do sobrado era convidativo; a prestação, menos que um aluguel; a entrada, o cheque que recebeu por um trabalho avulso na área das letras. Tudo parece fácil. Deram o sinal num sábado à tarde; na terça seguinte, ao revisitar o sobradinho, descobre que há uma serra­ria próxima e que o ruído das máquinas, um zumbido inextinguível, acompanhará cada linha que escrever. À noite, uma mulher nua e louca, loira como o pecado, impressionante sob o luar, às vezes sai à rua — de chão batido, cortando terrenos baldios, estão no limite do mundo — gritando as mesmas fra­ses ininteligíveis, até que alguém venha buscá-la com um roupão para protegê-la, e ela volte em transe, na sua loucura cir­cular. Ele vê aquilo das sombras e nas sombras, e transforma mentalmente a imagem num quadro de Münch, para se defender — mas o metal histérico da voz de araponga permanece horas no ar, ressoando. Uma manhã descobre que lhe roubaram o botijão de gás, que ficava no pequeno pátio dos fundos, cortando a mangueirinha que atravessava a parede. Começa a comprar cadeados, correntes, grades. Manda erguer um portão de ferro. No espaço da frente, um quadrado de dois por dois metros, que poderia ser um jardim, planta pepi­no, girassol, salsinha, rabanete. Uma tarde uma senhora para diante dele e diz que admira quem aproveita o menor terreno para produzir alguma coisa. Ele agradece — gostou de ouvir aquilo. Ele se sente — ou se faz de — um teimoso personagem de William Faulkner, obedecendo a algum chamado an­cestral que não compreende mas que precisa levar adiante por alguma força imemorial que está além da razão. É uma bela imagem literária, mas isso não é ele. Sente-se em falso; ainda lhe deforma o senso o velho cordão umbilical do seu imaginário da infância, o pai que ele não teve, com o sonho rousseauniano — afastar-se dessa merda de cidade, refugiar-se fora do sistema, viver no mundo da lua, estabelecer as próprias regras, dar as costas à História. É difícil — as coisas parece que vão perdendo o controle. Uma fase atormentada. A mulher tem de pegar dois ônibus para ir ao trabalho, que fica no outro lado da cidade. Por que não pensou nisso antes? Ela não queria comprar o sobrado; ele que insistiu, obtuso e sorridente. Ele cuida da casa, dá aulas particulares, faz revisão de textos e teses. Para dizer onde mora, tem de desenhar um mapa, assinalar placas indicativas, setas, nomes de ruas que ninguém conhece. A ruazinha do sobrado tem nome de um poeta medíocre: Luiz Delfino. Por um bom tempo não tem telefone. Autista, debruça-se sobre o novo romance que escreve já há alguns meses, Trapo, indiferente ao mundo, enquanto não consegue publicar o anterior. Vai pondo na ga­veta as cartas de recusa das editoras e engolindo em seco as derrotas dos concursos literários, mas nada disso o incomo­da de fato. É como se uma parte dele negasse o confronto desigual — melhor baixar a cabeça, discreto, e tentar uma outra esquina do labirinto. O mundo é muito mais forte, impressionante e poderoso do que ele. A medida da província entranha-se na sua alma. Talvez fosse o momento de reler Nietzsche, começar de novo, mas ele não tem mais tempo. Ouve pela primeira vez rodar a engrenagem poderosa do tem­po, e um discreto pó de ferrugem já transparece nos objetos que toca. Finalmente, o tempo começa a passar". 

Cristovão Tezza, O filho eterno. 13ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2012.