26/01/2011

Porque.

“Preferia formular a pergunta assim: Por que se escreve? Faz tempo, quando eu era jovem, ouvi Samuel Beckett responder: “Não me resta mais nada”. As respostas possíveis são todas plausíveis, mas com um ponto de interrogação. Escrevemos porque tememos a morte? Porque temos medo de viver? Porque temos saudades da infância? Porque o tempo passado correu depressa ou porque queremos detê-lo? Escrevemos porque, por causa da melancolia, sentimos nostalgia, arrependimento? Porque queríamos ter feito uma coisa e não a fizemos ou porque não deveríamos ter feito algo que fizemos e não devíamos? Porque estamos aqui e queremos estar lá e se tivéssemos lá teria sido melhor ficar aqui? Como dizia Baudelaire: a vida é um hospital onde cada doente quer mudar de cama. Um sujeito pensa que se curaria mais depressa se estivesse perto da janela e o outro acredita que estaria melhor junto ao aquecedor.”

25/01/2011

A frieza

“A frieza ocorre na ficção sempre que o autor, por meio de um lapso qualquer de autocomplacência, se revela menos ocupado com suas personagens do que deveria... A rigor, a frieza caracteriza o escritor que apresenta informações e não desenvolve – não as trata com a atenção e a gravidade merecidas. Ampliaria o termo a aplicá-lo também a uma insensibilidade maior: a incapacidade do escritor em reconhecer, antes de mais nada, a seriedade das coisas; ao escritor que se afasta dos verdadeiros sentimentos, ou vê apenas o superficial num conjuntos de vontades, ou nada sabe a respeito do amor, da beleza, do sofrimento, exceto o que alguém poderia apresentar com um texto cartão-postal. Com o sentindo assim ampliado, a frieza parece uma das falhas mais evidentes na literatura e na arte contemporâneas. É a frieza que às vezes leva o escritor a remendar a forma de modo cada vez mais obsessivo; que leva os críticos a aderir a linhas de crítica que demonstram cada vez menos interesse na personagem, na ação e nas idéias explícitas da história... a frieza é, em suma, uma das piores falhas na literatura”. 

Jonh Gardner, The art of fiction, p. 177 In: Oficina de escritores: manual para a arte da ficção, Stephen Koch. Tradução de Marcelo Dias Almada (Editora Martins Fontes: 2008) p. 177.

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“Você vem fazendo grandes progressos, mas permita-me repetir-lhe um conselho: escreva com mais frieza. Quanto mais a situação é sentimental, tanto mais frieza é necessária para escrever, e o resultado é mais sentimental. Não convém açucarar.”

Anton Tchékhov, em carta a Lídia Avílova, Moscou, 1º de março de 1893 Sem trama e sem final: 99 conselhos de escrita. Tradução de Homero Freitas de Andrade (Editora Martins Fontes, 2007) p. 80.


20/01/2011

Tempo das cartas

Fico imaginando como seria essa comunicação se estivéssemos no tempo das cartas. E que cada carta demorasse quatro, cinco, seis dias pra chegar. Fico pensando na aflição de ficar à janela, fumando um cigarro atrás do outro e aguardando o carteiro. Uma espera amarela. Indo conferir a caixinha do correio procurando teu nome e encontrando só a conta de luz, a cobrança do banco, prestação atrasada nas Casas Bahia e nada de carta. E essa demora que já parece infinita, de horas (concretamente a espera é breve, é claro) até que você leia meu e-mail (e sorria, e tenha uma espécie de alívio ou sopro de ar) e responda, relendo o e-mail responda apertando esse teclado aí, (ouve uma música?) e cada vez que completa uma frase, para, puxa uma imagem na sua cabeça, uma memória daqueles momentos nossos (a caminhada, abraço amassa pão ou o café?) , ou talvez uma fantasia futura, e tento crer que isso tudo é veloz, mas ainda sim é uma espera infinita, e tento recorrer à imagem das cartas antigas e do trabalho ao enviá-las, imagino como seria amplificada e ainda mais infinita à espera (antiga), escrever a carta à mão e levar ao correio e enfrentar uma fila tediosa, e aflito, naquilo que seria à espera de uma carta à moda antiga, viajando de ônibus, atravessando o estado e passando nas mãos do carteiro pai de família ou jovem estudante, amassada, misturada à outras cartas, talvez iguais e diferentes, letras diferentes, talvez datilografadas no meio da noite, algumas histórias assim, iguais, dessas que começam do nada e sem saber de onde vieram, com o sabor da surpresa, desarmando qualquer categoria de experiência ou suposta experiência anterior, dessas histórias que avançam pra romper com o tédio inerente à vida, dessas histórias que preenchem lacunas, histórias construídas e vividas pra se contar no depois, contar pra si mesmo (na memória), contar para o outro (e pra si mesmo também) e acima de qualquer coisa, contar um para o outro, lembrar junto, nesse nosso depois que se anuncia e me dá medo e conforta, que assusta e dá coragem. Imagino como seria essa carta que chegaria com tua letra riscada na borda, imagino essa carta demorada pra pensar que esses e-mails são rápidos, tento acreditar que há realmente uma rapidez nessas cartas feitas de bits e caracteres, atravessando ondas de rádio e cabos de fibra ótica, imagino à moda antiga pra contrastar, pra me convencer que esses e-mails são velozes de verdade, e preciso crer que são velozes de verdade, que são muito rápidos, que tuas palavras não dão espaço e que minhas palavras também não dão espaço, que as lacunas estão preenchidas, e preciso acreditar que são rápidos pra ficar mais tranquilo, pra não ficar ansioso, e no meio de uma leitura ou de um texto que avança lento, onde o rapaz do lavajato encontra a tímida a garota da loja de conveniência, quando a ansiedade me sobe pela boca do estômago, e me faz interromper tudo, perder o fio da meada, então venho aqui conferir, ver se a nova mensagem já chegou, se seu nome está nessa caixa de correio com ar de fumaça, alguma coisa meio nuvem, feita de bits, onde teu nome ganha uma estrelinha cada vez que chega.

A/c editor cultura segue resp. cf. solic. Fax

“11) Porque a pintura proporciona uma sincronia de impressões, um abarcamento quase simultâneo, onde tudo é dado ao mesmo tempo e sob um mesmo olhar. Uma paisagem, um rosto, um corpo, cores, sombras, vazios, todos esses elementos coabitantes de uma mesma tela agem em conjunto sobre o observador como um catalisador de uma série de emoções que, até então, poderiam estar adormecidas nele. A escrita, por sua natureza discursiva, não conta com a força de impacto que pode ter a simultaneidade da percepção; a leitura é linear e sua ordem é imposta de forma autoritária pelo escritor. Acho que a carga expressiva da imagem, que suplanta a palavra, acaba fascinando os escritores. Não é à-toa a atração, e em alguns casos a amizade intelectual, entre escritores e pintores como Baudelaire e Delacroix, Zola e Manet, Borges e Xul Solar, o próprio Cortázar e seu quase fascínio por De Chirico e Magritte e Taulé e Julio Silva e tantos outros. Creio, enfim, que um verdadeiro quadro chama, quase obriga o observador a um outro ponto de vista, a uma outra maneira de se posicionar em relação ao que se apresenta à sua frente, e que é diferente daquela que ele normalmente utiliza para ver tudo o que o cerca. É evidente que isso pode ser ampliado: a verdadeira arte desvirtua, desloca a ordem. As instalações que se multiplicam aos milhares nas exposições de arte contemporânea jogam basicamente com isso. Dispor objetos domésticos numa praia deserta não vai muito além disso. Se transpusermos para a ótica da normalidade cotidiana, a leitura que podemos fazer é que se trata de uma loucura. É por isso que o fato de o personagem do conto “enlouquecer” é menos um testemunho sobre seu estado mental do que uma subversão à ordem, uma queda fora do espaço da lógica aceita como normal. Talvez a pintura entre neste conto como uma pequena crítica à própria literatura. A ruptura, a transformação de uma maneira viciada de ver as coisas é muito mais fácil através da pintura do que através da literatura. Uma mulher sentada segurando um leque na mão direita, com o pescoço um pouco inclinado e o braço esquerdo displicetemente pendido sobre as pernas nunca vai ser somente isso depois de Modigliani.”

do conto A/c editor cultura segue resp. cf. solic. Fax, Os lados do círculo, Amilcar Bettega (Companhia das letras, 2004), páginas 109, 110.

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aliás, comecei um Tumblr novo com citações: aqui.

19/01/2011

Oficina de escritores, Stephen Koch


Ontem eu tava lendo “Oficina de escritores: manual para a arte da ficção”, de Stephen Koch, tradução de Marcelo Dias Almada (Editora Martins Fontes: 2008). É um livro divertido e me fez pensar numa porrada de coisas.

Stephen Koch lecionou durante vinte e um anos escrita criativa na pós-graduação da Universidade de Columbia e durante sete anos na graduação da Universidade de Princeton. Ainda não terminei o livro, mas, até o momento, Koch não citou quem foram os alunos que passaram por ele, se algum realmente foi bem sucedido após frequentar suas oficinas. Fiz uma rápida pesquisa na internet, e estranho, o senhor Stephen Koch não tem sequer um verbete na wikipédia. Não que isso seja necessário para dar credibilidade ao trabalho, mas, sempre que me deparo com um sujeito palestrando sobre “receitas para o sucesso” e não apresentando dados concretos, é inevitável recorrer ao “complexo de Richard”, o pai da Little Miss Sunshine e sua célebre palestra sobre como se dar bem, na abertura do filme, numa sala cheia de cadeiras vazias. Pode ser também que o Sr. Koch seja um desses sujeitos mais reservados e não queira expôr resultados de maneira quantitativa. Mostrar quantos alunos passaram por suas aulas, quantos publicaram depois do curso de escrita criativa, quantos seguiram adiante na carreira de escritor, quantos produziram obras realmente relevantes. Seria pelo menos interessante, não é? Não que uma oficina seja uma indústria de talentos, forjando sujeitos aptos a boa literatura. Uma oficina não faz milagres, mais ou menos como qualquer curso superior ou uma pós-graduação. Já conheci pessoas que saíram da faculdade sem saber interpretar um texto, outros com a alcunha de doutores, teses e teses publicadas, e completamente imbecis.

Mas o livro não é picaretem, pelo menos até o momento não pareceu.

Claro, há algumas obviedades. Tipo, como uma descrição com termos concretos funciona melhor em relação a uma descrição com termos abstratos, como mostrar através da ação funciona melhor do que dizer, etc. Essas coisas que qualquer leitor, escritor aspirante, com o mínimo de leitura entende. E claro, se você escreve, logo descobre que não há receitas. Que não dá pra esperar pela inspiração. Que o melhor momento pra escrever é qualquer momento. E que os grandes autores criam seus caminhos, apesar de toda a adversidade. E que essas receitas no início até ajudam, te ajudam a experimentar as várias formas de dizer alguma coisa, de contar uma história, mas depois são um entrave, principalmente quando você precisa encontrar aquela voz que te distingue de todas as outras vozes, aquela voz que faz do teu texto algo válido e minimante relevante. E pra encontrar essa voz, bom, aí não tem receita, senão escrever.

Afinal, só se escreve escrevendo. Às vezes acontece de você esperar pelo momento ideal, mas não existe momento ideal. E se existe uma coisa que aprendi nesse breve caminho inicial de escrita é o seguinte: quanto mais se escreve mais motivado se fica. Não adianta esperar pela motivação pra escrever. Esperar pela ideia genial, esperar pela inspiração, esperar pelo momento ideal e pela motivação; são pequenas desculpas que a gente inventa pra adiar a escrita, pra deixar para o dia seguinte.

Vai esperando...

Você só terá um texto para melhorar e torná-lo apresentável se escrevê-lo. Você só terá uma história, enredo, personagens, forma, estrutura, diálogos, se você escrever essas coisas. Se você escrever essa história. Não adianta esperar pela ideia genial que cai pronta do céu e toma o controle como um espírito toma conta de um médium. Não adianta querer que a coisa jorre genial desde a primeira frase.

A maioria dos jovens escritores e aspirantes querem ser Guimarães Rosa, Clarice, Bukowski ou J. K. Rowling desde a primeira frase, da primeira versão, do primeiro texto que se dispõe a escrever. Querem revolucionar a literatura ou vender milhões. Querem que os editores batam em suas portas e dêem tapinhas nas suas costas e digam que são gênios. Querem já na primeira frase ter seu nome estampado nas livrarias, nos cadernos de cultura, querem assinar um contrato com a Companhia das Letras e ir na Flip. E ficam pensando nessas coisas, e não escrevem. Ficam nos bares reclamando, na mesa de bar, e não escrevem. E acham tudo uma bobagem (porque estão de fora) e tecem textos virulentos reclamando do mercado literário, de editores maus, do coitado do leitor burro e desinteressado e do sistema literário injusto. (geralmente, como apontado nos comentários de um post anterior, o sujeito reclamão que diz "ninguém lê", na verdade, está dizendo ninguém ME lê).

Afinal, pra que ficar aí desferindo seu ódio adolescente às coisas?

Um escritor geralmente está ocupado demais escrevendo alguma coisa pra se preocupar com essas bobagens, diria Faulkner.

Se você diz que não tem tempo pra escrever, então, meu caro, desista. Porque se você não encontra tempo pra escrever é porque está ocupado demais com outras coisas mais importantes pra você. Então vá cuidar dessas coisas e desista de escrever.

Ps: acho que escrevi esse texto pra mim mesmo, ou não. 

18/01/2011

Quase listas

Não fiz listas/resumos sobre o ano que passou, mas vamos lá, nunca é tarde. (aviso: não refletem qualquer critério científico, critérios puramente sentimentais, logo)

Músicas.

1)   Perfect day Elise, PJ Harvey, Is This Desire?: 1998.
2)   Prospectors Arrive, Jonny Greenwood, There Will Be Blood: 2007.
3)   The Poet Acts, Philip Glass. The Hours. 2002.
4)   La Mer, NIN, The Fragile [Disc 1]: 1999. 
5)   In Limbo, Radiohead, KID A, 2000.
6)   Gravity, The Notwist, The Devil, You + Me, 2008.
7)   Anyone ghost, The national, High Violet, 2010. 
8)   Islands, The XX, xx: 2009.
9)   Tear You Apart, She Wants Revenge, She Wants Revenge: 2006.
10) Heart and Soul, Joy Division, Heart and Soul [Disc 2] "1998".
11) Celestica, Crystal Castles, Crystal Castles II: 2010
12) I See You, Sissy, All Under: 2006.


Livros mais marcantes(desculpe o aspecto brega no adjetivo marcante)

"Moby Dick", Herman Melville. ( livro emprestado, não lembro a edição)
"As laranjas iguais", Oswaldo França Jr. (Ed. Nova Fronteira, 4ª edição, 1985.)
"Bartleby, O Escrivão", Herman Melville. (livro emprestado, não lembro a edição)
"Mãos de cavalo", Daniel Galera. (Companhia das Letras: 2006)
"68 contos de Raymond Carver", Raymond Carver. (Companhia das Letras: 2010).
"Sinuca embaixo d'água", Carol Bensimon. (Companhia das Letras: 2009)
"Bartleby e companhia", Vila-Matas (Cosac Naify, 2004).
"Linhas tortas", Graciliano Ramos. (Record: 16ª Edição. Record: 1994.)


Blogs:

(Tinha me esquecido do Desilusões Perdidas, do Duda Rangel)

Filme? "There Will Be Blood", "Paranoid Park", "Dogville".

Meme do ano: "embatuquei."

Publicação mais relevante: Prêmio UFES de Literatura 2010 e Suplemento Literário de MG, com o conto 4'33''.

Morei em três casas diferentes.

Quando a gente chega de avião à São Paulo, consegue ver uma camada espessa, preta, como um lençol negro pairando sobre os prédios.

Não tive como ir ao enterro do Tio Orlando.

Seleção saiu da Copa antes que eu pudesse assistir um jogo com meu pai.

Não joguei mais futebol.

Zerei "Call of duty: Modern Warfare 2."

Não importa o que você faça, faça bem ou mal, sempre tem alguém pra achar o que você faz ridículo.

Comecei um diário e abandonei com o mesmo empenho.

Quaresma, meu gato, matou uma cobra à unha na porta da cozinha.

Livro em progresso avança lento.

Pior dia:  ?

Melhor dia: 16/07.

Enfim> Vida.


17/01/2011

Tragédias

A tragédia desperta sentimentos variados em quem vê à coisa de longe, de fora. Vão da indiferença completa até as lágrimas de uma dor profundamente compartilhada. Desperta reações diversas como diversas são as pessoas, cada um no seu mundo particular, vivendo como bem lhe convém.

Há quem diga que a coisa estava anunciada, esperando pra acontecer e ninguém tomou providência. Há quem evoque uma tautologia feroz e diga que a culpa de construir casas naqueles lugares é das pessoas que construíram as casas naqueles lugares, como quem diz que a pobreza é culpa dos pobres e a mendicância culpa exclusiva dos mendigos. Antes ele do que eu, há quem diga e agradeça à Deus. Há quem prefira o silêncio, como quem sabe que a melhor maneira de ajudar é não atrapalhando.

No fundo, essas tragédias são um prato cheio para os intelectuais. Sempre aparecem sujeitos prontos a sofismar em cima dos cadáveres, ainda frescos sobre a lama e entulho. Recorre-se sempre ao xingamento das autoridades competentes, políticos malandros (que nós elegemos) e todos esses clichês comuns neste país de sub-alfabetizados, da lógica do fogo de palha e da consciência tranquila a qualquer custo. Imprime-se jornais aos montes, com gráficos, fotos, argumentação polida, onde sujeitos de boa educação, que leram Foucault e Robert Kurz, que falam três idiomas e passam as férias na Europa, assinam seus nomes pomposos e importantes e nós, de cá, acatamos como verdade, o senhor tem razão. E quando vem a chuva, é esse mesmo jornal, rolando pra dentro do boeiro, entupindo, causando enchentes.

Dizem que o momento é de solidariedade, afinal, o brasileiro é um sujeito solidário, alegre, etc etc; dizem, também, que é o momento de estabelecer uma postura de cobrança efetiva frente às autoridades competentes, dos políticos malandros (que nós elegemos); pois é óbvio que, num governo minimante decente, tragédias como essa não carecem de um apelo à solidariedade individual como solução, porque, com a quantidade de impostos que pagamos, seria sensato haver instituições prontas a promover uma política de resguarda diante de tais eventos, além, é claro, de lidar com situações emergenciais com operacionalidade efetiva; afinal, dizem, é necessário pensar a longo prazo, transcender mandatos e focar as políticas estruturais. 

Dizem muitas coisas, é verdade, mas, no fim, não dá pra parar de pensar naqueles que precisam enterrar seus mortos, aprender a lidar com o luto e com a falta que não pode ser suprida.

15/01/2011

Black Swan: técnica x pulsão

Dias desses assisti “Black Swan” (2010), e acabei lembrando de “Paris não tem fim”. Eu que não sou lá um cinéfilo(acabo de fundar a tag cinema aqui), acabei gostando do filme por motivos estranhos. Se você não viu o filme, não leia isso, porque vou rechear o texto de spoliers. 

O enredo é aparentemente simples. Nina (Natalie Portman), atormentada por atingir uma suposta perfeição, deseja o papel da Rainha Cisne no famoso espetáculo O Lagos dos Cisnes. A Rainha Cisne é composta de duas faces: o Cisne Branco e o Cisne Negro. Nina é detentora de uma técnica perfeita, movimentos milimétricos e que, por isso mesmo, deixam transparecer artificialidade.

O coreógrafo Thomas Leroy (Vincent Cassel), diz que Nina tem toda a potencialidade para encarnar o Cisne Branco; mas, falta a pulsão necessária a interpretação do Cisne Negro. E nesse jogo de claro e escuro, Nina tenta romper com suas limitações de maturidade e sexualidade para atingir visceralidade necessária a interpretação perfeita. Essa fusão de técnica e visceralidade, de claro escuro, vai se desenrolando ao longo do filme numa metamorfose psicológica incluindo delírios e paranóias, que tenta ser tensa (eu, pelo menos, não senti a tensão, mas tudo bem). De toda forma, entende-se muito bem as deixas do diretor Darren Aronofsky (o mesmo de Requiem for a Dream, 2000), entende-se até demais. O filme consegue ser didático nas metáforas e simbologias, e isso chega a ser esquisito. 

Estende-se, por exemplo, que a cena de sexo lésbico encarna uma simbologia antropofágica ambivalente: Nina devora Lyle (Mila Kunis) para possuir suas características, já que Nina, paranóica, projeta em Lyle o ideal do Cisne Negro, e Lyle devora Nina; nas paranóias de Nina, Lyle deseja roubar seu lugar. Mas não é o bastante, então, mais à frente, feito um gafanhoto fêmea, ou num complexo de Édipo torto, Nina acaba matando Lyle simbolicamente através de um delírio para assumir o lugar do Cisne Negro, só que, no fim das contas, mata a si mesma, afinal, são projeções de sua cabeça perturbada. 

Quando atinge a suposta perfeição, padece através do suicídio igual padece à personagem que ela interpreta. Se aniquila na fusão completa de arte e vida, da fusão completa entre esforço técnico e pulsão artística, da fusão completa entre representação e expressão visceral.

O filme é tão correto como um balé bem ensaiado. Nenhuma cena, fala, trilha, nada fora do lugar, nada é gratuito.  Daí, que eu acho, que o filme, formalmente falando, tá mais pra planilha milimetricamente calculada de um Cisne Branco, do que pra sedução e pulsão de um Cisne Negro, e, nesse sentido, deveria se chamar Cisne Branco e não Cisne Negro. [Poderia se encaixar na categoria de tragédia, no sentido de tragédia clássica, mas como não há conhecimento prévio do fado da personagem... com boa vontade, se encararmos a autoflagelação como pista de um suicídio evidente, talvez, mas acho pouco, afinal. a autoflagelação por um lado é um sintoma físico da pertubação/sintoma da metamorfose, e representa uma depuração rumo à perfeição desejada pela personagem, assim como os religiosos o fazem. ]

E isso é engraçado. Porque o cisne negro é, além de tudo, o símbolo da imprevisibilidade. (ver aqui

" cisne negro é um acontecimento improvável e que, depois do ocorrido, as pessoas procuram fazer com que ele pareça mais previsível do que ele realmente era."

Será que eu caí nessa armadilha? Se caí, o filme é absolutamente genial.

Por outro lado, Black Swan, de imprevisível, não tem absolutamente nada. Falta ambiguidade. Não há o mínimo esforço de parecer imprevisível. Só admitindo que a mais monstruosa imprevisibilidade está justamente encarnada numa bizarra e perfeita previsibilidade. 

Mas aí seria forçar a barra demais, eu acho. 

*

(forçar a barra vai ser agora)

Mas não era isso que eu queria falar. Eu tava pensando era nesse jogo técnica/pulsão que o filme esbarra, com relação à escrita cerebral e escrita intuitiva, voltando à “Paris não tem fim”

Primeiro à escrita cerebral ou o “cisne branco”, o jovem alter-ego de Vila-Matas, pedindo um conselho a Marguerite Duras: 

“ ' Um conselho, é disso que preciso, de ajuda para o romance', Marguerite entendeu dessa vez perfeitamente: 'Ah, um conselho', disse, e me convidou a sentar ali na ante-sala (...) voltou depois com uma apostila que parecia uma receita médica e continha algumas instruções que podiam – disse-me, ou acreditei entender que me dizia – ser úteis para escrever romances. Peguei a apostila e fui direto para rua. Li as instruções que continha (...) e notei que de um só golpe caía todo o peso do mundo sobre mim. Ainda hoje me recordo do pânico imenso – o calafrio, para se mais exato – que senti aos lê-las:
1.Problemas de estrutura. 2. Unidade e Harmonia. 3. Trama e história. 4. O fator tempo. 5. Efeitos textuais. 6. Verossimilhança. 7. Técnica narrativa. 8. Personagens. 9. Diálogos. 10. Cenários. 11. Estilo. 12. Experiência. 13. Registro lingüístico.” 

Agora, o “cisne negro” e a escrita visceral-intuitiva, quando o narrador descreve a mesma Marguerite Duras que havia lhe entregado a apostila: 

“Eu a recordei sempre como uma mulher violentamente livre e audaz, que encarnava a si mesma e com sentimento de urgência – com seu inteligente uso, por exemplo, da libertinagem verbal, que em seu caso consistia em sentar-se numa poltrona de sua casa e, com verdadeira ferocidade, despachar com gosto – todas as monstruosas contradições que reúne o ser humano, todas essas dúvidas, fragilidades e desamparo, individualmente feroz e busca do desconsolo compartilhado, enfim, toda essa grande angústia que somos capazes de desdobrar frente à realidade do mundo, essa desolação da qual são feitos os escritores menos exemplares, os menos acadêmicos e edificantes, os que não estão propensos a dar uma correta imagem de si mesmos, os únicos de quem não aprendemos nada, porém os únicos que têm a rara coragem de se expor literalmente nos seus escritos – onde despacham com gosto – que admiro profundamente porque somente eles vão fundo e me parecem escritores de verdade.” 

Entendeu o que eu tô querendo dizer, leitor? 

Pois é, é uma relação capenga, mas isso é falta de ter alguém em quem descarregar essas relações improváveis. Se você chegou até aqui, você tá com paciência. E, aliás, obrigado.

14/01/2011

“Paris não tem fim”, Enrique Vila-Matas

A juventude é uma desgraça. Não vemos isso, ou porque somos jovens, geralmente bitolados num ponto vista que justifica a realidade como um todo e nossa postura imbecil e estreita diante das coisas; ou porque somos velhos nostálgicos, agarrados a visões melhoradas de nós mesmo e de um suposto mundo antigo, reconstruído artificialmente pela memória.

Ou não.

Talvez envelhecer seja a maior das mentiras, apenas o costume e o hábito impondo sua força, nos achatando, forçando a baixar a cabeça e acatar ordens ulteriores, internalizá-las e assumir imposições como se fossem atos genuínos [existem atos genuínos?]; e, essa suposta serenidade supostamente conquistada, a larga experiência construída ao longo de anos que viraram pó, apenas um misto de condicionamento e adaptação pacífica.

No entanto, resta a ironia.

E é a ironia a saída encontrada pelo narrador de “Paris não tem fim”, Enrique Vila-Matas [tradução: Joca Reiners Terron], Cosac Naify, 2007. O romance é estruturado a partir de uma conferência sobre a ironia, onde o narrador, alter-ego de Vila-Matas, rechaça seus anos de juventude em Paris e de formação como escritor, quando vivia numa água-furtada alugada da escritora Marguerite Duras [a divertida personagem que se comunica em seu francês superior].

O que a primeira vista poderia ser um simples romance de formação de caráter [bildungsroman], é um romance de “deformação” do caráter. Através de uma visão irônica sobre si mesmo, o narrador alter-ego, tenta demolir as imbecilidades da juventude, [supunha que a elegância estava no desespero, era um escritor iniciante incapaz de verter o desespero, fingido ou real, em literatura, e o que é pior – e comum – supunha que estar desesperado é necessário para escrever bem]. São tantas imbecilidades, que se não fosse o fino trato de humor dado por Vila-Matas ao texto, a coisa se tornaria um dramalhão vergonhoso.

O livro é recheado de episódios metaliterários, e dialoga diretamente com “Paris é uma festa”, de Ernest Hemingway, grande ídolo do narrador. Mas, "diferentemente de Hemingway," - explica o narrador, "que lá foi 'muito pobre e muito feliz', fui muito pobre e infeliz". Um dos episódios mais interessantes do livro, é uma hipótese levantada sobre o sentido de “Gato na chuva”, o impenetrável conto de Hemingway. Além disso, transitam por "Paris não tem fim" sujeitos como Roland Barthes, Borges, Perec, Beckett, entre outros. 

Se bem me lembro, das minhas já empoeiradas leituras de filosofia, a fina ironia socrática destronava a seriedade da aristocracia grega, não a fim de destruir o outro, mas ascender o outro ao status “mais verdadeiro”. Vila-Matas, creio, ancora-se nessa estirpe de ironia. Procura a não-destruição de si, típica da ironia vulgar e tão comum nos nossos dias, mas a ironia como desvelamento de uma verdade.

Qual verdade?

Se na juventude, o alter-ego de Vila-Matas sonhava viver como Hemingway, nômade, boêmio, desesperado, ser um “escritor de verdade”, terminaria por ser tornar um sujeito agarrado à sua escrivaninha. O jovem que foi a Paris para se tornar “escritor de verdade” e cujo único aprendizado fora escrever à máquina.

Dentre todas as possíveis leituras, o livro é uma forte indicação a jovens autores [necessariamente imprudentes – e aqui coloco a carapuça], imbecis, que desejam ser “escritores de verdade”. “Paris não tem fim” serve como uma espécie de manual para demolir algumas ingenuidades, mas não leva a lugar-algum, senão talvez, a ironia: 

“Não inventamos nada, acreditamos inventar quando na verdade nos limitamos a balbuciar a lição, os restos de alguns deveres escolares aprendidos e esquecidos, a vida sem lágrimas, tal como a choramos. E à merda”

“Não inventávamos nada? O narrador de Molloy estava certo quando dizia isso? E aprender? Também não aprendemos nada? Seriam, por exemplo, os tão desgastados e vívidos e tão prestigiosos anos de aprendizado de um escritor mera falácia? Vivíamos sem aprender nada e então, simplesmente, como diria Beckett, íamos à merda? Será que essa a única coisa que podíamos aprender neste mundo era que não inventávamos nada? O golpe de misericórdia me foi dado por Arrieta, presenteando-me com o romance Jakob von Guten de Robert Walser. Abri-o na primeira página, comecei a ler: 'Aqui se aprende muito pouco, faltam professores e nós, os garotos do Instituto Benjamenta, nunca chegaremos a nada, quer dizer, no dia de amanhã seremos todos pessoas muito modestas e subordinadas'

Bonito panorama.

Lembro de um dia de chuva, sentado na terraço do Café Rien de la Terre da rue Saint-Anne, em finais de janeiro de 1976, pensando no livro de Walser e me perguntando se não seriam realmente um falso mito os famosos anos de aprendizado.

'Aprendi algo sim, nos últimos anos, aprendi a escrever à maquina, isso é certo', disse a mim mesmo pouco antes de chamar o garçom, pagar a conta e abandonar aquele café e de passagem abandonar os anos de aprendizado. 'E à merda', lembro que pensei.” [Cap. 105. pág. 228]

13/01/2011

Cíclopes

"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo de minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.

Tu me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, aproximam-se, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando indistintas, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água."

Júlio Cortázar, Rayuela. Cap. 7 Tradução de Fernando de Castro Ferro. Pág. 45. Civilização Brasileira. 14ª edição. 2009

05/01/2011

Cada um no seu buraco

Desde que nossos primos símios desceram daquelas árvores, perderam os pêlos e fundaram esse buraco sem fundo que é a consciência, instalou-se a encrenca. 

E cada um joga a isca da ilusão onde lhe convém. Afinal, sem uma boa dose de ilusão, ninguém suporta viver. Há quem persiga à riqueza, há quem corra atrás de glória, há quem queira curtir a vida em sua totalidade, quem só queira ser feliz, ter saúde, andar tranquilamente na favela onde eu nasci; ou atingir o Nirvana, ou conhecer o grande amor; ou pelo menos casar com alguém legal, dormir de conchinha e construir família. Há quem deseje morar na França ou tocar jazz em NY, passar no concurso da Petrobrás ou do Banco do Brasil. Há quem deseje fundar o próprio negócio, ou comprar uma casa em Ubatuba, ou criar a grande obra de arte, ou salvar a alma, o sangue de Jesus tem poder, eu vou para o céu, graças à Deus. Há quem junte dinheiro pra comprar um gol bola de segunda-mão e colocar aquele som da hora e passear pela cidade na maior curtição; há quem queira frequentar os lugares mais badalados e chiques, ou ganhar um milhão de reais [em barras de ouro que valem mais que dinheiro, é claro], ou aqueles que apenas desejam a casa própria, emprego fixo, a geladeira cheia. Pode até mudar o objeto, meta, a coisa a ser conquistada, comprada ou vivida; no fim das contas é o mesmo buraco. E cada um tampa o próprio buraco como pode, como melhor lhe convém; porque, aliás, ninguém tem nada com o buraco alheio. 

Não dá pra deixar os pêlos crescerem e trepar de volta nas árvores e ignorar o buraco. 

O que resta é tapar o buraco. Apegar-se às pequenas ilusões de grandeza, de estar com a razão, de fazer o que é certo, correto, de ser o melhor possível dentro das nossas possibilidades e tocar a vida em frente, ir fundo, no buraco. 

Mas a gente não consegue cuidar apenas do próprio buraco. A gente precisa trepar no muro e espiar como é que o outro tá resolvendo o buraco dele. Há uma necessidade de comprovação de que estamos cuidando melhor do nosso buraco do que qualquer outra pessoa. De que o outro, coitado, está cuidando do buraco dele da maneira errada, [porque a nossa maneira é a certa]. E não é pra ajudar, não. É pra dizer que a minha ilusão é melhor que a sua, que minha verdade vale mais que a sua, que eu sou melhor que você e sei cuidar melhor do buraco que você. 

Afinal, isso nos faz bem, não é? dá aquela sensação de superioridade, aquele riso silencioso: “eu sou mais legal que você, olha só como meu buraco é bom. Um belo de um buraco!” 

Nós precisamos muito disso. É uma necessidade primária. Se não praticamos esse hábito, a nossa ilusão de grandeza não resiste. Precisamos de contraste, de algo com o que comparar, estabelecer proporções,  escalas, axiologias; e só podemos fazer isso cutucando o buraco do outro: é inevitável. 

A primeira vez que espiamos já sentimos o buraco do outro como pior que o nosso. Ali um defeitinho na borda, um matinho crescendo em volta do buraco, oh, sim, é certamente um buraco mais feio, mais bobo, mais sem graça, inferior, errado, fora de moda.

Claro, afinal eu estou no caminho certo, não é? fazendo o que é melhor pra mim, não é verdade? [e só acredito nisso porque comparo imediatamente a minha vida aos dos outros, coitados, que estão errados, equivocados, perdidos]. Precisamos ajuizar as ilusões do outro pra sustentar a nossa ilusão; pra não duvidar das nossas crenças, metas, objetivos e desejos pessoais, realizados ou planejados. Pra dizer que nosso buraco vai muito bem, sim, senhor, muito obrigado.

Julgar, atestar que são piores, mais fracos que nós; é pra diminuir o fardo no lombo, aliviar esse fardo de ilusões que carregamos; é pra sentir-se vivendo o certo, o bom, o legal; ou, pelo menos, minimamente confiantes pra seguir em frente, atrás de alguma coisa, crentes de que cuidamos direitinho do nosso buraco, sim, senhor, graças à Deus.

"Ah, eu não julgo"

Não? Então desconfio que você não seja humano e esteja além dessa coisa patética, desse duelo de foices às escuras, que nós chamamos de vida.


02/01/2011

Marimbondos de fogo e o princípio do índio pelado

Primeira Missa, 1861, Victor Meirelle

O Brasil é o país em que a piada deu certo. Lembro de um humoristas [Veríssimo? não tenho certeza] explicando que, já nesse famoso quadro, da primeira missa, o humor brasileiro estava instalado. Que o germe do humor brasileiro está nesse índio arribado no galho da árvore, com as vergonhas de fora, ligeiramente inclinando, contemplando à celebração e adornos do sacerdote.

E não é que a história se repete?

Ontem, na posse da presidenta Dilma, a mulher escolhida para suceder “o cara”, a mulher que lutou contra ditadura e que, ontem, numa vibe Conde de Monte Cristo, passou em revista as tropas que a privaram da liberdade, emocionando muita gente [afinal nos adoramos uma narrativa épica]; ontem, depois de citar o poeta(sic) Guimarães Rosa, e do sopro festivo dos Dragões da Independência, do desfile de Rolls-Royce, com ou sem chuva, e de Sarney, o imortal, autor do fantástico “Marimbondos de Fogo”, jogar louros e adornos à celebrada presidenta, da mulher ascender à rampa que Vampeta desceu com cambalhotas, a figura do índio pelado apareceu novamente, assombrando a cena.

Enquanto feministas vibravam com a ascensão da mulher de fibra, bem sucedida e independente, assumindo o mais alto cargo do país; uma conquista de magnitude inimaginável há poucas décadas na nossa jovem democracia; enquanto Dilma vem exorcizar a figura arcaica da Primeira Dama, símbolo da esposa que resguarda as panelas da nação, um fato tão histórico e cheio de simbolismo como aquela primeira missa, onde os padres brancos, cultos, homens de Deus, vinham humanizar os selvagens atrasados; e ainda de ressaca pelas orgias de Ano Novo, talvez comendo um resto de chester Perdigão requentado no microondas, quebrando cabeça pra pagar o IPTU, IPVA, boleto de matrícula da faculdade, e eis ali, diante de nós, o insuperável índio pelado, encarnado na postura da belíssima Marcela Temer, miss Campinas e seu sorriso de paisagem,  a nossa Segunda Dama.

No mínimo, um paradoxo.