29/07/2011

Eu preciso aprender muitas coisas sobre fogueiras



Para o Elvis, in memoriam


Quem já acampou comigo, conhece bem essa minha mania. Tenho uma preocupação excessiva com a fogueira. Mas essa atração pelo fogo não é de hoje. Conta minha mãe que, quando eu tinha uns três anos e pouco, quase meti fogo na casa. As prateleiras da cozinha eram forradas com jornal, e eu, miúdo, saquei um fósforo que tava de bobeira em cima da mesa e tasquei fogo na pontinha de uma folha, lá no pé da prateleira. Quando minha mãe entrou na cozinha, eu, aquele pingo de gente, tava com a caixa de fósforo na mão, olhinhos arregalados [sereno], contemplando as chamas que iam lambendo as prateleiras com tudo, de cima para baixo. Eu não lembro do caso, mas deve ter sido uma beleza de fogo. 

Talvez seja culpa dos astros. Na astrologia, eu sou praticamente um dragão industrial, revestido de trempes, cuspindo labaredas para tudo que é canto. Meu elemento astrológico [adivinhe] é o fogo, tanto do signo como no ascendente. Meu astro regente é o sol. E até na filosofia, entre os pré-socráticos, embora goste bastante do Anaximandro, eu sempre fui meio fascinado com os fragmentos do velho Heráclito. 

Mas voltemos ao acampamento. Enquanto alguns são obcecados pela montagem metódica da barraca, outros preocupados com a comida, o meu negócio é a fogueira (os motivos parecem óbvios). A primeira coisa que eu faço é caminhar pelo local, seja o alto de uma serra, beira de rio ou ribeirão, juntando galhos e gravetos, troncos velhos, amontoando folhas secas. Vou ajeitando tudo de maneira exemplar num cantinho. Depois vou montando a fogueira com calma e bastante cuidado. 

Você precisa saber que não é apenas jogar os galhos uns sobre os outros. Você precisa deixar espaços entre os troncos maiores. O ar, o comburente, precisa circular de maneira adequada. Tem que ir forrando os galhos com folhas secas, trançando a coisa da melhor maneira possível. Sem deixar lacunas em excesso, sem abafar demais. É meio como escrever. Tem muito da escritura na montagem de uma fogueira. Você escolhe as palavras como escolhe os troncos, e nem sempre o tronco, galho, graveto, é aquele que você esperava encontrar. Dificilmente você vai encontrar uma lenha virgem já pronta para a fogueira. Você precisa partir os galhos, diminuir o tamanho. Precisa ver se o tronco não está verde. Precisa arquitetar a montagem, escolher o lugar certo e deixar uma boa reserva de lenha para alimentar o fogo de tempos em tempos. E mesmo que a condição não seja ideal, e nunca é ideal, você usa o que tem. No fim das contas, você sabe, o importante é construir uma fogueira que funcione da forma que tem que funcionar. Uma fogueira capaz de aquecer e iluminar durante a noite, o tempo que for necessário. E não pode queimar rápido demais. O fogo precisa equilibrar consistência e vigor; se fraquejar, as chamas serão engolidas pelo sereno, soterradas silenciosamente pela escuridão. 

*** 

Choveu a semana inteira. E quando estiou, o Elvis e eu, juntamos as coisas e fomos acampar. Eu achava que era impossível acender uma fogueira com a lenha encharcada daquele jeito, mas o Elvis disse que era fácil, coisa simples, bastava um pouco de querosene. Tá certo, eu disse. 

O querosene tava numa dessas garrafinhas descartáveis. O Elvis despejou cuidadosamente sobre uns galhos e gravetos, e riscou o isqueiro. Mas a coisa não funcionou de imediato. Tava tudo muito encharcado. Ele persistiu tentando, resmungando, soprando, riscando o isqueiro. Não deu certo. 

“Tá danado”, ele disse. 

As tentativas falhas prosseguiram, e eu já ia me acostumando com a ideia de passar a noite sem fogueira. As sombras de uma noite fria e silenciosa tomavam conta da minha cabeça. Mas quando tudo parecia perdido, o Elvis levantou, foi até suas coisas, e arrancou uma lasca do colchão. Eu não entendi.

“Agora quero ver se pega ou não pega”, ele disse. 

Molhou aquilo com querosene, riscou o isqueiro, e rapidamente as chamas da lasca de colchão, exalando uma fumacinha preta, enxugaram os gravetos. Secos, os gravetos começaram a queimar e enxugar outros gravetos. E quando já tinha uma quantidade boa, o Elvis arrastou um tronco maior, banhou de querosene e ficou olhando. O tronco levou um certo tempo para enxugar, mas quando enxugou, já era. 

À noite, enquanto a gente bebia e conversava, de frente do fogo que subia firme, vigoroso e imponente, virei para o Elvis e soltei uma piadinha para quebrar o silêncio:

"Eu preciso aprender muitas coisas sobre fogueiras".

Sem desviar os olhos do fogo, ele respondeu:

"Eu preciso aprender muitas coisas sobre muitas coisas".

As risadas foram engolidas pelo silêncio da noite que avançava fria e úmida, forrada pelo barulho do rio escorrendo como sempre, sobre as pedras; o barulho de estalos secos na fogueira, as chamas lambendo troncos e galhos, reduzindo tudo as cinzas.


27/07/2011

Oswaldo França Júnior



setembro de 1959.


O escritor Joca Terron escreveu uma coluna sobre os escritores e a grana, no Blog da Cia das Letras, que me lembrou uma entrevista do Oswaldo França Júnior (foto), um escritor mineiro que esteve na crista da onda (sic), lá pelos anos 70/80. Ganhou um dos mais importantes prêmios literários da época (o Prêmio Walmap, uns dos jurados era Guimarães Rosa). Seus livros foram traduzidos na França, EUA, Alemanha, entre outros países. Gosto bastante de dois livros do Oswaldo França Júnior, Os dois irmãos e As laranjas iguais. Mas seu livro mais famoso é Jorge, um brasileiro, que inspirou o seriado Carga pesada e foi adaptado para o cinema. Oswaldo França Júnior faleceu num acidente de carro, em 1989. 

Antes de se enveredar pela escrita, Oswaldo França Júnior foi piloto da FAB (inclusive, quase matou o Brizola, naquele incidente dos militares em Porto Alegre, em 1961). Depois que deixou a FAB, em razão do Golpe de 64, Oswaldo França Júnior vinha pulando de cidade em cidade e de emprego em emprego. Fez de tudo um pouco, vendedor de carros usados, corretor de imóveis e até pipoqueiro. O que ele conta neste trecho da entrevista, além do dinheiro, se refere a escrita e publicação do seu primeiro livro, O viúvo, graças a uma mentira que ele pregou no Rubem Braga.

"Eu gosto demais do Rubem Braga e do que ele escreve. Aquilo é o que julgo escrever bem. Quem melhor escreve em língua portuguesa é o Rubem Braga. Eu trouxe uns contos numa pasta e liguei para ele. Olhei o número do telefone no catálogo, e falei que precisava falar com ele. Eu me lembro que ele perguntou: "Qual é o assunto?" Eu fiquei com vergonha de dizer que queria que ele lesse alguns contos meus, aí falei: "olha, eu não posso falar". Ele respondeu: "Tá difícil conversamos, eu não te conheço". Eu respondi: "Não, eu não posso falar por telefone, mas é um assunto do seu interesse." Naquela época existia muita censura por telefone. Ele respondeu: "Está bem, venha até minha casa." 

Fui até lá, bati na porta, ele mesmo abriu, eu eu disse que escrevia contos e gostaria de saber se eram publicáveis. Ele olhou para mim e pediu que escrevesse meu endereço no pacote. Uma semana depois, recebi uma carta dele, dizendo que havia lido os contos, gostado, e quando eu voltasse ao Rio que o procurasse. Quando voltamos a nos encontrar, ele disse: "olha, li e gostei. Por coincidência estou montando uma editora, inclusive eu estava disposto a editar este seu livro, mas mostrei-o aos meus companheiros e surgiu um problema: ninguém te conhece. Se você fosse um cantor de rádio, um artista de televisão, dava para editar, mas você é um desconhecido, e isso é arriscado. Nos precisamos de um retorno rápido de dinheiro." E ele ainda me perguntou: "você tem dinheiro para pagar a edição?" Eu respondi: "Mas como se eu tenho dinheiro? Eu quero editar é para ganhar dinheiro." E ele respondeu: "Ah, então é difícil. Ainda mais por ser conto, se fosse romance eu teria coragem de editar." 

Aí eu menti para ele: "Eu tenho um romance." E ele: "Então porque não trouxe?" Eu respondi: "Porque ele ainda precisa de uns reparos." 

Ele disse para mim: "Então você vai para casa, faz as correções e traz para eu ler." Eu disse a ele: "Olha, vai demorar um pouco, são muitas correções." Bom, vendi os carros que estavam em minha mão, voltei a BH, me tranquei no quarto e avisei a minha mulher: "Não azucrina minha cabeça, não deixa o menino fazer bagunça, porque eu vou fazer um trabalho importante." Eu fui escrever o romance. Escrevi a estória de um vizinho meu que tinha perdido a mulher e ficado viúvo.

Você mandou o romance ao Rubem Braga?

Mandei. E ele me telegrafou que ia editar. Depois perdi contato com ele. Eu estava numa luta muito grande para sobreviver. Mudando muito. Um dia, olho para a vitrine de uma livraria e levo um susto: meu livro estava lá. 

Aí o dinheiro começou a aparecer?

Que dinheiro?"

____


Aliás, há uma edição especial, de outubro de 2009, muito bem feita, sobre o Oswaldo França Júnior. Bem legal mesmo. PDF.

E algumas fotos legais, como essa que abre o post, no Acervo de Escritores Mineiros.

26/07/2011

“Enfim, contanto, etc. É conforme".

Morei por um ano e pouco numa casa que não tinha sol. Era barato e mais ou menos bem localizado. A casa, antes um escritório, ficava dentro de um galpão, um estacionamento. A estrutura de aço corria de fora à fora, sobre os carros, e sustentava duas fileiras paralelas de kitinetes coloridos. Pequenos. Coloridos. Pareciam de brinquedo. Como se uma falsa vila holandesa tivesse se cruzado com um estacionamento. Era mais ou menos isso. 

A casa (um sobrado dentro do estacionamento), antes um escritório, era diferente dos kitinetes. Ficava no fundo, sobre a casa do dono do lugar. Tinha uma escada à esquerda, de ardósias tão largas que encapariam uma mesa sem qualquer dificuldade. Já não bastasse, era excessivamente íngreme. Não foram poucas as vezes que cheguei no topo da escada já respirando diferente. E foi por lá que eu subi, estranhando a largura dos degraus, as três portas de entrada da casa; e sem dar importância a ausência do sol. 

Isso acontece em algum mês perdido no primeiro semestre de 2004. Foi lá que escrevi a primeira versão do meu primeiro livro, num caderno azul, depois no 486 dx4, sem modem, 8 megas de Ram, que não rodava mp3 e nem emuladores do super NES, embora rodasse muito bem emuladores de Mega Drive (Street Of Rage), do Atari, (River Raid e Pac-Man) e Warcraf II. E muitas vezes, vi a luz do sol escorregar nas duas grandes janelas que davam do quarto pra cozinha, e chegar fraca e apagada, filtrada por uma claraboia estreita, rente a uma parede do outro lado, que eu nunca soube o que era. E tinha a impressora matricial que cuspia os trabalhos, e as duas caixinha de som ressoando um CD repetidamente, às vezes KID A do Radiohead. Às vezes Amnesic, às vezes uma coletânea do Travis, Joy Division, The Cure, ou o magnífico Turn on the bright lights ( PDA aos 3':09'' é a mais bela trilha para uma redenção inexistente). Era mais ou menos isso. 

E agora eu poderia começar a frase evocando adjetivos de autoconsimeração velada. Idealizar, simplesmente, tipo: “só as coisas boas ficam” no fim das contas. Que tudo faz parte do vivido, que o passado nos define, que faz parte da minha história, ou qualquer coisa assim. É um bom momento pra dizer isso, evocar obviedades diante de tanto afastamento. É fácil de fazer. É tudo tão longe, o estacionamento, a escada, a falta de sol, a falta de conversa, o descuidar sistemático. Tão distante que não dá mais pra distinguir o que aconteceu de verdade, daquilo é a mais pura distorção. Não dá pra diferenciar os fatos brutos dos fatos já esmagados e distorcidos defensivamente através do filtro da memória. Fica tudo maquiado. Um bom momento pra sacar uns minutos de sabedoria e dizer que “nenhuma experiência é gratuita”. Mas não. Seria como passar a desempenadeira numa parede completamente seca, dura, velha. E se eu topasse com um pedreiro passando uma desempenadeira numa parede seca e velha, arrancando a tinta e o reboco, a cena me pareceria, no mínimo, doentia. Memória é ficção.

O fato é que a falta de sol é o contorno que ficou. daquela época, da estranha época da casa sem sol. É mais ou menos isso. 

A certa altura, de um conto meu que saiu na Cult em 2009, está escrito: “escrevo essas coisas porque não posso viver”. Olhando hoje, acho muito estranho ter escrito aquele rascunho do livro naquele lugar. Estranho no sentido de que o que me levou a escrever, na casa sem sol, apesar de tudo, para o bem ou para o mal, não foi outra coisa senão um desejo de afastamento defensivo e radical do contexto e de uma realidade que me soterrava, e que era incompreensível (e ainda é). Uma tentativa dúbia de compreender e me aprofundar e de fugir ao mesmo tempo. Ou seja, uma fabulação. Aquela velha fórmula, a arte existe porque a vida por si não basta.

Claro, é só uma impressão. A minha impressão. Não sei se você entende. 

Mas, tantos anos depois, quando ouvi uma amiga declamar os primeiros versos ("um pequeno sol de bolso",) do poema do Paulo Henriques Britto, senti até um arrepio. Tava em Porto Alegre, no Van Gogh, fechando a noite de um sábado. E na mesma hora me veio a ideia de batizar este blog com esse nome. Porque me lembrei imediatamente daquela casa, do estacionamento, da escada, da claraboia, da falta de sol, “Enfim, contanto, etc. É conforme", como diria Fabiano. 

Lembro que fiquei pedindo para ela declamar o poema toda hora, até que eu decorasse. E eu decorei. Cheguei em casa e batizei o blog. É mais ou menos isso.

Tô falando essas coisas porque nunca coloco coisas pessoais aqui, pelo menos não assim nesse tom intimista e honesto que geralmente é comum nos blogs por aí. O blog tá beirando 53 mil acessos, em um ano e pouco, e chegando a cerca de 300 acessos por dia. E eu não sei dizer o que isso significa. Acontece é que quase nunca falo diretamente com você, que vem aqui e me visita com frequência. Tem uns que passaram de leitores a mais chegados, colegas de letras. Outros, que eram comentadores frequentes, vieram e foram embora. Uns visitam e não voltam mais. Têm os que visitam e me mandam emails, textos, me mandam mensagens pelo facebook. E aqueles que ficam quietinhos, espiando. No mais, só queria agradecer a companhia, o interesse e a paciência de vocês. Prometo emitir mais opiniões sobre qualquer qualquer coisa, e continuar enquanto der: “Enfim, contanto, etc. É conforme".

Um abraço. 

“que não propriamente ilumina
mas durante seu percurso
dissipa a neblina” 




24/07/2011

"Ninguém me pediu para ser um escritor"

Carver, verão de 1969, by Gordon Lish
fonte: http://thisrecording.com 
ENTREVISTADOR

Em um artigo que você fez para The Book Review New York Times você mencionou uma história "muito entediante para falar aqui", sobre o motivo de você optar por escrever contos ao invés de romances. Você quer entrar nessa história agora?

CARVER

A história "muito entediante para falar", tem a ver com uma série de coisas que não são muito agradáveis ​​de falar. Eu comentei algumas dessas coisas no ensaio "Fires", que foi publicado pela Antaeus. Eu disse que um escritor é julgado pelo que escreve, e essa é a forma como deve ser. As circunstâncias da escrita são outra coisa, coisas extraliterárias. Ninguém me pediu para ser um escritor. Era difícil tentar sobreviver, pagar as contas, colocar comida na mesa e, ao mesmo tempo, pensar em mim como um escritor, me preocupar em aprender a escrever. Depois de anos trabalhando em empregos nojentos e criando filhos e tentando escrever, percebi que eu precisava escrever coisas que pudesse terminar em pouco tempo, coisas que davam para fazer mais rápido. Eu não poderia escrever um romance, porque não podia trabalhar por dois ou três anos em um único projeto. Eu precisava escrever algo que oferecesse algum tipo de recompensa imediata, e não no ano que vem, ou daqui a três anos. Por isso optei por escrever poemas e histórias curtas. Eu estava começando a ver que minha vida não era, digamos, que não era o que eu queria que fosse. Havia sempre um vagão cheio de frustração para lidar com - querer escrever e não ser capaz de encontrar o tempo ou o lugar apropriado. Eu costumava sentar no carro e tentava escrever algo com uma almofada no meu joelho. Isso foi quando meus filhos estavam na adolescência. Eu estava na casa dos vinte ou trinta e poucos anos. Estávamos ainda em estado de penúria, tivemos uma falência. Anos de trabalho duro para quase nada, exceto um carro velho, uma casa alugada, e novos credores nas costas. Foi deprimente, eu me sentia espiritualmente imobilizado. O álcool se tornou um problema. Eu mais ou menos desisti, joguei a toalha, passava o tempo todo bebendo demais. Em parte, é disso que eu falo quando falo "muito tedioso para falar".


Raymond Carver, The Art of Fiction n º 76, entrevistado por Mona Simpson e Lewis Buzbee. In: http://www.theparisreview.org

21/07/2011

Completamente vestido, apoiado em dois travesseiros.

Ole Andreson é um ex-pugilista sueco, peso pesado. Está deitado na cama, completamente vestido, apoiado em dois travesseiros, quando recebe o aviso de Nick Adams. 

"Eu estava no Harry’s – disse Nick, – e dois sujeitos entraram, amarraram a mim e ao cozinheiro, e disseram que iam matá-lo."

Ole Andreson mal olha para Nick. Não diz nada.

"Eles nos puseram na cozinha – continuou Nick. Eles iam atirar em você quando entrasse para jantar."

Ole Andreson permanece calado, fitando a parede. Até que diz: 

"Não há nada que eu possa fazer a respeito."

Nick insiste. Diz que Andreson poderia fazer alguma coisa, qualquer coisa, deixar a cidade, fugir para algum lugar. Mas não. Todas as sugestões de Nick são refutadas por Andreson, completamente vestido, o corpo maior que a cama, apoiado em dois travesseiros.

"O pior é que – disse ele (Andreson) , voltado para a parede – eu simplesmente não consigo me decidir a sair. Fiquei aqui o dia todo."

Completamente vestido, apoiado em dois travesseiros.
***


19/07/2011

feito bicho, sem sol, amuado

Você estica os dedos e a catraca suga seu bilhetinho como se tivesse fome desses bilhetinhos que custam dois e noventa. E você é um dos poucos que tem o bilhetinho, todo mundo têm um cartãozinho mágico que libera catracas de trens, ônibus, metrô, e deve até abrir portas de cofres, ou corações calejados por pancadas secas de indiferença e silêncio. Uma chave mágica. Você tem um único bilhetinho, são muitas catracas, muitos buraquinhos de sugar bilhetinhos. E talvez seja carência, a causar essa fissura libidinosa da catraca, ao engolir seu bilhetinho como se chupasse e dissolvesse o último fiapo de algodão doce do planeta. 

Nas catracas ao lado da sua, apenas o barulhinho indiferente de um cartão magnético, o baque da catraca que gira, os sapatos velozes de quem avança como se fugisse de alguma coisa. E todo mundo corre como se tivesse feito alguma merda, ou tivesse que evitar alguma dessas merdas inevitáveis. Daí a sensação de que tem porque tem alguma coisa muito louca acontecendo nalgum lugar. 

Mas não tem nada acontecendo. É só impressão. A sua impressão.

Seu bilhetinho desaparece e você está livre para empurrar. 

E você empurra. 

Mas não é agora que vem a frase (ou imagem) na sua cabeça. Há a fila, e você precisa manter-se à direita da escada como um caminhão carregado de areia na estrada (é uma regra), facilitar a passagem do cara que acordou dez minutos atrasado (por causa daquele filme), e a mulher que parou de conversinha com a vizinha na saída de casa (a filha do Seu Guilherme do 304 tá grávida), o menino que precisa chegar dez minutos mais cedo para ver a menina de cabelos amendoados (saltar do carro do pai e atravessar o portão da escola), e o cara que finalmente conseguiu uma boa entrevista de emprego e precisa chegar com tempo de sobra (porque não sabe muito bem onde é), toda uma legião de etcéteras subjectivos, com pressa, à sua esquerda, elevando ao dobro o movimento rumo ao fundo, onde a fila se dispersa em pequenas filas marcadas pela faixa amarela. 

Atrás da faixa amarela até soar o alarme, a porta mecânica se abre. 

Se a sorte estiver do seu lado, você poderá ficar de pé por duas estações, no máximo três. Senão, ficará de pé até o final. Mas não é esse o problema. 

Não há sol aqui. E talvez seja essa a causa do sono, cravando pés de ferro dentro dos olhos, que pesam, afundam de forma incontrolável, governados por algum tipo de maquinismo obscuro. E você não é o único. Todo mundo está meio sonolento ou cochilando, contaminado: o sonífero exalado da ausência de luz natural, à medida que o friccionar de trilhos, cabos, ferragens, se propagada num movimento que parece ir sempre no mesmo sentido.

É só impressão. A sua impressão.

Se você conseguir uma vaga para sentar-se, logo estará com o braço apoiado no vidro, formando um arco para apoiar a cabeça, grogue, meio-zen. Dissolvido.

Feito bicho, sem sol, amuado. Essa é (era) a frase na sua cabeça.

18/07/2011

"Quando as pessoas avisam que tão te dizendo a verdade"

"- Sabe o que é engraçado? - ele apoiava-se na parede. - Quando as pessoas avisam que tão te dizendo a verdade. - Escorregou o corpo para o chão. Sentou ao lado dela.

- Como assim?

- Por que ninguém te diz 'pra ser desonesto, eu...'? 'Na mentira, eu...', 'Mentirosamente, eu...'? As pessoas sinalizam a verdade - ele disse. - É como se a mentira fosse esperada, mas a verdade surpreendesse."

Luisa Geisler, Contos de Mentira, Record, 2011. p. 19

16/07/2011

Sermerssuaq



"Sermerssuaq tinha tanta força que conseguia levantar um caiaque com três dedos. Ela era capaz de matar uma foca só esmurrando sua cabeça. Conseguia rasgar em pedaços uma raposa ou uma lebre. Certa vez travou uma luta corpo a corpo com Qasordlanguaq, outra mulher muito poderosa, e surrou-a com tanta facilidade que no final comentou: “Essa pobre Qasordlanguaq não consegue nem vencer um de seus próprios piolhos”. Ela conseguia vencer a maioria dos homens e então lhes dizia: “Onde você estava quando fizeram a distribuição de testículos?”. Às vezes essa Sermerssuaq exibia o próprio clitóris. Ele era tão grande que a pele de uma raposa não podia cobri-lo por completo. Aja, e como se isso não bastasse, ela ainda era mãe de nove filhos!"

História inuíte In: Angela Carter, A menina do capuz vermelho e outras histórias de dar medoTradução de Luciano Vieira Machado. Penguin Companhia das Letras, 2011. p. 25

14/07/2011

"Como se sua opinião fosse um ato de Deus"

"Claro, podem bater na madeira: todos nós gostaríamos de ganhar mais dinheiro com menos trabalho. Mas trair os outros, virar crítico, fingir que sabe tudo, dar rasteiras em pessoas que tentam ganhar a vida tirando pele de língua de vitela, aparando gorduras de rins, e arrancando membranas de fígados… enquanto os críticos ficam sentados em seus escritórios limpos, digitando reclamações com belos dedos limpos… isso simplesmente não é direito.

Claro, é só a opinião dele. Mas aparece junto das notícias verdadeiras, como fome, assassinatos em série e terremotos, recebendo o mesmo grau de importância. E alguém reclamando porque a massa que pediu não estava bem al dente. Como se sua opinião fosse um ato de Deus."

Colocação de Produtos, Assombro, Chuck Palahniuk, Editora Rocco. 2007. Tradução: Paulo Reis. IN Complexo de Cassandra

12/07/2011

Radiohead - The King of Limbs (Live From The Basement)

Sem mais.



por aí

A Bruna Maria fez uma leitura muito generosa do meu livro, Inércia. aqui

Breviário de Salomão foi publicado no Portal Cronópios - aqui

A Revista Rapadura convidou alguns escritores, entre eles eu, para sondar o conceito de inspiração - aqui

***
É isso.

09/07/2011

a única questão importante

Se há uma questão que me arrebata, e me causa uma estranheza medonha, é a questão da existência do sofrimento. Chego a pensar, ingenuamente, talvez, que dentre tantas questões sem resposta, a questão do sofrimento é a mais sem sentido, logo, a que merece ser contemplada com maior generosidade e empenho. Afinal, por que sofremos?

Todo tipo de seita, culto, e os milhões de livros juntando poeira nas bibliotecas e os tratados de ciências humanas, artes, cachaça, literatura e as pílulas da felicidade, meditação e psicanálise e as religiões milenares foram erguidas e afundaram soterradas sobre essa questão, como num fosso de areia escorrendo desde sempre para nada. Das nuvens vem o fogo para nos purgar, sem motivo, da nossa própria deficiência e fraqueza. As vestes rasgadas de Jó, o sangue que escorre sem razão e as feridas que ardem sem motivo ruídas por vermes, um grito sôfrego emparedado no absoluto silêncio de Deus. Nações e cidades desaparecem do mapa como se nunca tivessem existido. Deuses desceram do céu, caminharam entre nós, se reergueram dos mortos espalhando a Boa Nova e falharam feito crianças mimadas. O discurso prossegue vazando nas catedrais vazias como o vento que passa pela janela aberta. E nós, afundados na realidade, implorando pela benção dos santos, pela luz da razão, pela fruição visceral dos instintos e prazeres, por verdades provisórias, ponderação, honra, dignidade, continuamos falhando de forma exemplar. Resta a contemplação, e mais nada.

07/07/2011

amor é onde nós nunca estivemos: [n°4 cansaço ]

Com uma das mãos arranco seu vestido, num gesto que transita entre a brusquidão e o cuidado. Beijo seus pés, panturrilhas, e as coxas: como se esculpisse seu corpo nossos corpos se roçam abruptos e ritmados, cruzam-se os membros arrancando o lençol sem consciência, empurrando os cobertores para o chão onde descansam também nossas roupas abandonadas, como que para sempre, feito trapos de repente sentenciados obsoletos. E a luz de um céu laranja ganhando força cai sobre o leito como se nos abençoasse. E a nudez das suas costas cheias de pintas é alguma coisa como a palidez magnetizada da Lua irradiando silêncio, com o ar revestido da mudez que diz, nessa linguagem concreta, ancestral e originária, da contemplação desmedida que me amarra à deriva como se flutuasse no teto do quarto e observasse desde cima, sem vertigem, a distância potencializada que oferece um tipo de olhar regado por detalhes; seu rosto caído no travesseiro branco amanteigado e os cílios ainda cobertos por rímel recortando os olhos voltados para dentro de si mesmos, as mãos próximas dos seios tensionados pela brisa que vem da janela que não nos preocupamos em fechar quando aqui entramos, arrancando as peças de roupa com brusquidão, cuidado, sede. E como você mexe o dedo mindinho da mão esquerda enquanto o colo se dilata respirando lenta e progressivamente, com o tempo sentenciando finalmente à maneira que deve sentenciar; e seus pés recolhidos, bem juntos, um sobre o outro, remetendo à fragilidade da triste beleza dos pés do crucificado, os joelhos curvados, escapando do cobertor que te cobre o ventre ainda aquecido e úmido, e esse úmido que é tão seu como meu, compartilhado, exalando o odor ainda fresco, que agora nos inunda como se tivéssemos nos banhado nas águas antigas de um rio sagrado, e que é o mesmo cheiro ainda impregnado à minha barba de três semanas, o mesmo gosto nos seus lábios quando os toco com minha língua; o último que sinto ao deixar o sono me arrastar de volta para cama, ouvindo a cidade se erguer ruidosa e sem razão, sempre, para soterrar o fio sonolento e silencioso da sua respiração irradiando calor próxima ao meu pescoço, que mergulha no travesseiro, entregue ao mais benigno dos cansaços, ao silêncio, ao sono. A paz, que é precária. Mas não. Não é pouco.

05/07/2011

Escavações da infância



Entre aquelas história que a mulher da esquina contava, quando éramos crianças, a que mais me impressionava era de uma missa:

Um homem vem a cavalo até à cidade, assistir à Missa do Galo. A igreja está lotada. Mesmo que não reconheça ninguém ali, nem mesmo o padre, o homem encontra um lugar ao fundo da igreja e assiste à missa tranquilamente. Reza, agradece, toma hóstia. Ao final, deixa o lugar em silêncio.

Sobe no cavalo e toma o rumo de volta, até que cruza com um conhecido.

“Não vai na missa?”, pergunta o conhecido.

“Uai, tô vindo de lá, a Igreja tava lotada”, responde o homem.

“Tá doido?”, diz o outro. “Agora que são onze e meia. Que missa é essa que cê foi?”. 

Descrente, o homem acompanha o conhecido de volta à cidade. Chegando lá, reconhece o padre, o coroinha, reconhece quase todo mundo. Então constata, perplexo, que a Missa do Galo, de verdade, estava prestes a começar. 

A mulher falava que tinha acontecido naquela igreja ali, que por aqui chamamos de Igreja Velha. 

A Igreja Velha (1798), entre outras coisas, remete à fundação do município. Ali foi erguida a primeira capela, nos tempos que esse lugar ainda era um povoado, antes mesmo de ser elevado à distrito, pertencente à Lavras do Funil.

No entorno, havia um cemitério, depois desativado, sem deixar quaisquer sinais.

Nessa mesma época que a mulher da esquina nos contava essas histórias - as máquinas escavaram o terreno da Igreja, na ocasião de uma reforma. Gostávamos muito de ver aquelas máquinas trabalhando. Eu, Rodrigo, Lindomar, Marcelinho Black, Joãozinho, Ti Rani.

Ficávamos impressionados com a lâmina gigantesca da patrol cortando e empurrado a terra; a carregadeira furiosa, elevando a boca absurda no ar, infestada de dentes de aço; além dos movimentos das engrenagens, braços e articulações jurássicas, e o caminhão basculante despejando um mundo de areia e cascalho no chão. 

Num daqueles dias, enquanto a gente brincava no banco de areia debaixo da Igreja, a carregadeira, revirando a terra, encontrou umas ossadas. 

É uma das visões mais marcantes da minha infância, junto da vez que vi uma jararacuçu engolindo um rato,  do dia que deixei o pote de mel cair no meio da rua. Não me esqueço de ver aquele pedaço de crânio, com o fosso dos olhos, o fêmur, costelas, e outros cacos de ossos despontando de tempos imemoriáveis, da vermelhidão da terra. Afinal, naquela época, além das histórias que a mulher da esquina contava, minha imaginação vivia povoada com as escavações de Indiana Jones, com as aventuras de Atreyu, com as gravuras das enciclopédias que folheava (e como não sabia ler, para apropriar do livro), recortava e pregava dentro do guarda-roupas, para o desespero dos meus pais. 

Os homens juntaram aqueles ossos num saco. Enfiaram na traseira de uma camionete e sumiram com aquilo, talvez para mostrar a alguém entendido, algum superior misterioso, escondido numa sala secreta, nos porões de alguma repartição pública. Nunca soube o que aconteceu. Sei que fiquei frustrado, porque para mim, aquela ossada pertencia a uma das personagens daquela história que a mulher contava. Era a prova científica de uma lenda. E por isso, aquela história do homem que ia à Missa do Galo, era a história que eu mais gostava. 

***

Fiquei muitos dias pensando naquela ossada. Minha ideia era organizar uma escavação por ali. Mas os homens que trabalhavam na reforma, depois de encontrado a ossada, tinham recebido ordens para nos manter afastados do local. Além, é claro, dos nossos pais nos proibirem de ir lá, com medo de doenças, ou qualquer coisa do tipo. 

Mas a vontade era maior. 

Quem topou ir comigo foi o Marcelinho Black, com quem eu tinha o hábito de ir pegar girinos no Córrego Grande, para criar em aquários improvisados com bacias de alumínio, latas de óleo, copos de massa de tomate. Não fazíamos muito bem essa ligação do girino com aquilo que ele se tornava quando adulto. E ainda bem que nossas mães sempre jogavam nossos viveiros de anfíbios fora, afinal, não sei qual seria a minha reação ao acordar com um sapo ou uma rã saltando dentro do quarto. Tem tempo que não vejo o Marcelinho Black, mas confesso: não fiquei espantado, no dia que fiquei sabendo, que ele, hoje, é biólogo. Sempre foi, mesmo em potência.

Nosso plano era esperar os caras irem embora da Igreja. Então, cavucar aquela terra à procura de uma caveira, um braço, uma mão, um dedo do pé que fosse. Ficamos matando o tempo com uma bola dente de leite, espiando de longe os caras trabalhando, o caminhão que ia e vinha, até chegar a hora. Deu certo. 

Ao cair da tardinha, com o lugar vazio, munidos de duas caixas de sapatos e uma pequena pá de juntar cisco, tomada emprestada da cozinha da minha casa, mergulhamos nas escavações. Enquanto mergulhava a pá na terra vermelha, minha cabeça visualizava esqueletos completos, algo como o exército do imperador Qin fundido as caveirinhas de Golden Axe, e até um corpo-seco, essa múmia mineira, com unhas e cabelos crescidos depois de morto. 

Como é comum, a realidade é sempre mais estreita. Nada de caveirinhas armadas de escudos, ou fazendeiros de outro século, com leite fresco na barba grande. Encontramos uns caquinhos de osso, bem miúdos, encardidos de terra. Sete caquinhos ao todo. O Marcelinho Black ficou com quatro, porque eram menores, eu fiquei com três, que eram maiores. Depois de dividir, tocamos para casa. 

Entrei com aquela caixa debaixo do braço na maior naturalidade. Meu pai assistia ao jornal e nem perguntou do que se tratava. Passei direto para o quarto. Coloquei a caixa de sapato no melhor esconderijo do mundo. Embaixo da cama. 

Mais tarde, antes de dormir, puxei aquela caixa e fiquei mexendo nos ossos. Tentando supor a que parte do corpo pertenciam tais pedaços. E se aqueles pedaços, assim como imaginei da caveira que a máquina tinha arrancando da terra, pertenciam também às personages fantasmagóricas daquela história, que a mulher da esquina nos contava. 

Minhas investigações arqueológicas duraram pouco. No dia seguinte, enquanto eu estava tomando café, antes de ir à aula, ouvi minha mãe gritar do quarto, perguntando o que é que era aquilo embaixo da cama. Primeiro falei que eram ossos de vaca, tentando diminuir o baque. Mas não funcionou, ela fez uma cara de nojo e disse que eu tava maluco em trazer osso de bicho para dentro de casa. Então eu disse que era osso de gente, lá da igreja, na tentativa de atestar o valor daquela caixa de sapato. 

Mas foi pior. 

“De gente?”, ela disse, como se estivesse segurando uma lasca de fígado ainda quente, antes de correr com aquilo para o quintal e tascar a caixa com tudo, lá no lote vazio, do lado da nossa casa. 

Eu senti um aperto terrível, me enfiei no quarto sem entender muito bem. 

Mas quando encontrei o Marcelinho Black, no outro dia, na esquina de casa, ele me contou que, além de sumir com os ossinhos dele, a mãe dele tinha colocado ele de castigo. Daí, eu me senti melhor. A realidade era frustrante - tudo bem - mas pelo menos não estava sozinho naquela situação.


01/07/2011

Já não há deveres


“Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? 
A razão é simples! Para com eles, já não há deveres." (Camus, In: A queda) 


Com os mortos não há assimetria. A relação é vertical. Nós somos os senhores supremos, os sujeitos, a voz que ordena e define; o morto só existe enquanto memória, não carece de afeto, de entrega, atenção, de nada.  

E mortos não são apenas aqueles que estão soterrados sob o duro silêncio do mármore; são também aqueles com quem não temos mais nada em comum, com os quais o vínculo se quebrou, como um nó desfeito numa corda apodrecida debaixo do sol. Não há deveres práticos com esses ausentes, e sem os deveres práticos, que exigem esforço, atenção e cuidado, nossa relação com os ausentes é totalmente idealizada. A chatice some. A feiura se ameniza. A mesquinharia se transforma em nobreza. O vazio ganha sentido.

Cômodo, confortável, leve, fácil. Irreal.

Não precisamos dar atenção e carinho; não precisamos suportar as críticas certeiras de um amigo ou amor defunto, o ronco, o mau hálito numa manhã de domingo chata e chuvosa, lidar com birrinhas, reclamações,  falas repetitivas, engolir argumentações chulas só para evitar aquele tipo de embate exagerado e melodramático na fila do supermecado, por causa da marca de manteiga, numa quarta-feira niilista e de mau humor absurdo, porque seu dinheiro está no fim e ainda é dia 19.

Aqueles a quem deixamos para trás quase não têm defeitos, muito menos divergências conosco. Por isso não precisamos nos submeter a convenções de convivência, como assistir aquele filme que não gostamos ou ir naquele bar com conversas e pessoas entediantes só para manter à sociabilidade no nível da aceitação. Não há contratempos com fantasmas, não nos exigem nada, não há cobrança.

Não temos deveres práticos para com os mortos, ausentes, vínculos quebrados, e nem eles conosco. Nosso ego está sempre protegido. Afinal, na relação com o ausente, a bem da verdade, nos relacionamos com nós mesmos, com a imagem projetada do outro: uma extensão daquilo que queríamos que ele fosse para nós. E nunca é. Nunca foi.

Se depois de anos, houvesse a possibilidade de entrar numa máquina do tempo e encontrar um ausente, um amigo defunto, a professora brava da quinta série, um ex-amor, naquela mesma situação (que sempre contamos com um riso nos lábios e cobertos de nostalgia), a decepção seria terrível. Tédio, mesquinharia, fastio.

A morte e a quebra de vínculo seguida de distanciamento temporal nos enganam, produzem um melhoramento artificial das coisas. Mas, fora da maquiagem do tempo e da deturpação intencional e autodefensiva da memória, tudo é mais áspero e sem graça.

É um tipo de amor platônico, essa relação com o ausente (morte e passado). E como todo amor platônico, ao esbarrar na realidade, se esfacela na decepção e no fracasso completo.

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Idealizamos e supervalorizamos os ausentes e nos esquecemos dos próximos e presentes.
Deveria ser o contrário.