18/02/2011

The King of Limbs, Radiohead (primeira impressão)

"Se se tratasse de uma nave espacial, seria a Millennium Falcon." 


Estou mais próximo da turma entusiasta de KID A e Amnesiac, do que dos fanáticos nostálgicos pelas guitarras de Ok Computer, The Bends e Pablo Honey. De toda forma, à primeira ouvida de The King of Limbs:

1) remete à atmosfera de Amnesiac(Dollars & Cents e Pyramid Song), até a alguns b-sides (The amazing sound of orgy); 2) traz os elementos melódicos contidos de In Rainbows (Weird Fishes/Arpeggi e Down Is The New Up), junto aos loops e ruídos mais estranhos de Hail to the Thief (Backdrifts e The Gloaming); 3) os pontos altos são: Little By Little, Codex e Separator4) Give Up The Ghost é bem chatinha.

É isso.

(PS: Lotus Flower é um bom single à maneira de In Rainbows e 15 Step; e não deixe de ler a análise hermenêutica do Jacaré sobre a dancinha do Thom Yorke e a análise em tempo real do Trabalho Sujo)

(PS-2: o pintinho e o novo do radiohead)

The King of Limbs, 2011

1. - Bloom
2. - Morning Mr. Magpie
3. - Little By Little
4. - Feral
5. - Lotus Flower
6. - Codex
7. - Give up the Ghost
8. - Separator


17/02/2011

Paranóia de macho

Àquela altura da conversa

      (antes, quando saltaram do ônibus, numa conversa de necessidade imediata, decidir que rumo tomar, afinal, como era a terceira vez que saiam, não existia aquilo que pudessem chamar de favorito, então, caminharam  pela rua cheia de bares esperando que o impulso os guiasse, ou que, entre as duas, talvez três dezenas de bares, algum oferecesse algo especial naquela noite, um desses músicos blasés compenetrados, despejando acordes e escalas virtuosas de uma ponta a outra do instrumento, ou um cardápio especial, alguma promoção de destilados; e foi ali, à procura desse lugar, quando o assunto tinha desaparecido, que o nome do sujeito veio pela primeira vez; e o homem, então, fingiu não ouvir e prosseguiram; era uma conversa banal, e talvez tenha sido um ato falho da mulher, ou nem isso, pensou o homem, afinal não havia mais nada, a mulher tinha deixado claro nas noites anteriores, mas o homem não tinha muita certeza, desde a primeira vez que se falaram desconfiara da sombra que a mulher jogava às costa da própria vida, do passado que ela chamava de doloroso; embora estivesse curioso por saber o que tinha de fato acontecido, estar ciente dos detalhes talvez para afastar qualquer chance de erro recorrente, ou ainda, para estar ciente, naquele egoísmo tão comum entre a maioria dos homens, de que o sujeito anterior, mesmo ciente que se tratava efetivamente de caso encerrado, não oferecia nenhum tipo de ameaça) 

o homem tocou no assunto.

Disse para mulher, não sei se você percebeu, mas você falou o nome do seu ex, ali, quando a gente tava procurando um bar. A mulher disse, nossa, não percebi, falei? Nossa, não percebi mesmo! Mas veja, disse o homem, não digo isso por nada, eu só achei engraçado, porque você nunca tinha falado, achei engraçado. É engraçado mesmo, disse a mulher, não percebi mesmo. Que coisa! Mas o que foi que eu falei? O homem deu uma risada, bebeu um gole, jogou os ombros pra trás e disse que não tinha nada de especial, só engraçado mesmo. Mas como foi que eu falei? Não me lembro mesmo. Nossa, que cabeça a minha. Será que já tô bêbada? Hahahaha! Tanto tempo que eu não bebo, cara. Fala, vai! O que foi que eu falei? O homem acendeu um cigarro, espantou a fumaça do primeiro trago e disse, bom, eu falei que a gente devia ir naquele bar mais sossegado e tal, que lá é mais tranquilo, aquele segundo barzinho lá na esquina, que não têm mesas na rua, meio escondido pra dentro do prédio, lembra? Daí você disse, brincando, rindo, ah, não, pelo amor, tá parecendo o Rafael, vamos pra um lugar mais animado, eu gosto de lugar que tem gente, de lugar animado! Bom, daí, na hora, eu tive o impulso de perguntar quem era Rafael, mas... bom, não precisa, não é? Cara, não lembro! Falei isso mesmo?, disse a mulher. Falou, disse o homem. Pior que falou... mas eu não me importo com isso, é sério! Não me importo. Você me já explicou que não tem mais nada a ver e tal, e eu tô de boa, sem perguntar nada... mas, de toda forma, achei isso engraçado, você soltar essa comparação, assim, do nada. Que coisa, disse a mulher, mas sabe o que me deixa mais preocupada nisso? Não, disse o homem. Eu não conheço nenhum Rafael, disse a mulher. O nome do meu ex- é Adriano.

14/02/2011

Trechos do diário atormentado de John Cheever na Piauí

fonte: cheever.wordpress.com 


"Estou cansado, mas vai passar. Amo o corpo da minha mulher e a inocência dos meus filhos. Nada mais.



1952_Quando a autodestruição brota no coração, parece ser menor do que um grão de areia. É uma dor de cabeça, uma leve indigestão, um dedo inflamado; mas você perde o trem das 8h20 e chega atrasado à reunião sobre a dívida do cartão de crédito. O velho amigo com quem você se encontra para almoçar esgota a sua paciência sem mais nem menos e num esforço para ser agradável você toma três drinques, mas a essa altura o dia já perdeu a forma, o propósito e o significado. Na esperança de lhe devolver algum sentido e beleza, você bebe demais nos coquetéis e fala demais, dá em cima da mulher de alguém e termina fazendo algo idiota e obsceno, e pela manhã você quer estar morto. Mas quando tenta reconstituir o caminho que o conduziu a esse abismo, tudo que você encontra é um grão de areia." (John Cheever, Tradução de Daniel Galera)

13/02/2011

Under Cover of Darkness, The Strokes

Já é quase assunto velho, mas o Strokes soltou, 9 de fevereiro, o single, Under Cover of Darkness, que faz parte do novo disco, Angles que está preste a vir (21 de março). Tenho uma dívida emocional com Strokes, meio patética, daquelas coisas regadas a nostalgia e momentos estranhos. Ouvir Last Night pela primeira vez (já faz dez anos), naquele programa cheio de afetação da Rede Minas, o Alto-falante e pensar que porra é essa! Lembro de uma fita que gravei para o Luigi, em que Last Night era a primeira faixa. Depois ouvimos muito essa fita; e ouvimos mais ainda um cdzinho (naqueles sony que descolavam a mídia ou costumavam mofar) que trazia essa mesma coletânea com algumas modificações. E como ouvimos Strokes! Na época da banda, embora a música não estivesse no repertório, bastava um intervalo qualquer e já começamos a brincar, depois tocar sem vocal, eu, Luigi, o Abacaxi. Que fase! Mas, na últimas vez que tocamos juntos, já em outra banda, a última banda, numa tarde de julho, de ressaca e num calor desgraçado enquanto motoqueiros zanzavam de um lado ao outro, finalmente tocamos Last Night inteira. Com vocal, solos e riffs bem destribuídos e bem ensaiados, embora eu tenha atrasado um intervalo na entrada do solo.

Mas os momentos estranhos são muitos. Como Hard to Explain tocando na TV 14 polegadas naquele programa A Cor do Som da Rede Minas nas madrugadas regadas aos sinos de São João del Rei. Ou ainda, The Modern Age virando uma cachaça no Ribeirão da Ponte, ou no extindo Bar do Serginho.

Room On Fire faixa a faixa no fuscão vermelho do Dodinho, sudindo a serra de São Tomé, à noite, a garrafa de rum, ou o conhaque limpando a garganta da poeira festa de São Bento, ou a vodca espantando o frio da Festa da Fogueira de Ingaí. 

First Impressions of Earth em longas noites de baralho e cachaça no bar do Tatá. 

Já mais à frente, quando bêbados, pedíamos as meninas que pedissem aos caras das bandas que tavam tocando, que tocassem Strokes; e se acontecesse, era um pequeno surto de alegria idiota e ingênua, que me parece tão distante que não consigo entender qual era a graça daqueles pulos e porres. Fica mais a sensação de bom, sem saber exatamente por que era bom. E talvez não houvesse mesmo o porque de ser bom, e por isso era como era, como são a maioria das coisas, principalmente os pequenos ídolos que erguemos diante de nós mesmos, pra ter no que se agarrar. Afinal ser jovem nada mais é que ter o direto de acreditar nas próprias fantasias e pequenas bobagens, como aquele discurso de aproveitar a vida e coisa e tal.

Da trindade de bandas que serviram de trilha para os últimos dez anos da minha vida (Interpol, Radiohead), Strokes foi o show que ainda não fui.

De toda forma, essa nova música dos Strokes soa como som velho, já nasce envelhecida; como se essa canção já estivesse lá, tocando lá nas madrugadas de São João del Rei sob os sinos, nas noites de sábado que eu o Dandan ficávamos à janela espiando as águas escuras da piscina do Atletic, ou lá na casa Verde do IAPI, ou lá no Matozinhos, ou nessa labiríntica Luminárias do passado, cheia de fases, etecétera, etecétera. 

Troço doido esse trem de nostalgia. Uma musiquinha inofensiva e... enfim.

"Me vestir, saltar da cama e fazer o melhor.
Tudo certo?
Eu estive andando longe desta cidade
E todo mundo continua cantando a mesma música há dez anos.

Eu vou esperar por você.
Você vai esperar por mim também?"


"Get dressed, jump out of bed and do it best.
Are you OK?
I've been out around this town
And everybody's been singing the same song ten years

I'll wait for you.
Will you wait for me too?"



Strokes é o Creedence Clearwater Revival da nossa época (pra mim). Ouvir aos 50 anos (distraídos venceremos) no churrasco nostalgia e fazer dancinha empolgada numa vibe rock brega, depois, soltar o discurso "no meu tempo que tinha música", etc etc.

***

De toda forma, PJ Harvey lança novo CD em Paris, com transmissão ao vivo



11/02/2011

Mão

fonte: Arquivo Público Mineiro

“Não se lavava, não se vestia, e às vezes nem mesmo saía da cama, e aos poucos foi tomado por uma espécie de indiferença; apesar de suas esquisitices, quando criança era muito afetuoso, não apenas com os membros da família, mas também com os vizinhos, os escravos e até com os desconhecidos, e a tal ponto que às vezes suas demonstrações eram exageradas e inclusive desagradáveis para certas pessoas que estavam apenas de passagem na casa, mas essa afetividade fora desaparecendo, como se o mundo real em que vivera até aquele momento tivesse sido substituído por outro em que tudo lhe parecia externo e cinzento. Os problemas, as doenças e inclusive a morte de pessoas que antes lhe haviam sido muito queridas não despertavam nele nenhum sentimento ou emoção, e se de vez em quando em seus suspiros, por vezes seus gemidos desvendavam nele nenhum sofrimento inequívoco, era impossível saber o que causava, embora se adivinhasse que os motivos não estavam em nenhum acontecimento exterior, mas antes nuns poucos sentimentos dolorosos que pareciam ser sempre os mesmos, e que ele ruminava incessantemente. Foi preciso começar a obrigá-lo a se levantar da cama, a vestir-se, a comer, a dar uma caminhada ou pelo menos sair pelo corredor externo ou para o pátio, principalmente quando o tempo estava bonito, e se no início ele protestava, no fim, dócil, deixava-se levar. Sua eloqüência, que em períodos de excitação utilizava para tentar convencer seus semelhantes de que uma catástrofe confusa mas iminente os ameaçava, começou a perder força, e seus discursos veementes foram se tornando cada vez mais descabelados e providos de convicção, e se no início eles eram acompanhados por atitudes e gestos que os sublinhavam, principalmente, davam por subentendido o segredo que sua veemência pretendia transmitir a seus semelhantes sem revelá-lo por completo, pouco a pouco, ao desmantelamento de suas perorações, nas quais as exclamações haviam sido substituídas por frases incompletas e vacilantes, vinham somar-se a rigidez de suas expressões e a imobilidade passiva de seus membros. No fim ele só abria a boca para responder, sempre com monossílabos, a alguma pergunta que lhe fizessem.(...) E nos últimos meses sua prostração fora total; contudo um detalhe curioso viera somar-se à sua conduta já tão estranha: fechara a mão esquerda, e desde então permanecia com o punho fortemente apertado. Quando lhe perguntavam a razão desse gesto virava a cabeça e apertava também os lábios, dando a entender que não estava disposto a responder, e nas duas ou três vezes que, para ver o que acontecia, e inclusive em certas ocasiões só de brincadeira, alguns dos membros da família haviam tentado obrigá-lo a abrir a mão, ele resistira com tanto desespero que, penalizados, seus familiares haviam por deixá-lo em paz. Um dia alguém notou que a mão sangrava, dando-se conta de que todo aquele tempo as unhas haviam continuado a crescer, cravando-se na carne macia da palma da mão, de modo que foi preciso obrigá-lo de verdade a abrir a mão para cortar-lhe as unhas e fazer um curativo nas feridas. Segundo o senhor Parra, o jovem Prudencio começara a uivar e se jogara no chão contorcendo-se para tentar impedir que lhe abrissem o punho, e fazendo tamanho escândalo que os vizinhos chegaram correndo, pensando que algum crime fora cometido naquela casa, e apesar do estado de extrema debilidade em que, devido a sua prostração e sua inapetência, encontrava-se o jovem Prudencio, sua resistência era tanta que foi necessário três ou quatro homens vigorosos o imobilizassem, abrissem seu punho e mantivessem sua mão aberta enquanto lhe cortavam as unhas e lhe pensavam as feridas já infeccionadas. Durante todo tempo que levou essa operação, Prudencio uivava ou gemia com tal expressão de terror que as pessoas ficavam com pena dele, mas vários presentes observaram que Prudencio olhava para o teto e as paredes do aposento com apreensão, como se temesse que fossem cair em cima dele.”



Chifres

“Para ser franco novamente, ainda não comecei minha carreira literária, embora tenha recebido um prêmio. Na minha cabeça debatem-se argumentos para cinco novelas e dois romances. Um deles já foi concebido há tanto tempo que algumas personagens envelheceram, sem terem sido escritas. Tenho na cabeça um exército inteiro de gente querendo sair; à espera apenas da voz de comando. Tudo o que escrevi até agora não passa de bobagem em comparação com aquilo que gostaria de escrever e que escreveria com entusiasmo[...] Não gosto do meu sucesso; os argumentos que estão na minha cabeça sentem ciúmes e despeito por aquilo que já foi escrito; é uma pena que as besteiras já tenham sido feitas e que o bom tenha ficado abandonado num depósito, como os livros velhos. Claro que há muito exagero neste lamento, muito disso não passa de impressão, mas há uma parcela de verdade, uma grande parcela. O que eu considero bom? Aquelas imagens que me parecem ser as melhores, que eu amo e guardo ciosamente, para não desperdiçar e estragar em “O aniversário”, escrito por encomenda... Se meu amor se engana, então eu estou errado, mas é bem provável que ele não se engane! Posso não passar de um tolo convencido, ou, de fato, sou um organismo capaz de ser um bom escritor. Tudo o que se escreve agora não me agrada e me dá tédio, mas tudo o que tenho na cabeça me interessa, me comove, me preocupa – daí deduzo que ninguém faz o que deve, e que só eu conheço o segredo de como se deve fazer. É bem provável que todos os escritores pensem assim. Por sinal, o próprio diabo quebraria os chifres com essas questões...” 


Anton Tchékhov, em carta a Aleksei Suvórin, Moscou, 27 de outubro de 1888 In: Sem trama e sem final: 99 conselhos de escrita. Seleção de Pierro Brunello. Tradução de Homero Freitas de Andrade (Editora Martins Fontes, 2007) p. 50

10/02/2011

Os lados do círculo, Amilcar Bettega

“Os lados do círculo” de Amilcar Bettega (Companhia das Letras, 2004) me causou aquele tipo de impressão muito forte. Li e venho relendo o livro com prazer e deslumbramento renovado. Uma das melhores coisas que li nos últimos anos. Interessante como Amilcar muda o foco de sua obra sem perder a qualidade e resguarda um estilo muito particular. Se em “Deixe o quarto como está”  a narrativa de cunho absurdo era predominante, como no conto do sujeito que toma um trem e não consegue deixar a cidade, ou o já famoso conto do “Crocodilo”, na geléia de “Hereditário”, ou no meu favorito, “Espera”, onde o absurdo emerge da esperança levada às últimas consequências - e suprimindo o real, causa um tipo de dilatação tenebrosa, a voz que se afasta continuamente sem nunca partir por completo; em “Os lados do círculo”, Amilcar joga com a ideia de circularidade, joga com pistas sutis que conectam, ou sugerem conexões entre as personagens e entre as narrativas, cria uma atmosfera singular que transcende a ambientação na cidade de Porto Alegre. Amilcar consegue unir duas coisas sensacionais na sua prosa. Transitar na forma e criar atmosferas. Transitar na forma do círculo violento de “Verão” ou no eterno retorno de “Círculo Vicioso”, ou subvertendo a estrutura narrativa no jogo de enunciados descritivos de “The end”. Criar atmosferas, produzir círculos que prendem o leitor num emaranhado sensorial inescapável, como “A aventura prático intelectual do Sr. Alexandre Costa” ou “Teatro de bonecos”. E se joga com metalinguagem, ao fazer de um questionário de entrevista uma história, em "A/c editor cultura segue resp. cf. solic. Fax", é sem o mínimo de afetação. A metalinguagem surge como uma consequência natural da vasta consciência literária e num tom de verdade que não deixa espaço para descrença ou enfado do leitor.

Amilcar é um criador de atmosferas. Seus contos são climatizados, é como se fôssemos levados pelo braço a adentrar um espaço novo; e toda vez que adentramos um espaço novo, imersos na estranheza, nossos sentidos são inevitavelmente potencializados, aguçados diante da carga sensorial descarregada sobre eles. É praticamente impossível não se deixar contagiar com sua escrita. Seja pela qualidade com que manuseia a língua, seja pela habilidade em contar histórias de um modo tão próprio. 

E isso tudo só me faz ficar ansioso pelo próximo livro (que será um romance?), fruto da viagem à Istambul.

Leitura de cabeceira.

09/02/2011

Diapasão

“Muitos escritores afinam o ouvido para a prosa começando o dia com uma leitura estimulante, um pouco de prosa perfeita. 'Leio alguma coisa', diz Maya Angelou, 'talvez Salmos, talvez algo do Sr. Dubar, de James Weldon Johnson. E me lembro de quão bela, quão maleável é a língua, de como ela é prestativa. Você a manipula e ela diz 'Tudo bem'. Lembro-me disso quando começo a escrever”. Mary Gordon tem um elaborado ritual: “Antes de levar a caneta ao papel, leio. Não consigo começar meu dia lendo ficção; preciso do tom mais íntimo das cartas e dos diários. Desses diários e dessas cartas – material de primeira mão – copio algo que tenha estimulado minha fantasia... Mudo para Proust; três páginas em inglês, e as mesmas três páginas em francês... Depois passo para ficção que estou lendo seriamente, aquela que estou usando como diapasão, aquela de que preciso para encontrar o tom que vou adotar na ficção que estiver escrevendo no momento... Copio parágrafos cujo peso e cadência possam me ensinar alguma coisa. Há dias, quando estou com sorte, em que o próprio movimento da minha mão, como uma espécie de dança, começa outro movimento que me permite esquecer a presunção, a insensatez daquilo que sou”. Paul Johnson, um dos mais fecundos ensaístas ingleses, recorre a certos mestres para atender a certas necessidades. “Todo escritor tem seus estimuladores em prosa. Os meu são a Bíblia do rei James, Bacon, Milton e Hobbes. Alguma coisa de Swift e Hazlitt, um pouco de Gibbon, as cartas de Byron, sempre. Leio Jane Austen por causa de suas ironias sutis, tão maravilhosamente sob controle, e também por sua capacidade de fazer a história avançar com rapidez sem nunca perder o fôlego”

“Oficina de escritores: manual para a arte da ficção”, de Stephen Koch, tradução de Marcelo Dias Almada (Editora Martins Fontes: 2008) p. 153-154

08/02/2011

Tudo é ar

"Tamanha sabedoria como a minha veio de forma inconsciente, e vejo meu cérebro como uma massa de pensamentos hidraulicamente compactados, um fardo de ideias, e minha cabeça como uma lâmpada de Aladim lisa e lustrosa. Bem mais belos devem ter sido os dias nos quais o único lugar em que um pensamento podia se afirmar era o cérebro humano, e quem quisesse esmagar ideias tinha que compactar cabeças, mas nem isso teria adiantado, pois os pensamentos reais vêm de fora e viajam conosco feito a sopa de macarrão que levamos para o trabalho, ou seja, os inquisidores queimam livros em vão. Se um livro tem algo a dizer, ele queima com uma risadinha silenciosa, pois todo livro que preste se projeta para fora de si. Acabo de comprar uma dessas minúsculas máquinas que somam, dividem e calculam raiz quadrada, uma geringonçazinha menor do que uma carteira, e depois de tomar coragem e forçar a parte de trás com uma chave de fenda, fiquei chocado e me diverti ao não encontrar nada além de uma geringonça ainda mais insignificante — menor do que um selo e mais fina do que dez páginas de um livro —, isso e ar, ar eivado de variações matemáticas. Quando meu olho pousa em um livro real e olha a palavra impressa, o que ele vê são pensamentos descarnados voando pelos ares, deslizando no ar, vivendo do ar, voltando para o ar, pois, no fim, tudo é ar, assim como a hóstia é ar, e não sangue de Cristo."

Uma solidão ruidosa, Bohumil Hrabal. (Companhia das letras, 2010) Tradução: Bruno Gomide p. 8

04/02/2011

Pequena epifania do boteco copo sujo

Eu não tinha nenhum motivo pra sair da cama, nem um relógio programado e ficava quieto ouvindo por um longo tempo o barulho de passos nos cômodos da casa, portas batendo e a descarga no andar de cima, portas batendo e sapatos descendo escadas e o barulho de pulseiras nos braços de quem descia as escadas, o barulho de carros descendo a rua, dois sujeitos conversando sobre uma tal de Mariana, descendo a rua até se afastarem e o diálogo submergir no silêncio anterior, até outros carros aparecerem, cada vez mais carros e mais sujeitos descendo a rua (ou será que subiam?), sons que subiam até à janela, mesmo fechada, três andares acima, me forçando a participar da conversa sobre Mariana, ou Antônia, Rafaela, Juliana, aula de Matemática( ou Geografia?), imaginar uma queima de estoque no próximo sábado (ou seria segunda?), descendo a rua (ou será que subiam?), pessoas, motivos enfiados em casacos, mãos nos bolsos sob guarda-chuvas e os carros acelerando por um motivo, descendo a rua e deixando seus barulhos pra trás, pra cima, debaixo da minha janela por um motivo, enquanto eu queimava os giros do relógio deitado, sem nenhum motivo pra sair da cama, mas vinha a vontade de fumar e eu levantava, sem nenhum motivo além dessa necessidade impingida artificialmente, mas levantava, levantava pensado que aquilo que me matava aos poucos, tragos que desciam o esôfago para apodrecer alvéolos e sujar meu sangue e amarelar os dentes na volta, era a coisa mais relevante naqueles dias, mas levantava, não era um motivo igual aos motivos dos carros descendo a rua (ou será que subiam?), era um incômodo, um incômodo que me obrigava descer até a rua com os bolsos estufados de moedas, fazendo barulho enquanto descia as escadas do prédio, barulhos ao caminhar com as mãos nos bolsos, barulhos na palma da minha mão enquanto conferia o valor e tocava a textura fria das moeda e escolhia um cigarro desses mais baratos, mesmo desejando outro, e inferindo que não importava, bastava me livrar do incômodo, e perguntar se a mulher com as raízes do cabelo escuras tinha fogo, e tragando a fumaça do fósforo junto da fumaça do cigarro e o leve enjôo no estômago vazio (outro incômodo), e a fome que surgia de repente, a soma de vazios acumulados durante toda noite em silêncio, porque nem música eu suportava, e assim que terminasse esse cigarro, já na porta do prédio, a fome seria o incômodo maior, e voltar para a cama seria impossível diante da fome, que ali, subindo as escadas teria que planejar alguma coisa pra comer (outro incômodo), e assim foi feito, e no meio da refeição, mascando pedaços suculentos de carne de porco descongelada as pressas, lembraria da conta de luz (outro incômodo) e que me faltava dinheiro (talvez o maior dos incômodos) e que certamente cortariam a luz na próxima semana se eu não fosse até lá choramingar como um cão (o teatro não seria um incômodo), choramingar como um inválido sem muletas, bem equilibrado e com os joelhos em perfeito estado, juntas no lugar, gaguejando e soltando atos falhos um atrás do outro; ir lá pedir dinheiro pra continuar aqui, às vezes deitado, às vezes sentado, e quase sempre num boteco copo sujo, deduzindo que a vida se move por incômodos e não por projetos, sem incômodo ninguém faz nada, e que incapacidade de se incomodar é incapacidade de viver; e o Nirvana é um grande incômodo assimilado através de ascetismo e meditação silenciosa, e que a pobreza involuntária ou voluntária oferece uma vida próxima à vida de um santo, à beira do balcão, embora raivoso diante dos imbecis e enternecido diante dos cachorros esfomeados e dos cachaceiros e suas histórias tristes sobre uma mulher irreal e imaginária, às vezes mostrando uma foto, e me levando as poucas moedas e três ou quatro cigarros e apertando a minha mão e falando que eu era um cara gente boa, e que a gente era amigo, e eu jamais me esquivava, porque me sentia bem no meio daqueles desgraçados, porque me restava o ranço da juventude que eu usava como argumento pra dizer pra mim mesmo que eu era melhor que eles, que tinha uma mulher que me ligava às vezes, ou mandava recados, e que a gente fodia por três horas seguidas e ela até falava que amava, algumas vezes dizia que eu era o cara que a ensinou o que era gostar de alguém de verdade, seja lá o que for que ela entedia por gostar de verdade, embora aquela coisa toda fosse uma fantasia tão irreal como as mulheres nas cabeças dos cachaceiros que apertavam minha mão e me chamavam de amigo, porque no fim das contas aquela desgraçada tinha outro cara e eu era o estepe que ela usava pra descarregar as fantasias, criar uma bolha apartada da vida e todos os malditos incômodos que fazem cada um dos desgraçados sair da cama e aturar uns aos outros por aí, e eu apertava a mão daqueles desgraçados e cachaceiros porque intuía (até sentia) algo evidente; que seria eu com uma foto surrada no bolso, implorando por moedas, e apertando a mão de um rapazinho qualquer e contando essa coisa toda, que não tinha nenhum motivo pra sair cama e saia pra fumar e beber e zanzar por aí sem rumo, apertando a mão do rapazinho e dizendo que ele era gente boa e que a gente era amigo.

02/02/2011

"Deus, política e óculos escuros"

A troca de e-mails entre André Conti e Daniel Galera no blog do IMS, tá sensacional:


"É mais ou menos a sensação que tive durante meses antes de ir a Garopaba, e que resultaram na própria ideia/decisão de vender tudo e me mudar pra Garopaba, onde eu não conhecia ninguém e poderia nadar no mar todo dia de manhã cedo. Todavia, dessa vez não há uma ideia/destino como Garopaba, somente a sensação urgente de isolamento e dedicação total a algo sem sentido – no caso, o principal “algo” é terminar meu livro.

Contemplo com muita seriedade a ideia de erradicar minha presença em sites e redes sociais de qualquer espécie, e a sensação se estende também para os eventuais (e precários) relacionamentos com mulheres e a uma parte dos amigos, mas não se estende à família e aos amigos mais queridos. Não farei nada disso, obviamente, mas a sensação tem sido tão frequente que já desenvolvi um mecanismo de defesa que entra em ação no mesmo momento e me impede de tomar as atitudes descritas, e pela manhã, ou ao passar o trago ou sumir a consciência das fragilidades do ego, me sinto grato por ter tido a presença de espírito de não tomar nenhuma atitude precipitada, infantil, egoísta e patética. Todavia, em seguida aflora a consciência de que esse conjunto de atitudes precipitadas, infantis, egoístas e patéticas seriam exatamente as mais recomendadas, corretas e sinceras com relação ao meu propósito na vida nesse momento – escrever – e a um temperamento que continuadamente renega a interação social constante e as proximidades afetivas, embora no fundo as ligações afetivas em minha vida existam e sejam fortes, mas como que operando num nível aquém da experiência cotidiana ou mesmo da experiência possível.

É muito estranho, como se eu precisasse continuadamente lembrar que a solidão deve ser apreciada porque é a minha natureza, mas se é a minha natureza, porque eu deveria me lembrar conscientemente disso com tanta frequência? Tenho a sorte de conhecer minha natureza em profundidade, mas o azar de considerar duro e lamentável demais levá-la a cabo em plenitude, então vivo no meio do caminho, sem esquecer do mergulho radical que nunca darei, e ocasionalmente tirando proveito de certas condutas sociais que me exigem esforço tremendo e são contrárias ao chamado “ser vital”. Há em algum lugar essa promessa não cumprida que me assombra diariamente.

Tem alguma coisa aí, mas não sei direito o que é."

Daniel Galera, Deus, política e óculos escuros. Inblog do IMS


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