05/12/2014

Sexta-feira

O siso estava fraturado e latejando e a dor se espalhava pela fileira de dentes. Não dava pra saber de onde vinha. Doses cavalares de analgésicos e anti-inflamatórios não faziam mais efeito. Às vezes vinha uma onda aguda como se uma agulha incandescente transpassasse o dente até o osso. Vai ter que extrair, disse o doutor. Eu disse que tudo bem. Duzentos e oitenta, ele disse. Depois completou: Até duas vezes, se quiser. Sem problemas, eu disse. Tomei um comprimido e depois me sentei na sala de espera. Ia demorar pelo menos uns vinte minutos pra realizar a extração. Tinha uma fonte d’água borbulhando embaixo da escada, logo atrás da mesa da secretária. Eu me levantei e fui dar uma olhada. Não tinha mais nada pra fazer. O poço artificial era bem realista. Revestido de pedras escuras e com plantas espalhadas de um lado a outro. E as carpas amarelas nadando de um lado a outro. A imagem bruxuleante de rabos serpenteando vermelhos e as bocas num abre e fecha igual velhos banguelas mascando a própria língua.

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O ônibus cruzou a Av. Santa Catarina e entrou na Alba. Era um desses dias secos e quentes em que a camisa gruda feito lesma nas costas e o Sistema Cantareira cai dois pontos e você não aguenta mais engolir saliva na inútil expectativa de dar um jeito na boca seca. Lá fora o céu oferecia um azul embaçado e pálido. Nenhuma nuvem. Era sexta-feira. A gente tinha pensado e descer pro litoral, mas eu precisava entregar um trabalho. E também já tinha usado todas as faltas daquela matéria. Na sexta-feira as ruas sempre ficam cheias de churrasqueiras e homens com latinha de cerveja e fumando cigarros desses maços de nomes indecifráveis. Alguns de uniforme e outros nos trajes mais neutros. Nalgumas vezes aparece um chapéu, sem qualquer retórica de modismo, uma noção de elegância que não existe mais. O fato é que bem no pé do morro um córrego negro segue seu rumo, a despeito do lixo brotando de todos os lados. E então vem aquele cheiro de esgoto e o cheiro suculento de carne fresca na brasa. Tudo ao mesmo tempo. É difícil saber o que sentir. Mas num desses corredores, onde ainda despencam cartazes de políticos da eleição municipal de 2012, misturados com as eleições deste ano, crianças correm livres. Na rua. Ao redor de carcaças de carros e motos. Descalças. Sem camisa. E ao longo do morro, depois da ponte, mulheres sentadas no passeio, com cadeiras na porta de casa. Janelas abertas, portas arreganhadas. Nada de grades. E bebês de colo engatinhado na calçada. A liberdade de um parque dinamarquês ou de cidade de interior.

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Num farol antes da avenida que dá para o metrô, há uma oficina de eletrônicos. TV’s de tubo, Microsystem CEE e até um toca-discos. Comfortably Numb está tocando tão alto que abafa o barulho do motor do ônibus e os ruídos da cidade. Dois homens conversam aos gritos e rindo e cada um com uma latinha de Antarctica na mão. As telas atrás deles estão todas sem vida. Os homens parecem companheiros de longa data, como toda dupla de bêbados. Parecem estar naquele ponto da conversa onde se alcança algum tipo de grande iluminação sobre um fato mais ou menos obscuro da vida: nostalgia, morte, amor, a extinção das fitas K7.

Mas a gente sabe como isso termina. 

E sexta, hein, Roberto?, diz um deles, quando se encontram na segunda. 

O outro ainda se esforça, mas sabe que é inevitável: Não lembro de nada.

Nem eu.