29/09/2011

Cabelo



Porque era muito cabelo, nunca tinha reparado nisso. Tinha reparado outras vezes, mas não como reparava agora. Era cabelo demais. Caía. E talvez porque fossem esses cabelinhos das pernas e dos braços misturados aos pelos pubianos, todos miudinhos, ali jogados, curtinhos e pretinhos estirados e amontoados no chão branco anemia daquele quarto de paredes rosas esmaecidas. 

Havia, claro, uns fios mais longos que ele logo identificava, era cabelo dela. E esses fios mais miúdos e mais raquíticos e desbotados, eram cabelos dele. De resto, os cabelinhos dele, e os cabelinhos dela, caíam misturados sem oferecer condição de saber qual fio era [ou tinha sido], dele ou dela [mas isso pouco importava, no fim das contas]. Ali sentado [enquanto ela passava creme no rosto, lá na outra ponta, de frente ao espelho do banheiro, a torneira jorrando e empurrado o silêncio do apartamento pra fora], ele deixava o queixo cair no rumo do chão branco anemia. Pensou em dizer a ela, já reparou na quantidade de cabelo que a gente perde?, mas não disse. Nem levantou a cabeça. Ficou ali parado olhando aqueles cabelinhos espalhados no chão e de repente imaginou que, se não houvesse vassouras, ou coragem de usá-las, logo os cabelos tomariam conta de tudo. Entupiriam o chão, os lençóis e o cobertor marrom. Emperrariam as dobradiças das portas, sufocariam as fechaduras, embuchariam as maçanetas. Feito o chão do barbeiro que ele gostava de frequentar, só que pior, bem pior que o chão do barbeiro que ele gostava de frequentar. Precisava fazer a barba, ele se lembrou. E levou a mão no queixo e pensou em perguntar pra ela se a barba estava grande demais ou se podia deixar crescer mais um pouco. Talvez apenas aparar as arestas, aqueles fios soltos e emborolados debaixo do queixo. 

Mas não, não disse nada.

Era muito cabelo ali no chão. E mesmo depois que varresse, ele começou a questionar onde ia parar tanto cabelo. Quase todo mundo tinha cabelo, e perdia cabelinhos das pernas e dos braços e os pelos pubianos pelo chão dos apartamentos de piso branco anemia. Onde ia parar tanto cabelo? Quanto tempo levava até que aquele cabelo todo se dissolvesse? O cabelo sumia, assim como se derrete gelo? Apodrecia e virava outra coisa? O que seria o cabelo depois que deixava ser cabelo?

Não sabia. Nunca tinha pensando nisso. Nunca tinha pensado direito. Talvez nunca pensasse direito em porcaria nenhuma, ainda mais em cabelo. O máximo que tinha feito era varrer aqueles cabelinhos, enfiar numa sacola e enfiar no lixo.

Não perguntou nada pra ela.

Ela massageava o rosto, ainda nua de frente ao espelho, e ele se lembrou de como haviam esfregado as coxas, sôfregos, esfregado todo o resto. Ele apertava o corpo dela contra a parede como se empurrasse uma rocha ladeira acima. Os calcanhares às vezes vinham de encontro ao chão num golpe seco, embora o suor escorresse das pernas. As mãos meladas atarracadas nas costas tencionadas.

Olhando aqueles cabelinhos todos, ele pensou que aqueles cabelinhos todos eram os restos da urgência toda que eles tinham de se tocar e se esfregar e sentir o outro como se precisassem assimilar e desaparecer no corpo do outro, naquela urgência toda e pouco se falava e só havia o chiado da fricção da pele contra a pele e esse cheiro empapado nas mãos úmidas e essa urgência atravessada na respiração disparando como se eles estivessem apostando uma corrida.

Agora, só restava aqueles montinhos de cabelo estirados no chão branco anemia. Aqueles cabelinhos eram tudo que restava.

O barulho da torneira sumiu. Quando ele deu por si, ela entrava no quarto, já de frente pra ele. Ela esticou a mão e tocou a cabeça dele. Deu um daqueles beijos que ela sempre dava, assim meio na orelha e no pescoço, escorrendo os lábios na nuca. Passou a mão no rosto dele, como se descansasse os dedos. Depois ergueu-se, indo no rumo do guarda-roupas.

“Tá na hora de aparar essa barba”, ela disse.

“É, você tem razão”.

Ele era capaz de sentir fios de cabelo crescendo. Enraizado nas axilas. Crescendo como uma planta parasita, agarrada a virilha, chupando toda a água do rosto.



27/09/2011

cometi um poema


São João Cabral de Melo Neto que me perdoe, mas cometi esse poema. 
____

O paraíso [depois] da esquina.

Os caras de Luminárias me disseram que as coisas mais legais estão em Lavras,
Varginha, Ouro Preto.
Mas os caras lá de Lavras, 
Varginha, Ouro Preto,
Contaram que o legal mesmo é BH.

Em BH, três caras me contaram que queriam ir pra São Paulo.
Em São Paulo, por sua vez, os caras me falaram que o legal mesmo é Porto Alegre.

Talvez seja.

Em Porto Alegre, no entanto, outros caras disseram: bom mesmo é Bueno Aires.
Em Bueno Aires, porém, na fila do cinema, no silêncio dos cafés, o assunto [mesmo quando não se falava], era mudar pra Paris.

Em Paris, alguém disse que cool é Barcelona.
Mas, em Barcelona, os caras disseram que cool mesmo é NY.

Em NY, três caras de terno planejavam fugir ao amanhecer pra Paris.
Em Paris, sete mocinhas entendiadas olhar blasé queriam viver em NY.

Os caras de Luminárias continuavam bebendo cachaça
e dizendo que as coisas mais legais estão em Lavras,
Varginha, Ouro Preto,

alguma coisa,
nalgum lugar,
depois da serra.

***

querendo ser outro,
igual o cara sozinho que encontrei na rodoviária
sapatos marrons de solado lascado,
esperando uma passagem,
como se outro 
só por ser outro 
fosse melhor que outro.


Trocar os sapatos e correr,
o paraíso [depois] da esquina.

***

Alguns caras de olhos cansados
sempre me disseram que o melhor de tudo é antigamente.


***

Uma velha cascavel,
em Luminárias, 
pela sétima vez,
abandona lascas de pele,
debaixo do sol.

Três caras,
em NY,
compram passagens só de ida pro Oriente.

E lá, 
à beira de um ovalado lago oriental,
embicado numa rocha escura,
donde a neve escorre e desaparece líquida
na liquidez da água,
um chinês toca flauta sozinho,
bebe um gole de chá enfumaçado,
e escreve versos
que só ele entende:

sonhava morar na Lua,
afogou-se.


21/09/2011

Oswaldo França Júnior, narrar para narrar.


Oswaldo França Júnior, 1948, com 12 anos de idade.


"O velho falava de um conhecido dele e da Maria que se chamava Inácio e que soube que sua mulher gostava de um cabo da polícia depois do cabo ter morrido. E ele havia perguntado à mulher se ela e o cabo tinham tido mesmo um amor. Ela respondeu que haviam se gostado, sim. E o Inácio durante toda uma noite ficou pensando naquilo e no dia seguinte, pela manhã, foi ao cemitério e começou a dar tiros na sepultura do cabo."

Oswaldo França Júnior, Os dois irmãos. p. 105.


Impressionante a quantidade de micronarrativas dentro desse livro. A quantidade de episódios dentro de episódios, e muitas vezes desligados da trama principal. E mesmo assim, o livro avança no ritmo correto. A estrutura do livro está enraizada na mais pura narrativa [se parece com Saer, em As Nuvens, embora as descrições abundem no texto de Saer]. O narrador, em terceira pessoa, narra apenas para abrir espaço paras as personagens narrarem. Histórias dentro de histórias, sem um sentido maior. Sem uma preocupação afetada demais com subtexto. A mão corre leve. Sem tiques, truques ou joguinhos. E não é fácil dar a impressão de apenas narrar e ainda sim provocar estranhamento.

***

De toda forma, há esse fruir da história, e nem por isso é um livro óbvio. Pelo contrário. É um livro estranho. Intrincado. Personagens perseguindo ou atormentados por metas inexistentes, absurdas, inatingíveis; enquanto "o homem" fica sempre questionando por que diabos fazem isso, em especial, o irmão:

"— Para que todo este esforço? Outros já procuraram por aqui e desistiram.

Mas o irmão não havia dado resposta. Havia continuado seu trabalho, raspando o fundo de manhã à noite. Lutando um dia inteiro contra a correnteza para amarrar em cima da água duas tábuas e um feixe de paus.

— Isto não vai levá-lo a nada — dizia o homem.

Mas ele não respondia. Continuava de cima da sua espécie de plataforma puxando a enxada que vinha do fundo cheia de lama e de pedras."

***

Há esse clima parecido com o Antigo Testamento, ou com O Castelo, de Kafka. Às vezes, é engraçado [mas, mesmo o riso é um riso esquisito], e mesmo quando é alegre é uma alegria estranha. Quando é triste é uma tristeza bonita, que acalma.

A mim, pelo menos, é isso que parece.

***

“E ele cansou de esperar que os peixes aparecessem e que os figos ficassem do tamanho de uma abóbora. Cansou também de ouvir as pessoas perguntando sobre o recado de Deus. E um dia pegou uma espingarda e foi para a serra. E lá do alto começou a atirar para cima. Os que escutavam os tiros perguntavam o que estava acontecendo com ele.

— O que está acontecendo com o Claudiano?

E tinham medo de ir até a serra. Até os soldados ficaram embaixo, esperando que ele parasse com os tiros para então subirem.

— O único que foi e conversou com ele foi meu irmão — disse o homem.

E contou que o irmão tinha dito aos soldados quando voltou:

— Claudiano não quer parar com os tiros. Mas eles estão terminando.

E os soldados lhe perguntaram:

— O que ele está fazendo?

— Está dando tiros para o alto.

— Mas por que está fazendo isto?

— Está atirando em Deus.

— Em Deus? — estranharam os soldados.

— Ele disse que Deus mentiu para ele. E por isto está lá em cima tentando acertá-lo.”

Oswaldo França Júnior, Os dois irmãos. p. 79-80.

20/09/2011

O silêncio em "There Will Be Blood"



São treze minutos sem diálogos na abertura do filme. Um homem sozinho cavando um poço. Pancadas de picareta, metal contra pedra, balde, carretilha. Uma explosão de dinamite, às vezes o vento que sopra. Os murmúrios, a respiração bestializada de um homem no fundo do poço. Um homem sozinho, cavando. Está tudo aí. Por vezes, a trilha estupenda de Jonny Greenwood sussurra, ganha vigor, estoura, desaparece, chia, conduz. O homem se arrasta. Outros homens. Agora, dois homens no fundo do poço. Falta ar no fundo do poço. Mas não, não se falam. A criança chora. Mais e mais homens. Mas não, ninguém se fala. O trabalho continua. O silêncio que sufoca. Um homem morre e mesmo assim ninguém se fala. O bebê chora. O pai tenta calá-lo. Silêncio.

***

O filho fica surdo depois de um acidente. E é a surdez do filho que, ao mesmo tempo em que o afasta, o protege das palavras do pai. O distingue do pai. O silêncio é o escudo protetor.

***

"Você nunca foi nada além de um bastardo abandonado numa cesta no meio do deserto”, diz o pai, Daniel Plainview, ao filho surdo. A cena vem ao final do filme, depois de uma lacuna de pelo menos uma década [aberta depois da cena do restaurante/bar, onde o Sr. Plainview havia se reconciliado com o filho, depois de tê-lo abandonado]. A fala do Sr. Plainview é de um rancor terrível. Quer arrancar palavras do filho, apenas para rejeitá-las. Mas, a essa altura, o filho está longe o suficiente para não ouvir o pai. O silêncio o fortaleceu. O silêncio o libertou.

"Ontem construí um barco de pedra"

By Troche


"40.

Ontem construí um barco de pedra.
Não funcionou. 

Dói meu ponto de vista, o oceano ainda não se encontra preparado para as grandes invenções.
Um barco de pedra é uma grande invenção.
A água não percebeu assim, paciência.

Gosto de inventar coisas.
Principalmente coisas inúteis.
Por isso mesmo umas pessoas chamam-me poeta, outras vagabundo.
Infelizmente são mais as pessoas que me chamam vagabundo.
Mas tudo bem.
O mundo sempre foi assim.
Sempre houve maior número de idiotas do que de outras pessoas.
A isso chama-se multidão.

Se um tipo fica sem voz vem logo uma pá de gente
oferecer remédios para a garganta, 
mas depois, quando começamos a falar, ninguém nos ouve.
Dão-nos remédios para a garganta e depois
pedem-nos silêncio.
Não me parece bem.
Ou não nos davam os remédios,
ou deixavam-nos falar.

Enfim.

O mundo é isto.

***

50.

Gostava de vos dizer uma coisa para terminar.
Às vezes tenho medo. Muito medo.
Às vezes, sofro.
Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na possibilidade
de as perder.
Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.
Pode não ser um amigo ou um familiar.
Posso estar a vê-lo pela primeira vez.
Mas fico incomodado.
Aquela doença pertence-me.


Todas as doenças pertencem a toda gente.
Todos os sofrimentos pertencem a toda gente.
Todas as mortes pertencem um pouco a toda gente.
Às vezes sinto isso muito,
outras vezes sinto menos.
Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo,
brincar com a poesia,
com a filosofia e com as palavras.
Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.
Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo
de querer ser inteligente.
Deixo de querer parecer inteligente.
Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.
Não fazem sentido as lógicas,
as filosofias,
as discussões.
Todo o nosso corpo sente.
E o que resta? Nada.
Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.
Só aquele pai que amo e que está a envelhecer. Só aquela mãe
que amo e que está a envelhecer.
Só aquele amigo que se tornou amargo
porque a mulher o deixou.
Só o amor e a falta de amor.
As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas,
as mulheres e os homens que enganam.
Os amigos que deixam de o ser,
Alguns inimigos que morrem, e temos pena.
Que importa o resto?
Onde está o livro importante?
O filme que resolve?
Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.
Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às
mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo,
mas que adianta?
Estamos sozinhos.
Se não estamos, vamos estar.
Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.
Vão morrer ou nós vamos morrer.
Ou vão deixar de nos telefonar, ou então deixamos de lhes
querer telefonar.
Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.
Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes
descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.
Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não
adianta nada e nada impede.
Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.
Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar,
tentamos ter idéias, tentamos distrair as pessoas, tentamos
fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e
isso é bom, e pode até ser bonito, mas não adianta nada,
não resolve nada,
não adianta nada."


***

Gonçalo M. Tavares, O Homem ou é Tonto ou é MulherCasa Da Palavra.

Ilustração, Troche: http://portroche.blogspot.com/


19/09/2011

"Persistes ainda em tua integridade?"

Satan Smiting Job with Boils, William Blake.


"Saiu, pois, Satanás da presença do Senhor, e feriu Jó de úlceras malignas, desde a planta do pé até o alto da cabeça". Jó 2:7


Curioso, Blake colocar a mulher [aquela que diz a Jó: 'Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre duma vez!" 2:9 ], junto aos pés de Jó, apoiada à planta do pé. Na visão de Blake, ao que parece, a mulher de Jó era também uma úlcera, fervendo a planta dos pés.

Mas não se trata de pura misoginia da época, creio. Pelo contrário. Já que, na sabedoria cristaliza, a mulher (mãe que carrega o filho, a esposa que dá suporte, "a moça que me ajuda lá em casa"), é vista exatamente como apoio. Aquela que suporta todas as dores

E a fala da mulher, está longe de oferecer suporte; é um buraco que se abre sob os pés de Jó. Pronto a devorá-lo. É a consciência lúcida da vacuidade daquilo tudo:

"Se o homem não tinha uma consciência eterna, se no fundo de todas as coisas ele só tinha um poder selvagem e borbulhante produzindo todas as coisas, o grande e o fútil, no turbiIhão de obscuras paixões, se o vazio sem fundo que nada pode preencher se escondia sob todas as coisas, que seria pois a vida senão o desespero?", Kierkegaard, citado por Camus, no Mito de Sísifo.

***

A fala da mulher está ali, não apenas pra ser refutada, feito um argumento de lógica. Tampouco está ali  como uma tentação. É necessária porque incorpora o irracional, um desacordo. De um lado, a fé de Jó num Deus mudo; de outro, o vazio sob os pés de Jó, a desrazão em continuar.

[Persistes ainda em tua integridade?]
E essas palavras ecoam junto às fissuras roendo o corpo, feito um riso.

[Persistes ainda em tua integridade?]
Basta lembrar da serenidade que toma conta de Justine (Melancholia, 2011), à medida que o desaparecimento completo se torna, não apenas uma possibilidade reconfortante, mas inevitável.

Não há sentido em sofrer sem um motivo, ainda mais, emparedado pelo silêncio de Deus.
[na ilustração de Blake, representado pelo sol, que espia, com um riso cínico de canto de boca]. 

"E eis tudo névoa-nada e fome-vento
e nenhum proveito sob o sol".
Eclesiastes 2:11, tradução de Haroldo de Campos.

Isso me leva a pensar em como a crença de Jó é absurda [em como a crença cotidiana nisso tudo é absurda e ridícula]. De toda forma, a resposta de Jó à sua mulher é estupenda: "Falas como uma idiota: se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?".

Eis o grande paradoxo.

Afinal, como resolver a questão: um Deus que oferta o mal?

Se a vida é um mal [mas quantos o sabem?], é melhor que desapareça. É mais ou menos isso que está em Melancholia.

[Persistes ainda em tua integridade?]

Mesmo depois da resposta de Jó, a frase da mulher continua ecoando entre as feridas, convivendo com a crença de Jó, amordaçado pelo silêncio de Deus. 

E diante de tamanho paradoxo, só resta a contemplação. Essa é a postura de Jó. 

***

Mesmo quando surge a voz de Deus, de um redemoinho ["o diabo na rua, no meio do redemoinho"], quebrando o silêncio, as palavras de Deus instauram o mistério, um abismo, um silêncio ainda mais vigoroso:

"Agora cinge os teus lombos, como homem; porque te perguntarei, e tu me responderás.
Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?
Faze-mo saber, se tens entendimento."
Jó, 38:3,4.


"Então Jó respondeu ao Senhor, e disse:
Eis que sou vil; que te responderia eu? Antes ponho a minha mão sobre a boca."
Jó 40:3,4.

***

E mesmo que se restabeleça todas as coisas, o dobro das coisas que tinha antes: pra que diabos isso?

[Persistes ainda em tua integridade?]

Camus, disse que é preciso imaginar Sísifo feliz. Não sei se concordo.

Em todo caso, [sem cair na epidemia de manuais e receitas de felicidade ou no egoísmo], resta a contemplação. E pra mim, pelo menos, essa postura contemplativa, gratuita e desinteressada, parece a única resposta possível à questão do sofrimento [quiçá, da existência]. 





16/09/2011

"e o coração dele batia feito um louco".

Um livrinho de poemas do Paulo Mendes Campos, de capa branca. Não sei onde foi parar. Procurei por ele entre meus livros [não é a primeira vez que procuro por ele], mas não encontrei. Sinto uma saudade muito grande desse livrinho.

***

Eu estava começando o ensino médio. Gostava bastante daquela enciclopédia que vinha toda semana na revista ISTOÉ. Foi lá que li o nome Proust [ou melhor, vi aquela foto de olho caído, olhar blasé e fiquei impressionado: aquilo sim era um escritor de verdade], e ao ler que esse cara cheio de pose tinha passado grande parte da vida escrevendo sobre a mesma coisa, Em busca do tempo perdido, só aumentou minha admiração, me pareceu, à época [e talvez ainda persista esse ranço de inquietação] que aquele cara sabia de alguma coisa que ninguém mais sabia, ou que todo mundo sabia, mas que só ele sabia falar direito. Era realmente um escritor de verdade, eu sentia olhando aquela foto, às vezes uns vinte minutos, lendo e relendo o texto sobre o cara, e sempre com a certeza que era um cara bem diferente daqueles caras chatos que nos apresentavam na escola, no texto-fragmento com o vocabulário no rodapé, seguido de exercícios, ditado, no mesmo livro que se falava de um tal de Emplasto Sabiá [ref. Faraco & Moura, três volumes separados, capa listrada], que a gente comprava usado ou quando dava sorte, que foi o meu caso, pegava emprestado com um aluno do segundo ano. 

Foi também naquela enciclopédia da ISTOÉ que vi pela primeira vez uma "foto" de Rimbaud [e lia como se fosse Rim-baude, porque nunca tinha ouvido ninguém pronunciar], e fiquei abismado com o moleque, que tinha escrito tudo e largado tudo, assim do nada. Isso sim era um poeta de verdade, diferente daqueles poetas chatos que assinavam aqueles poemas quadrados chatos que a gente era obrigado a interpretar, dissecar, classificar as palavras, entender tudo, e do jeito certo, e ninguém queria saber se a gente tinha gostado ou não.

***

Não era nenhum poema do Paulo Mendes Campos, nenhuma crônica. Havia duas traduções ao fim do livro. Provérbios do inferno, do Blake, e uma tradução do Monólogo de Molly Bloom, do Joyce.


***

Um dos primeiros livros que peguei na biblioteca na UFSJ, foi o volume I de Em busca do tempo de perdido, No caminho de Swann, junto de Ulysses do Joyce. Era a primeira vez que tinha aqueles livros ali, tão perto. Porque da cidade que eu vinha [ref. caipira lifestyle], não havia livraria nenhuma [e ainda não há], tampouco uma biblioteca decente [hoje há]. E ninguém que eu convivia tinha esses livros. Lembro que voltei pra casa com a mochila pesada e ansioso. Meu colega de casa tinha ido a alguma dessas festas pra calouros de início de semestre. Eu disse que ia ficar em casa, disse que estava cansado. Menti em prol da literatura. Passei um café rápido e abri o livro do Proust com a sensação de finalmente ter encontrado aquele cara. De estar pronto a ouvir o que ele tinha a me dizer, pronto a receber alguma coisa grandiosa.

Mas não. Eu não estava pronto.

Apesar dos meus esforços, avancei algumas poucas páginas, e abandonei o livro. A mesma coisa com Joyce. Me senti profundamente culpado e burro.

Mas naquela mesma biblioteca, e por influência de amigos que gostavam também de literatura, descobri Kafka, Camus, Dostoievski, Henry Miller, Nabokov, Chuck Palahniuk, Graciliano, e aos poucos me esqueci dessa grande frustração.

Afinal, como diria Nietzsche:

"No fim das contas ninguém pode captar coisas, incluídos os livros, mais do que ele mesmo já sabe. Para aquilo que a gente não alcança através da vivência, a gente também não tem ouvidos." Ecce Homo.


Talvez seja hora de tentar outra vez.

***
Mas, hoje, sinto uma saudade terrível daquele livrinho do Paulo Mendes Campos de capa branca. Aquele exemplar em especial. Tinha rabiscado algumas coisas nas costas da última página do livro. Já não sei que coisas são. Só gostaria de pegá-lo agora, abrir, e ler.

"e puxei ele para mim para que sentisse meus seios perfumadíssimos sim
e o coração dele batia feito um louco
e sim
eu disse sim
eu quero muito
Sim".

15/09/2011

Cacos de telhas, estilhaços de tijolos de adobe, ruas estreitas, sempre o mesmo sonho.

 Head (1948), Francis Bacon


Não sei bem quando começou. Mas é sempre o mesmo sonho. A bem da verdade, o enredo do sonho costuma variar, mas a paisagem [o clima, ou a atmosfera], é sempre igual. Cacos de telhas, estilhaços de construções de tijolos de adobe, ruas estreitas, às vezes de pedra, noutras vezes, cascalho escuro, ou terra batida meio que coberta por fuligem, cacos de telhas escuras e tijolos jogados no chão. As ripas podres e o fedor [sim, há odor nesses sonhos], o fedor de fezes de pombos, às vezes uns esqueletos de pombos, fedor de penas, lascas de asas.

O clima [embora o enredo varie], é ter que sair daquele lugar. Muitas vezes começa dentro de uma igreja, aos cacos, imagens de santos aos cacos. Noutras vezes, começa numa praça labiríntica, com estátuas escuras, vielas e muretas de pedras escuras na altura da cabeça, abarrotada de gente estranha, vestida para algum tipo de festa. Fora essa multidão que costuma aparecer uma vez ou outra, não há ninguém. 

Vou seguindo por aquelas ruas. À medida que avanço vou me deparando com as ruínas de casarões antigos, janelas caídas, mais e mais igrejas antigas, sinos estilhaçados, portas soltas encostadas nas paredes, caibros podres despencando dos telhados destruídos, montes de entulhos de fora a fora nas calçadas e o fedor de fezes de pombos. Como se aquele lugar tivesse sido bombardeado [Tiradentes apodrecida, é o que parece], mas não penso nisso durante o sonho. Penso depois. No momento do sonho, eu apenas contemplo aquelas ruínas e vou seguindo, dobrando esquinas, atravessando o interior vazio das casas, das igrejas aos cacos, tentando sair dali, sem saber o motivo. Mas nunca consigo sair. Sempre acordo no meio do sonho.


14/09/2011

Duas linhas

O tempo não escoa como uma linha. São várias linhas paralelas escorrendo. O passado não está atrás, está aqui do lado. Essa linha que a gente segue, e as linhas que escorrem do lado. E por descuido, a gente é tentando a saltar pra linha do lado. Mas não quer perder essa linha que agora nos conduz. Ninguém quer perder nada. Mas ao pisar, acaba por mudar o rumo das coisas. Não há inocência.

Um pé aqui, outro lá, ao mesmo tempo.

As duas linhas convergem, atraídas pela existência uma da outra. O vão, o desamparo que caí sobre as costas no momento de escolher, o medo de escolher, medo de abandonar, medo de assumir. Não há inocência. As duas linhas se embaraçam, mas jamais se fundem, esbarram, se tocam, confundem. Esse mero esbarrão anuncia uma tragédia. Dois trens que se chocam. Metal retorcido, ferragens. Choro, ranger de dentes. Estilhaços transpassando costelas, frio. E você não sabe muito bem onde está, como e por que aconteceu. E de repente só quer se livrar do desconforto. Arrastar-se. Deixar tudo como era, antes do primeiro movimento, do primeiro impulso, do primeiro olhar àquela linha correndo ali do lado.

***

O tempo [talvez], as múltiplas cabeças da Hidra de Lerna.

Hercules slaying the Hydra, Hans Sebald Beham engraving, 1545

***

"E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça. E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz. E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas. E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu, e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho."
Apocalipse 12:1-4

The Great Red Dragon and the Woman Clothed in Sun, William Blake 

The Great Red Dragon and the Woman Clothed in Sun, William Blake 



13/09/2011

Três e quarenta e cinco, cigarrete, pão de trigo, sapato marrom e nenhum lugar pra ir.


"Há maneira de falhar na solidão, como em sociedade".



Três e quarenta e cinco e o terminal rodoviário de uma cidade pequena como Três Corações a essa hora não é nada acolhedor. Talvez em nenhuma outra hora. Os dois ou três gatos pingados arrastando os pés entre cadeiras vazias, de frente a guichês fechados, são daquele tipo de sujeito que não tem medo de nada. Nenhum lugar pra ir, nada a perder. Completamente livres e soltos. Claro, é o que você imagina. Porque você não sabe nada a respeito desses caras. E no fim das contas, pensando direito, você sabe muito bem que sabe muito pouco sobre as poucas pessoas que lhe são mais íntimas, as que você julga conhecer, e sabe menos ainda sobre si mesmo, [ou pelo menos acha que sabe alguma coisa];  o que dizer desses caras vagando a esmo, dos quais você não sabe absolutamente nada a respeito?

Nada a dizer.

O único lugar aberto no terminal é uma lanchonete fuleira. Mesmo assim, o lugar está apenas tecnicamente aberto. Não dá pra entrar lá dentro. Cadeiras amarelas de plástico empilhadas funcionam como uma espécie de muro de contenção na entrada do lugar. Um cara de tronco quadrado e blusa de militar folheia um livro [a arte de pregar a palavra, alguma coisa assim], enquanto a televisão num volume muito alto e mal sintonizada exibe a imagem de um pastor falando que não adianta o pão de trigo [não, não adianta nada], se o pão do amor não está na sua mesa.

***

Era ali que o cara estava. Bem arrumado. Uma sacolinha enfiada debaixo do braço, de frente ao balcão, espiando o pastor falar, espiando aquele bar na esquina do outro lado da rua, onde uns caras gritavam e riam. Mas eu não reparei nos sapatos do cara.

Eu acendi um cigarro e me lembrei que a bateria do meu celular estava nas últimas. E me lembrei de tudo que tinha acontecido até ali. Das tantas vezes que tinha parado naquele lugar [mas nunca as três e quarenta e cinco]. Uma passagem no bolso, o sol escorrendo no gramado do outro lado, comendo uma cigarrete e o coração cheio de expectativas. E no fim das contas, me pareceu uma boa ideia comer uma cigarrete àquela hora.

Olhei na estufa. Três coxinhas com manchas de gordura, um espetinho esturricado. De resto, travessas de alumínio engorduradas, e aquelas travessas de alumínio vazias me deram vontade de chorar.

“Me empresta o fogo?”, disse o cara.

Eu estiquei a guimba do cigarro e o cara acendeu a ponta de um cigarro de palha. Agradeceu e soltou um  longo e demorado trago, formando uma bola de fumaça que encobriu o rosto do cara.

Não adianta ter o pão de trigo, se o pão do amor não entrar na sua casa.

Um bando de caras saiu do bar do outro lado da rua. Caras de boné e capuz enfiando na cabeça. Falando alto demais. Então de repente se calaram e ficaram parados encostados num carro, do outro lado, olhando.

“O senhor vai pegar o ônibus das cinco?”, eu perguntei pro cara.

“Não, não... Vou pra BH hoje ainda. Tô esperando a assistência social me arranjar a passagem”.

“Certo”.

“Tá foda. Bati perna pra caramba hoje. Até furei o sapato”.

Ele virou o sapato pra mim, e a sola tinha despregado do resto. Um sapato marrom, de couro. E o cara estava sem meias.

“É foda”, eu disse.

“Tem lugar que a gente nem pode ficar assim, esperando amanhecer. Não deixam a gente nem sentar. É muito nóia, irmão. Muito nóia”.


Eu olhei meio disfarçado pros caras do outro lado da rua. Continuavam lá, capuz enfiado na cabeça, conversando baixinho. E me lembrei que tinha que dar um jeito na bateria do celular. Então fui até o balcão. Perguntei pro cara com blusa de militar se eu podia dar uma carga no celular. O cara fez que sim, e disse pra mim ter cuidado, ficar de olho, ficar esperto. E voltou a ler aquele livro.

A arte de crucificar a palavra, eu pensei, seria um bom título prum livro ainda não escrito.

Empurrei as cadeiras amarelas pro lado. Coloquei o celular pra carregar e escrevi uma mensagem. Quando voltei, acendi outro cigarro.

“Bati lá no albergue, mas tá fechado”, disse o cara. “Depois me falaram que não abre mais”.

“É complicado”, eu disse.

“Uns vinte e cinco anos, mais ou menos”, disse o cara, “a gente chegava numa pensão e mostrava os documentos e o pessoal recebia a gente bem demais. A gente tinha documento, sabe? E às vezes até arranjava uma coisa pra gente fazer, um servicinho. Hoje tá complicado. Se não pagar adiantado, não tem conversa. Documento hoje não vale nada”.

Eu não sabia o que dizer. Pensei em oferecer um café pro cara. Mas não queria tirar o pouco dinheiro do bolso àquela hora. E os carinhas do outro lado da rua continuavam olhando.

“Tinha muito gato também. O cara via a gente chegando com uma trouxinha nas costas e já chegava: 'Irmão, tá querendo serviço?', daí arrumava um alojamento e um trampo pra gente. Às vezes serviço de roça, qualquer coisa. Hoje não tem mais isso. No tempo da ferrovia também era beleza. Carregamento de calcário, brita, carvão. Era pesado pra caramba. Mas tinha muito serviço”.

Eu ouvia e não sabia o que dizer. Fiquei pensando como a vida daquele cara tinha tomado aquele rumo. E por que tinha tomado aquele rumo. À deriva. Conduzido aquele cara até aquele lugar, completamente sozinho, agarrado a esperança de conseguir uma passagem. Uma passagem e mais nada.

Uma gaiola  saiu à procura de um pássaro, como diria Kafka.

“Pra entrar numa firma aí, precisa de comprovante de residência, mas pra alugar uma casinha aí, precisa de fiador. Mas ninguém conhece a gente, cara. Como é que arranja fiador?”.

Pensei em dizer pro cara [citando Kafka] que há esperança, esperança infinita, mas não para nós. Mas não. Não disse nada.

Dois carinhas saíram do bando lá do outro lado e vieram caminhando na direção da rodoviária.

Olhei pros lados, sei lá procurando o quê. Abaixei a cabeça e continuei ouvindo o cara falar. Ouvindo o pastor falar de pão, trigo, amor.

O cara de capuz chegou e pediu um cigarro. Olhou pra trás enquanto o cara de casaco militar mexia nos maços de cigarro. E não sei porque, mas olhei pro cara. Os olhos do cara estavam vidrados, no meio do rosto recortado pelo capuz. Então eu abaixei a cabeça e fiquei olhando pros sapatos marrons do cara.

Um dos caras do outro lado da rua gritou alguma coisa. Barulhos de portas de carro batendo. Barulhos, apenas. E quando dei por mim, estava tudo quieto demais, o carinha de capuz tinha ido embora.

O pastor continuava falando de pão, amor, trigo. E como a palavra do senhor é transformadora. Aceite o Senhor na sua vida, dê a mão à Jesus e deixe que ele conduza a sua vida no caminho da glória e da felicidade. O caminho da paz, da vitória, do amor incondicional. Estenda a mão ao mestre Jesus. Estenda a mão, meu irmão!

Estiquei a mão pro cara. Deixei o resto do meu maço de cigarro com ele. Uns quatro ou cinco cigarros. Meu ônibus já estava no terminal. Entrei, joguei a mochila na poltrona do lado. Puxei uma barra de cereal na sacolinha. E quando o ônibus saiu, desabei a chorar.



12/09/2011

Pra dar sorte, alguém me disse uma vez.


Não dormi. E me lembrei disso quando disparei atrás do ônibus na Interlagos. Sem olhar pra trás. Não dormi, eu disse pra ela [e sem clima de despedida olha seu ônibus logo ali, sem beijos cortados por abraços afiados. Frases tipo: Pegou a blusa no varal? Esqueci. Tudo bem, quando eu for eu levo. Tá bom]. Daí que tinha um carinha de terno e moicano milimetricamente desarrumado na minha frente. E aquilo me pareceu absurdo. Não dormi, eu já disse. Terno e moicano bem comportado, escapando de um desses outdoors. Saltado do outdoor e já dando sinal pro ônibus. Já disse, não dormi. E no metrô a voz metálica forrada de chiados disse, três ou quatro vezes, este trem será evacuado na estação São Bento. Tudo bem. Uma pequena diarréia de pessoas. Uns três minutos debaixo da terra. Contemplando trilhos. Três minutos é quase o tempo de um cigarro [eu pensei],  fosse possível fumar nessa porcaria de lugar [às vezes eu gosto de praguejar com a cabeça]. O terno tava meio desbotado [me lembrei] e o sapato também meio desbotado [quase ri sozinho nessa hora, contemplando trilhos debaixo da terra].

[corta pro guichê]

“Tudo lotado desde cedo!”, a voz detrás do vidro.
“Mas ontem eu olhei e tinha 37 poltronas vagas!”.
“Quando vi a fila hoje cedo, eu até me assustei”.

[corta pra tela do celular]

“Não tem passagem”.
“E agora?”
“Não sei”.
“Volta”.
“Não quero incomodar. Fica tranqüila. Uma noite na rodoviária não mata ninguém”.
Mas ela nunca entende a piada.

[corta pro ônibus]

Olho embasbacado pra postura zen-budista do cobrador mergulhado em algum tipo de meditação transcendental. Afastado e protegido dos barulhos de metal, dos solavancos e os cartãozinhos que apitam e apitam girando a catraca num estalo depois do outro, pra voltar sempre no mesmo lugar.

Imóvel.

Pés cruzados, braços cruzados. E nos cruzamentos o queixo do mestre-zen-cobrador afunda no peito. O pescoço se dilata e se contrai. Algumas vezes cai de lado. Mas não. O desgraçado não acorda. É um Buda com a bunda virada pra porta da sala. 

Pra dar sorte, alguém me disse uma vez.
***

Três da manhã eu fui fumar um cigarro na varanda. Ouvi passarinhos cantando. No meio desse chiado e burburinho de carros ao longe que nunca se cala, passarinhos cantando. Cantando como, sei lá, como se fosse seis da tarde ou sete da manhã. Alguma coisa meio fora do lugar. Olhei pra cima, [a lua é sempre a mesma em qualquer lugar], mas a lua havia escorregado às costas do prédio. Apaguei o cigarro e tive certeza que não ia pregar os olhos. Uma pequena profecia.

***

Antes de voltar eu entrei na livraria. Olhar livros e não pensar em nada, eu pensei. Mas mal pisei na livraria e uma dessas mocinhas me atacou tentando me vender alguma coisa. Perguntando a data de validade do meu cartão. E mal me lembro da senha, eu devia ter dito. Mas eu não dormi, não tinha mais passagens. Precisava voltar. E demorei demais pra perceber o que é que ela tava querendo. É bem provável que eu devo ter gaguejado uns grunhidos sussurrados. E ela deve ter interpretado esses barulhos como demonstração de interesse da minha parte [eu só queria olhar uns livros e não pensar em nada, eu pensei outra vez]. Mas não tenho certeza. Ela continuou falando e falando e falando e eu sei lá o que tava acontecendo. Só aí, num surto de lucidez, eu a encarei. E com a voz firme, disse [a primeira frase firme do dia]: pra quê isso? Ela gaguejou um pouco, ruborizou a face, começou uma explicação longa e embaralhada. Desviando os olhos pro fundo da loja, mostrando um folheto. A única palavra que consegui identificar foi revista. Daí, eu disse: Não, revista não.
Ela se foi.
***

Peguei o cardápio na padaria. Conferi o dinheiro de cabeça. Conferi os preços outra vez. Recontei o dinheiro mentalmente uma última vez.

Ok, é isso.

Chamei o carinha e disse que queria um X-Burguer. Um X-Burguer?, ele disse, segurando um riso. É, eu disse, como se levasse um tapa no ouvido. Ele atravessou o balcão e disse pro carinha da chapa: Um X-Burguer. E o carinha da chapa riu, depois os dois riram juntos. E nessa hora só havia cansaço. Então me sentei, olhando imagens de um incêndio na televisão, depois de um carro aos cacos, mas o volume estava muito baixo. Não dava pra ouvir. Os caras continuavam rindo e repetindo X-Burguer. Tudo bem. Da próxima vez que tiver um dia assim, é melhor pedir um lanche sem r.

09/09/2011

Os caçadores na neve, Pieter Bruegel the Elder

Os Caçadores na neve (1565), Pieter Bruegel the Elder


Um dos quadros que aparece em Melancholia, quando Justine revira os livros nas estantes: The Hunters in the Snow (1565), Pieter Bruegel the Elder. 

***

Só vendo o filme outra vez pra descobrir quais são aqueles outros quadros. Acho que Landscape with the Fall of Icarus (Paisagem com a queda de Ícaro) Winter Landscape with a Bird Trap (Paisagem de inverno com uma armadilha para aves) também aparecem. Mas não tenho certeza.

08/09/2011

absolutamente nada

A. Paul Weber, The Rumor, 1943 via 50 Watts

Quando enfrento o ônibus lotado até o metrô Conceição, ou desvio da pressa das pessoas nas calçadas da Paulista e da Augusta, me sobe uma alegria idiota. Sinto-me seguro nas ruas de São Paulo. E o motivo é simples: ninguém te conhece.

É uma coisa óbvia pra quem cresceu e vive desde sempre imerso nessa legião de estranhos. Até meio ridículo falar uma coisa dessas. Mas pra quem cresceu numa cidade com pouco mais de cinco mil habitantes, há sempre esse estranhamento (ninguém te conhece), e isso conforta.

***

Numa cidade pequena o reconhecimento é tão imediato que até quem você não conhece te reconhece. Sabe onde você estudou, se você era um bom ou mau aluno, quem são seus pais, avós, irmãos, o que eles fazem, que lugares frequentam, etc. Tanta intimidade é sufocante. Tanto reconhecimento eleva o superego à última potência. Peso. Insegurança. E sobe essa vontade de se encolher num canto, sumir, desaparecer. Porque de repente nada daquilo que você faz é suficiente pra quem te conhece demais. Pra quem acha que já sabe como você é. E como você deve ser. Cidades pequenas são os lugares mais perigosos e inseguros do mundo. Tipo Dogville.

***
Caminhando pelas ruas de São Paulo me sinto livre. Um eremita, diante de pessoas que às vezes te olham mas nunca te reconhecem. E não esperam que você faça nada. Absolutamente nada. Talvez jogar o papel no lixo, aguardar sua vez na fila. Segurar a sacola da moça no ônibus. Dar lugar ao sr. de cabelos brancos e rosto de papel. E somos todos franciscanos nessa horas. Com o coração cheio de segurança. Amém.

***
Perfeito seria um lugar como São Paulo absolutamente vazio. Sem ninguém. Mas não. Nada é perfeito.



05/09/2011

nada

Melancolia, Lars von Trier: o desaparecimento total não é apenas uma possibilidade reconfortante. É a única possibilidade.

***

"Sabe aquele momento em que você sente que tudo que você faz é inútil e pouco criativo, imprestável mesmo? Se chama bom-senso. Ou a voz de Deus." 

Casaco de lã, raio de sol, cheiro a jasmin e porre de vodcaLuisa Geisler, Contos de Mentira, Record, 2011.

***

Trilha da semana: ‎"It's the cruelest joke to play",  Queens Of The Stone Age, In My Head.