30/03/2011

O mais profundo é a pele


Porque é na pele que encontro seu espírito, esse seu silêncio mais profundo, nas dobras da carne sob seus seios, resvalando as costelas quando me oferece as costas (alguma coisa muda), minha mão ganha vida (como se antes de te tocar ela fosse inútil), manejando os dedos pra percorrer e desenhar seu corpo, vejo seu corpo com as pontas dos dedos (está escuro e por isso vejo melhor), decoro cada dobra e ondulação do seu corpo, possuindo à pele que me possui, possuindo seu espírito que me possui, possuindo o momento que me possui, porque é na pele que ele habita, o mais profundo é a pele, oferecendo as lentas contorções de uma dança antiga e poderosa, de fundação da vida (é um renascer quando me movimento ao seu ritmo), e tremem minhas mãos no volume dos seus ossos, e por um momento quero rasgar sua pele, estar dentro, encontrá-la ainda mais nua e mais quente e mais livre, encontrá-la numa linguagem anterior a linguagem, onde não há mal entendido (deveria interromper nesse ponto, mas não), entendo que você não existia (concretamente, conheço a pouco), é como o respirar explodindo nas células e alimentando meu corpo quando seu corpo me acolhe (não sobreviveria ao depois), entendo o antes (concretamente, conheço a pouco), calda esfumaçada que arrasto nas costas (memória) e todas as coisas vivenciadas e abolidas (derrotas, fracassos, insônia ou correr atrás da bola) foram provocadas a priori por esse momento de agora (o momento, claro, é você, não há depois possível), como um feixe magnético me tragando pra junto (é sua pele, tenho certeza), como se alguém planejasse o encontro, desde sempre, como se todo momento anterior respondesse a uma trama, uma longa preparação, que estoura em você (e agora, toda dor antiga fica bonita porque desde sempre é por você que eu sofro), como se fosse  ficção, uma narrativa, composta de cifras simbólicas construídas no passado, avançando de forma caótica até tocar seu corpo (dança de fundação da vida), pra ganhar sentindo e abolir sentido outro (confesso, é meio turvo), tocar seu corpo pra renascer, porque é na pele que encontro seu espírito e me encontro na medida em que me perco, e acabo diluído, pacífico, como uma gota azul de tinta num copo d'água, que te ofereço quando termina, mas é só o começo.

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26/03/2011

Magrelinha (parte II)



Todo mundo precisava lavar o carro naquela maldita quinta-feira. 

Os caras estacionavam o carro na fila e depois ficavam encostados na mureta, ficavam me olhando enquanto eu esfregava uma roda ou soprava um porta malas. Tinha uns dez caras conversando. Um deles, gordinho, cabeça enfiada nos ombros, manco da perna esquerda, perguntava toda hora quanto tempo ia demorar. Da terceira vez, eu disse, não muito, se quiser pode deixar o carro aqui e voltar depois do almoço. Depois do almoço (o gordinho tava meio contrariado), mas que merda! se eu soubesse que tava assim, tinha ido lá no Everaldo (e foi me dando as costas, falando alto e levantando os braços, indo na direção da turma encostada na mureta, e continuou), devia ter ido lá no Everaldo primeiro. Mas agora fudeu! se sair daqui, pra ir pra lá, quando chegar lá a fila vai dar três dessa aqui.

Eu suspirava, limpava uma roda, ensaboava o vidro e despachava um carro.

O carro do gordinho era o último. 

O gordinho devia ter formigas na cueca. Enquanto a maioria dos caras ficava falando de assuntos bestas, aguardando a vez (como a coisa tem que ser), o filha da puta do gordinho não parava quieto. O filha da puta do gordinho ficava rodando a chave, arrastando os pés e arrastando as chinelas Raider. O filha da puta do gordinho devia ter algum problema. 

O meu problema era que eu precisava falar com a magrelinha. Precisava saber que diabos tinha acontecido. Tava de cabeça quente desde cedo. Nem café tinha tomado. E quando tem alguma coisa me incomodando, eu acabo perdendo a paciência. 

Terminei mais um carro e desliguei a mangueira. Não tinha parado um minuto, precisava ir ao banheiro. Eu tava de costas, me afastando na direção do almoxarifado quando o gordinho começou, ei, mas onde cê pensa que vai? ninguém aqui tá por conta, não! Olha lá que tranquilidade... 

O sangue subiu na hora. 

Aqui, filha da puta (andando na direção do gordinho), enfia esse carro no rabo e some! 

O gordinho (mancando da perna esquerda, num trote acelerado pro meu lado), como é que é? 

Some! Enfia o carro no rabo e vaza, filha da puta! 

O gordinho (arrancando a camisa num movimento só, querendo intimidar), como é que é? 

Filha da puta! 

Como é que é? 

Filha da puta! 

Tava armando pra chegar perto e dar um tombo no gordinho e já cair matando. Quando a gente topou de perto o gordinho fechou uma guarda de boxe. Lasquei um chute na lateral do joelho (direito) do desgraçado, mas o filha da puta nem sentiu. A canhota do gordinho bateu na minha testa igual um toco, minha vista ficou branca que nem papel chamex, dei dois ou três passos pra trás e despenquei de bunda no chão. Ouvi os gritos da turma na mureta e na hora que a vista foi voltando, ainda meio esbranquiçada, vi o gordinho vindo  que nem um urso. Me debulhou um chute nas costelas e eu rolei de lado, destruído.

Lembro que vi um vulto passando no céu, que nem um tiro, e ouvi uma pancada estralada e depois um estrondo; quando virei pra ver, o gordinho tava no chão. 

Foi aí que eu entendi porque o sujeito da cabeça russa tinha o apelido de Japonês. Me contaram depois, um dos frentistas, que foi a voadora mais bonita que ele viu na vida. Nem em filme, disse o frentista, até meio emocionado. O Japonês largou da mão magrelinha e disparou numa carreira e saltou, deve ter saltado mais ou menos uns cinco metros de distância, e quando chegou perto (diz o frentista), o Japonês esticou a perna, da canela pra baixo, e lascou uma lapada na fuça do gordinho e mandou o filha da puta no chão que nem um saco de cimento. 

Dois caras daqueles que tavam na mureta cataram o gordinho e sumiram dali. 

Eu fiquei com um ovo na testa e um hematoma escuro, do tamanho de um prato, nas costelas. Mas fiquei mesmo é devendo obrigação pro Japonês. E o foda é que eu tava sacaneando com o Japonês.

Pelo menos a camisa do gordinho tinha ficado pra trás. Deu uma bela estopa.

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04/03/2011

Magrelinha (parte I)

Desde o primeiro dia a magrelinha me olhava torto. 

No fim do expediente eu passava na loja de conveniência e comprava um maço de cigarros e quando eu entrava na loja o rosto da magrelinha virava um pimentão, mexia no cabelo como se tivesse piolhos e não me olhava nos olhos de jeito nenhum. 

Nunca ouvi a voz da magrelinha ali na loja. 

Às vezes eu comprava uma latinha de Brahma e ficava fumando e tomando cerveja e jogando conversa fora com o Buiú perto do lavajato. Uma vez, o Buiú comentou comigo, “Alá, rapa! a magrelinha não para de olhar pra cá, Marcelão!”. Eu tinha percebido faz tempo, mas disse ao Buiú que era lorota, que a mocinha quando muito devia ter uns dezessete anos e que era chave de cadeia, que eu já tinha visto o namoradinho da cabeça russa vir buscar a magrelinha num gol quadrado amaçado na lateral; que eu não ia me meter com a mulher do rapaz, é claro. O rapaz era malencarado, desse povo que ouve Racionais no talo e devia carregar uma arma debaixo do banco do gol quadrado. Mas falava isso só pra despistar o linguarudo do Buiú. Eu sempre ouvi Racionais e nunca carreguei arma nenhuma. E no fim das contas, eu já tinha planejado direitinho como é que eu ia dar um trato na magrelinha. 

Escrevi o número do meu celular num papelzinho antes de sair de casa. No fim do expediente, entrei na loja de conveniência e na hora de entregar o dinheiro do cigarro, entreguei o papelzinho junto. A magrelinha foi desenrolar o dinheiro e deixou o papelzinho cair. Quando abaixou pra catar eu já tinha saído da loja. 

Eu sabia que ia dar certo. 

Naquela noite mesmo a magrelinha me ligou. Eu tava requentando um mexidão quando o celular começou a vibrar. Ouvi uma confusão de gente falando no fundo e perguntei se ela tava em algum boteco. A magrelinha disse que tava ligando do orelhão da faculdade, que era intervalo de aula, que não podia ligar do celular dela, porque o Japonês vigiava as ligações que ela fazia. Pensei em perguntar por que aquele sujeito da cabeça russa tinha o apelido de Japonês, mas desisti. Daí, sem mais nem menos, a magrelinha disse que tinha que desligar e que amanhã ligava de novo. Tudo bem, eu disse. 

Quando cheguei no lavajato no dia seguinte, a magrelinha me tratou como se nada tivesse acontecido. Avermelhou o rosto e coçou a cabeça do mesmo jeito e não me olhou nos olhos. Pensei comigo que o papelzinho tinha extraviado e que outra pessoa tinha ligado. Que uma outra magrelinha, que namorava um Japonês de verdade, e não aquele rapaz do gol quadrado da cabeça russa, tinha encontrado o papelzinho e me ligado. Tava pensando nessas coisas quando o Buiú veio me dizer que o dono do Celta branco reclamou de uma lavagem que eu tinha feito, disse que esqueci de limpar o motor do carro. 

Minha tia Esmeralda tá doente, eu disse, tá me deixando meio desconcentrado. 
E o quê é que ela tem, Marcelão? 
Câncer na língua, Buiú. 

Lavava umas meias e cuecas quando o celular tocou naquela noite. Era o mesmo barulho de fundo da noite passada. Mas antes que eu pudesse perguntar por que ela não falava comigo lá no posto, pra ver se era mesmo a magrelinha que tava ligando, ela disse que tinha que desligar rápido, porque o Japonês ia pegar ela mais cedo hoje, mas que, amanhã, o Japonês ia sair pra jogar sinuca com os caras e que ela não tinha aula antes do intervalo, e que, então, amanhã, ligaria mais cedo. Tudo bem, eu disse, e a magrelinha desligou. 

Voltei a esfregar as cuecas e fiquei pensando que diabos tava acontecendo. E nessa hora, lembro perfeitamente, olhando pra espuma que saia da cueca, tive a ideia genial de escrever outro bilhetinho. 

Entreguei o bilhetinho do mesmo jeito que tinha entregado o outro, enrolado na nota de cinco reais. Mas dessa vez eu esperei ela abrir o bilhetinho. Fiquei olhando direto pra ela, disfarçado, reparando (no maior fingimento) os preços de pão de forma e biscoitos. Daí ela me olhou, então eu vi os olhos castanhos e ela piscou, quer dizer, piscou de um jeito esquisito, piscando os dois olhos de uma vez como tivesse uma linha de anzol amarrada na ponta dos cílios. Era esquisito, mas era o bastante. No bilhetinho eu tinha escrito meu endereço. 

A magrelinha precisou de uma semana pra despistar o Japonês. Abri a porta e tava lá a magrelinha untada num perfume doce e tão forte que quase me arrancou um espirro. Tava com o rosto vermelho, uns cadernos cor de rosa na mão, e com a boca lambuzada de brilho como se tivesse acabado de devorar um frango inteiro. Dei um beijo no rosto dela e falei pra entrar e ficar à vontade. Ia dar tudo certo, eu pensei. Ela parou no meio da sala, reparando nos móveis e mexendo no cabelo. Tava com uma calça dessas jeans bem baixa, com uma faixa de carne e aqueles ossinhos de fora.

A magrelinha não falava de jeito nenhum. Mas eu não forcei ela falar. Por instinto, comecei a falar em dobro, falar como se eu tivesse duas línguas. Acho que nunca falei tanto na minha vida como naquela noite. Falei de tudo quanto é assunto, e você sabe como um assunto entra no outro, como a coisa flui feito água rasgando pedra. Comecei falando sobre a incompetência do meu irmão ao lidar com o celular, como meu irmão não sabe desligar o despertador do celular e joga o aparelho dentro do baú de cobertores, e logo fiz um resumo confuso de Rock e Táxi Driver (filmes que via com meu irmão), contei de uma superstição antiga que eu tinha quando moleque (época que dividia o quarto com meu irmão), na minha cidade, acertar pedradas numa árvore seca e velha, na esquina da minha casa, e como a vida é engraçada porque acertar pedradas naquela árvore me dava sorte, me fez ser titular do time da escola (no lugar do meu irmão) naquele último campeonato daquela época, e que foi muita sorte aceitar o emprego no lavajato, mesmo que eu quisesse coisa melhor, se eu tivesse aceitado outro emprego que um amigo (amigo do irmão) tinha me indicado, que pagava bem melhor, eu teria de mudar de cidade e não teria conhecido você, eu disse, e a gente não estaria aqui agora, conversando. Sim, aquela altura a gente já conversava, de um jeito esquisito, mas conversava. Eu fazia uma pergunta ou outra, quer outro vinho? como vai a faculdade? e a magrelinha respondia dando de ombros, movendo a cabeça ou a boca num movimento estranho (sem melhor palavra pra usar, eu chamaria de sorriso), também movia as pálpebras conforme a resposta fosse positiva ou negativa, e eu entendia, e conforme a velocidade com que movia as pálpebras, ou jogava os ombros, ou mordia os lábios internamente e depois afastava os lábios uns dos outros, e erguia o ombro direito mais alto que o esquerdo, eu entendia que aquilo era um sim, e entendia que o não era quando apontava o nariz no rumo do piso da sala, piscava, movia o queixo um pouco pra esquerda; era estranho, mas eu dominei rápido aquele jeito da magrelinha conversar. E eu gostei bastante do jeitinho da magrelinha conversar. 

Depois, foi tudo muito rápido. A conversa entrou no piloto automático. Do beijo até abaixar as calças foi uma coisa tão ligeira que parecia que a gente tinha ensaiado no mínimo umas três vezes antes de executar. 

Enquanto eu procurava minha camiseta no meio das almofadas, a magrelinha correu pro banheiro. Vesti a camiseta e fui no quarto buscar um cigarro, e lá do quarto ouvi o barulho da porta do banheiro e quase de imediato o barulho da porta da sala. 

Tentei ir atrás, desci as escadas correndo, e quando cheguei na rua, a magrelinha tinha sumido. 

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