30/06/2011

"Inverno da nossa liberdade "


Um fragmento dessa beleza de texto do Martim Vasques da Cunha, sobre Liberdade do Jonathan Franzen

"O que Ted Hughes elaborou em seiscentas páginas, eu resolvi em um parágrafo, Shakespeare precisou de 36 peças, dois poemas longos, 152 sonetos e um poema curto – e Jonathan Franzen resolveu dramatizar em mais quase setecentas folhas. Para quê tudo isso, meus amigos? Desaprendemos aquilo que Gertrudes dizia, de que brevity is the soul of the wit? Não, o que desaprendemos foi a capacidade nos espantar, independente se ele se estende para quase mil páginas ou se concentra em uma linha, e quando isso acontece, não é apenas a humanidade que perde, mas principalmente a nossa capacidade de contarmos histórias – e, claro, o tal do romance, que, como diz o termo original em inglês, deveria ser uma novidade.

O problema é que perdemos a fé no espanto de narrar, o que Chesterton afirmava ser o sense of wonder, o assombro aristotélico. Franzen tenta recuperar com sua odisséia do ressentimento subterrâneo – e que se estende por trinta anos de história americana, que vão de Jimmy Carter a Barack Obama (e eu só citei este nome para obviamente o Google captar este texto na nuvem da ignorância dos meus pensamentos) – justamente para mostrar a tragédia em que vivemos ao recusarmos o fado (e o fardo) do amor e de vivê-lo em suas conseqüências. Ao optarmos por isto, vivemos sem querer querendo o inverno de nossa existência, de nossa liberdade. Jamais saberemos o que é ser livre porque não agüentamos mais o tranco que alguém lá em cima nos deu.

Se Leontes passou por quinze anos de purgação para ter sua Hermione ressuscitada, Franzen faz o seu Walter e a sua Patty passarem por cinco antes do reencontro definitivo. Antes disso, Walter conversa com seu irmão mais velho, um sujeito rude, divorciado três vezes, com cinco filhos abandonados pelo mundo, nada a ver com o caçula que freqüentou as melhores universidades e quase se tornou diretor de uma grande organização não-governamental (a razão de seu fracasso é hilária e vale o preço do exemplar). Walter pergunta se o primogênito acha que isso é uma trajetória decente. A resposta marca a cena mais bela do romance: “Sou um homem livre”.

Ou seja, neste mundo, quem é verdadeiramente livre é quem reconhece que tem demônios a enfrentar – e vive com eles como pode. E quem cria os nossos demônios somos nós mesmos – através da recusa de amar e substituindo o amor pela inveja e o ressentimento. Em um ensaio para a New Yorker, publicado há um mês, Jonathan Franzen mostra que a competição com David Foster Wallace não foi tão amigável como parecia ser. O que estava em disputa era quem ia mais longe no horizonte da literatura, na salvação do romance como forma de recuperar a fé na condição humana. Wallace chegou perto da perfeição, segundo Franzen, e foi justamente isso que o fez pensar sobre as infinitas variações do desespero que resultam no suicídio. Ao atingir a sua meta, Foster Wallace foi trespassado pelo tédio. O que fazer quando já se está no topo? Nada e tudo, não é mesmo? Então é melhor jogar uma corda no pescoço e balançar como o pêndulo de Foucault."


Martim Vasques da Cunha, in: http://www.dicta.com.br 30 de maio de 2011.

28/06/2011

Fruição do presente.



"Como se tivéssemos largado a torneira aberta. Por dias. Semanas. Ouvindo a água pingando. Batendo na louça, dentro da pia; no ralo, durante a madrugada. Mas como se tivéssemos tido preguiça de nos levantar da cama. De deixar o quente das cobertas. Tirar a cabeça do amassado do travesseiro. De calçar os chinelos e andar até a cozinha para dar mais meio giro. Apenas metade de uma outra volta que acabaria com o ruído. Com o gasto de água. Com o barulho dos pingos batendo na louça. No canto do prato. Na ponta da faca. No ralo, de madrugada. Vazamento esvaziando o reservatório por descaso. Litros e litros pelo cano por nossa culpa. Não, não foi de repente. Não foi surpresa. Nosso amor secou aos poucos, gota a gota. E nós ouvimos todos os pingos."

Eduardo Baszczyn, Desamores, 7Letras, 2007. p. 7

20/06/2011

É um falso exílio

Yvie Booth, in: http://incredibilis.tumblr.com

Sempre que volto de São Paulo, quando entro no ônibus da Trectur que vai de Três Corações até Luminárias, me sinto novamente no Brasil. 

O outro ônibus, que atravessa a Fernão Dias de São Paulo para Três Corações (e vice-versa), é outra coisa. É quase um avião pregado ao asfalto, com pessoas na maioria das vezes silenciosas, o ar condicionado, as largas janelas, poltronas reclináveis, motor silencioso.

O ônibus brasileiro é de outro naipe. O estofado da poltrona é esquelético, colado à madeira. A lataria range, a suspensão é dura. Está sempre lotado, e fico impressionado com a capacidade de abstração do cobrador e seu bloquinho de passagens: o xerox analógico do carbono, os bolsos da pochete cheios de moedas e notas miúdas, a rapidez das contas de cabeça. No outro ônibus, esse avião de rodas coladas no asfalto, não há cobrador. 

No ônibus brasileiro ainda há sujeitos de chapéu, o cheiro de suor dos trabalhadores, mulheres com crianças no colo, falando de doenças, do preço dos remédios, o cheiro de salame e salgadinho, a alegria transgressora e irracional dos cachaceiros que bebem mais uma, na parada, naquilo que chamam de terminal rodoviário; e os pacotes de arroz, latas de óleo, fardos de açúcar chacoalhando nos bagageiros, os mantimentos - o necessário; pessoas que saltam no meio da estrada porque moram por ali, e você pensa: essas pessoas realmente vivem ali. No outro ônibus, fones atolados nos ouvidos, é tudo muito organizado, todo mundo parece turista, de férias, a passeio, desnecessário.

Descer do ônibus que vai de São Paulo até Três Corações e pegar o ônibus que vai para Luminárias (e vice-versa), é como cruzar uma fronteira. 

***

Nunca fui muito esperto ao pular muros, hesitava no momento do salto, como hesitava ao atravessar por baixo das cercas de arame farpado; o que dirá, atravessar fronteiras. É sempre uma parte que fica quando deveria se desprender e ir, e uma parte que não volta quando se retorna. 

***
Afinal, toda geografia é sentimental.

***
É como ser um estrangeiro sem pátria de origem. Esse constante estado de estranhamento mesmo diante daquilo que é mais reconhecível. Ou deveria ser.
É um falso exílio, no fim das contas.


16/06/2011

Poemas de Guenádi Aigui




O Nosso

devo
chegar com meus lábios
aos seus olhos iluminados

e então hei de me surpreender com as veias pulsando de
leve,
suboculares,
e hei de compreender: é por causa de sua transparência
e de seu incorpóreo
que são assim claros e doentes
esses olhos ligeiramente trêmulos

e eu hei de amá-la com minhas mãos e meus lábios,
com o silêncio, o sono e as ruas dos meus versos
com a mentira - para o Estado
com a verdade - para a vida.

Guenádi Aigui, tradução Boris Schnaiderman IN: http://omarona.blogspot.com



Nuvens

Nesta
aldeia de ninguém
trapos indigentes nas cercas —
teréns de ninguém.

E sobre elas nuvens de ninguém,

e adiante — anúncios sobre a infância:
crianças esquálidas, bravias;

e música sobre o nu
de mulheres hunas e citas;

e aqui, no leito, ao rés dos olhos,
algures, junto a pestanas úmidas,
alguém morria e chorava,

enquanto eu compreendia
de uma vez por todas — era

minha mãe.

Guenádi Aigui, tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. 


Jardim-Tristeza

é
(talvez)
o vento
que inclina – tão leve
(para a morte)
o coração

Guenádi Aigui, tradução: JPF. IN: http://escritablog.blogspot.com



Silêncio


1

no clarão
da angústia desfeita em pó
conheço o desnecessário como os pobres conhecem a
roupa última
e os velhos trastes
e sei que este desnecessário
é o que o país precisa de mim
confiável como um acordo secreto
o calar-se como vida
e para toda a minha vida



2

no entanto, o calar-se é doação, e para mim mesmo: o
silêncio



3

acostumar-me a tal silêncio
que seja como o coração que não se ouve bater
como a vida
que pareça um de seus lugares
e nisso eu sou – como a Poesia é
e eu sei
que meu trabalho é árduo e existe para si mesmo
como no cemitério da cidade
a insônia do vigia



1954–1956

Guenádi Aigui, tradução: Boris Schnaiderman. IN: http://www.erratica.com.br

15/06/2011

amor é onde nós nunca estivemos: [n°3 intenções]


Desligou o telefone e a essa altura usando o tom de voz que soaria ridículo a um estranho, como o próprio tom de voz dele soaria ridículo a outro estranho, como o tom de voz dos dois soaria ridículo a um terceiro estranho, a manifestação do carinho coando o timbre da voz no telefone, que não expulsava de todo o tom áspero de ainda a pouco, pairava um ranço, mesmo pouco, mesmo quando, ela sorria e ele sorria de volta, o tom áspero do pequeno atrito de meia hora antes se prolongava, era a segunda vez naquele dia e por decisão dela, talvez mais sábia, mais calejada, interromperam a conversa naquele ponto que era o ponto mais tenso da conversa, onde nenhum dos dois abria mão de nada do que tinha dito, e ficavam cegos, não conseguiam passar para o outro lado, se é que conseguiam em algum momento passar para o outro lado, se é que existia tal coisa como um outro lado, por mais que se esforçassem e conversassem sobre isso quase sempre, os pequenos atritos que não eram graves mais surgiam vez ou outra, ele otimista nato tentando se defender dos seus defeitos, ingenuamente querendo ser o melhor possível era o que dizia, tentando sustentar as palavras das melhores horas para afastar esse ranço das piores horas, tentando recuperar as declarações espontâneas no silêncio escuro daquele quarto, tentando passar daquelas coisas que eles diziam a coisa prática efetuada, desejo de ser cada vez melhor e mais sensato ele dizia, e disse a ela que esses atritos os definiam, davam o limite daquilo mesmo que eles eram, e quando no meio da tarde ela ligou dizendo que tinha lido o artigo, uma coisa de trabalho sobre bebês e pensando nele, e que era ele então que ela queria ao lado dela, ainda que indagasse, depois de dizer tudo, se não era loucura pensar assim numa coisa dessas assim de cara, não como se escolhe um curso ou trocar de carro e financiar uma casa, ao que ele disse que ficava feliz de ouvir isso dela, no meio da tarde assim do nada ao ler o artigo, e tivesse se lembrado dele como aquele cara que ela queria ao lado dela, e ele pensou que aquele dia era um dos melhores dias, como uma surpresa dessas caía bem assim do nada, assim do nada como eles se conheceram e avançaram. Desligou o telefone e ficou pensado nessas coisas assim do nada, como questionar o ponto de vista dela irredutível (ele ou ela), o que era de fato uma coisa ruim de se fazer assim logo de cara, talvez pior do que se omitir e se calar resignado, tentando recuperar o tom escuro e silencioso daquele quarto, e não entendia porque alguma coisa dentro dele disparava, decidia automática que questionar e irredutível era o melhor, como um daqueles caras que ele leu um tempo antes, que escrevera nunca se escolhe o mal mesmo quando equivocado, ao que um ditado popular ironizou pulverizando: bem intencionadas apenas as caldeiras do inferno fervem vigorosas, desde sempre lotadas.



13/06/2011

"Certas Manhãs", Cioran


A Visão de Jó (1825), de William Blake


"Pesar por não ser Atlas, por não poder sacudir os ombros para assistir ao desmoronamento desta risível matéria... a raiva segue o caminho inverso da cosmogonia. Por que mistério despertamos certas manhãs com a sede de demolir o conjunto inerte e vivo? Quando o diabo penetra em nossas veias, quando nossas idéias sofrem convulsões, e nossos desejos cortam a luz, os elementos se inflamam e se consomem, enquanto nossos dedos filtram a cinza.

Que pesadelos suportamos durante as noites para acordarmos inimigos do sol? Devemos liquidar a nós mesmos para acabar com o todo? Que cumplicidade, que laços nos prolongam em uma intimidade com o tempo? A vida seria intolerável sem as forças que a negam. Donos de uma saída possível, da idéia de uma fuga, poderíamos facilmente abolir e, no auge do delírio, expectorar este universo. Ou, então, rezar e esperar outras manhãs.

(Escrever seria um ato insípido e supérfluo se pudéssemos chorar à vontade, e imitar as crianças e as mulheres tomadas pelo furor... Na matéria de que somos moldados, em sua mais profunda impureza, encontra-se um princípio de amargura, que só as lágrimas suavizam. Se cada vez que os desgostos nos assaltam, tivéssemos a possibilidade de nos livrar deles pelo pranto, as doenças vagas e a poesia desapareceriam. Mas uma reticência inata, agravada pela educação, ou um funcionamento defeituoso das glândulas lacrimais, condena-nos ao martírio dos olhos secos. Aliás, os gritos, as tempestades de pragas, a automaceração e as unhas cravadas na carne, com as consolações de um espetáculo de sangue, não figuram mais entre nossos procedimento terapêuticos. Daí se segue que estamos enfermos e que necessitaríamos de uma Saara cada um para berrar à vontade, ou as margens de um mar elegíaco e fogoso para mesclar a seus lamentos desenfreados nossos lamentos mais desenfreados ainda. Nossos paroxismos exigem o cenário de um sublime caricatural, de um infinito apoplético, a visão de uma força onde o firmamento serviria de patíbulo a nossas carcaças e aos elementos.)" 

Breviário da decomposição, Emil Cioran: tradução de José Thomaz Brum. Editora Rocco. 2ª Edição, Rio de Janeiro, 1993. p.50-51


10/06/2011

minha primeira namorada

By Troche


Minha primeira namorada era três anos mais velha do que eu, e já sabia ler, enquanto eu ainda riscava, com letra tremida, meu nome, o nome da professora, da diretora, numa folha chaméx com pontilhados roxos, cheirando à álcool. 

Minha primeira namorada era da turma dos grandes. Os grandes tinham um recreio barulhento e cinco minutos mais curto que o nosso, e eu não entendia porque o recreio deles era mais curto, se eles eram os grandes. Porque os grandes, na minha cabeça, precisavam ter um recreio mais demorado, mais longo, e os pequenos, claro, mais curto. Mas minha lógica primária, desde sempre, nunca teve nada a ver com a lógica da escola. E além de tudo, os grandes eram cheios de privilégios, podiam andar de bicicleta do outro lado da cidade, alcançar prateleiras, rir de umas piadas esquisitas, chutar bola no campinho ao pé da serra até quase escurecer. Não fazia sentido essa restrição, mas eu não falava dessas coisas, guardava para mim. 

Também não falava para a minha primeira namorada que ela era minha primeira namorada. Porque, afinal, ela era da turma dos grandes, e eu era da turma dos pequenos. E quem era da turma dos grandes andava com a turma dos grandes, quem era da turma dos pequenos andava com a turma dos pequenos. Se a professora pegasse a gente brincando com a turma dos grandes, era castigo na certa. E mesmo fora da escola, no futebol, por exemplo, a gente não podia jogar com a turma dos grandes, senão, talvez, encarnando a entidade metafísica e fantasmagórica do café-com-leite, cujos gols não valiam. E não há nada mais metafísico e fantasmagórico do que gols que não valem. É como estar em um absoluto estado de impedimento. Com a bandeirinha carimbada na testa. 

Eu me sentia desse jeito com a minha primeira namorada. Eu a namorava, mas eu era um namorado café-com-leite. Não podia brincar com ela, não podia levá-la na minha casa para assistir Pica-pau comigo, para escalar as grades da Igreja Velha, para fazer bolinha de papel e saliva e jogar no teto. Não podia fazer nada, apenas guardar o segredo e prosseguir namorando. 

Mas eu tinha um amigo na turma dos grandes, o Bareta, meu vizinho da esquina, que além de me ensinar uns golpes mortais da faixa amarela de Kung-fú, e me dar um poster do Bruce Lee, era meu conselheiro para assuntos aleatórios. E já com aquela crise no relacionamento me dando nos nervos, eu resolvi desabafar com o Bareta, enquanto a gente enchia a cara de mexerica lá na casa dele. 

O Bareta me ouviu com atenção enquanto eu contei como essa coisa de grandes e pequenos não fazia sentido, e como para mim era complicado ficar vendo a minha namorada, a Marcelinha, só de longe. Que se o relacionamento não avançasse para um nível de maior intimidade e comprometimento dos dois, a coisa ia ruir. O Bareta cuspiu umas sementes e disse que eu tinha razão, mas que a coisa era assim mesmo. Que essa geração de mulheres havia conquistado a autonomia e independência, e que a derrocada de uma sociedade  patriarcal não caminhava para o equilíbrio, ao invés disso, estávamos apenas invertendo os lados, caminhando para uma sociedade matriarcal, com as mulheres dirigindo países e multinacionais e os homens pilotando aspiradores de pó e cuidando da casa, sem contar os relacionamentos moderninhos regidos por elas, coisa que começou com isso de viver em casas separadas, relacionamento aberto, paralelos, essas coisas. Eu sentia arrepios só de pensar. Não estava preparado para tanto modernismo. O Bareta enfiava outro gomo na boca e achava tudo natural, chamava isso de dialética. 

Mas o Bareta disse que eu tinha que colocá-la contra a parede, tomar uma atitude drástica, que não tinha meio termo: tinha que contar para ela que ela era minha namorada. 

*** 

A nossa turma, os pequenos, enfiada numas roupinhas vermelhas, só encontrava com a turma dos grandes, enfiados no uniforme azul-marinho e branco, em duas ocasiões: antes da aula ou nas horas cívicas, que aconteciam toda sexta-feira e estavam sempre ligadas a alguma data comemorativa. Eu namorava a Marcelinha nessas horas. Ela apontava com umas coisas coloridas grudadas no cabelo preso, e os olhos bem pretinhos arregalados e arrastando umas sandálias de plástico verde limão. Ela chegava no portão, e eu ficava meio zonzo, como se o chão escorresse sob meus pés. Eu ficava encostado perto da diretoria, encolhido com a minha merendeira do Fofão entre as pernas. Ela sorria e balançava a mão bem depressa e eu avermelhava o rosto na mesma hora. 

Nesse dia que resolvi falar com ela fiquei ainda mais zonzo, e foi complicado me levantar dali e cercá-la. Minhas pernas fincaram no chão, a coluna endureceu, o queixo desceu no peito. Levantei me arrastando, meio coxo, num trote duro. Parei na frente dela mas a voz não saía. Ela ficou me olhando com aqueles olhos arregalados, que engoliam a parca coragem que me restava e conduzia minha voz ao exílio completo, nalguma região desconhecida do interior do estômago, queimando de frio.

“O que foi?”, ela disse. 

E depois disso, só lembro dela já longe. Como uma queda de energia que apaga a televisão na melhor parte do filme. Não sei o que falei, e nem como falei, se fui claro o suficiente, se ela entendeu. Algum instinto defensor de corações partidos deve ter soterrado essa memória na última gaveta do inconsciente. E talvez seja melhor que fique por lá, empilhada junto com a lembrança do gol contra no meu primeiro jogo de futebol, e da vez que deixei o pote de mel cair no meio rua, e da vez que fui comprar pão com uma fantasia do He-Man caseira, feita com restos de calça jeans, e todo mundo riu de mim. E claro, junto das diversas vezes que redescobri a verdade universal da vida: as pessoas que a gente mais gosta são as que mais nos machucam, e vice-e-versa. 

Quando relatei o ocorrido para o Bareta, a gente enchendo a cara de mexerica na casa dele, o Bareta cuspiu umas sementes e disse que era a assimetria natural da existência, além dessa minha inclinação astrológica viciosa, Leão com ascendente em Sagitário, e que eu devia passar a aceitar as coisas como elas são. Enfiei um gomo na boca e disse que ia tentar. E continuo tentando até hoje.


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09/06/2011

e.e. cummings





eu
estou
te pedindo
querida é pra
que mais poderia um
não mas não é o que
claro mas você não parece
entender que eu não posso ser
mais claro a guerra não é o que
imaginamos mas por favor pelo amor de Oh
que diabo sim é verdade que fui
eu mas esse eu não sou eu
você não vê que agora não nem
sequer cristo mas você
precisa compreender
como porque
eu estou
morto

( tradução: Augusto de Campos )


nalgum lugar em que eu nunca estive,alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos,nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente)a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado,eu e
minha vida nos fecharemos belamente,de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre;só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas

( tradução: Augusto de Campos )



agora ar é ar e coisa é coisa:traço

nenhum da terra celestial seduz
nossos olhos sem ênfase onde luz

a verdade magnífica do espaço.

Montanhas são montanhas;céus são céus -
e uma tal liberdade nos aquece
que é como se o universo uno,sem véus,

total,de nós(somente nós)viesse

- sim;como se, despertas do torpor
do verão,nossas almas mergulhassem
no branco sono onde se irá depor
toda a curiosidade deste mundo
(com júbilo de amor)imortal e a coragem

de receber do tempo o sonho mais profundo

( tradução: Augusto de Campos )


In: http://www.culturapara.art.br/opoema/

08/06/2011

sempre específico

"O simples fato é que a tentativa de ser perfeitamente curtível é incompatível com os relacionamentos amorosos. Mais cedo ou mais tarde, por exemplo, você se verá numa briga horrível, aos berros, e ouvirá saindo de sua boca palavras que você mesmo não curte nem um pouco, coisas que estilhaçam sua autoimagem de pessoa justa, gentil, bacana, atraente, controlada, divertida e curtível. Alguma coisa mais real do que a curtibilidade surgiu de você e de repente você se vê levando uma vida real.

Subitamente existe uma escolha de verdade a ser feita – não uma falsa escolha de consumidor entre BlackBerry e iPhone, e sim uma pergunta: Será que eu amo esta pessoa? E, para o outro, será que esta pessoa me ama?

Não existe a possibilidade de curtir cada partícula da personalidade de uma pessoa real. É por isso que um mundo de curtição acaba se revelando uma mentira. Mas é possível pensar na ideia de amar cada partícula de uma determinada pessoa. E é por isso que o amor representa tamanha ameaça existencial à ordem tecnoconsumista: ele denuncia a mentira.

Isso não equivale a dizer que o amor envolve apenas as brigas. O amor é questão de empatia ilimitada, nascida de uma revelação feita pelo coração mostrando que outra pessoa é tão real quanto você. E é por isso que o amor, ao menos no meu entendimento, é sempre específico. Tentar amar a toda a humanidade pode ser um empreendimento digno, mas, de um jeito engraçado, isso mantém o foco no eu, no bem estar moral ou espiritual do eu. Ao passo que, para amar uma pessoa específica e identificar-se com as lutas dela como se fossem as suas, é preciso abrir mão de parte de si."

Jonathan Franzen, Curtir é covardia, tradução de Augusto Calil. IN: http://blogs.estadao.com.br/link

07/06/2011

amor é onde nós nunca estivemos: [n° 1 obviedades]

Photographed by John Degotardi Jr.

Se calaram sob as cobertas. A luz do abajur caía fraca sobre o quarto. Então ele começou a falar de um bazar onde havia uma besta de plástico, meia dúzia de flechas pretas com borrachinhas vermelhas na ponta, dessas que grudavam na porta da geladeira, em vidro plano, metal liso. Depois da escola,  passava na frente do bazar, para constatar que a besta permanecia intocável, no alto da prateleira, lacrada, na caixa. Se alguém comprasse aquela besta antes dele seria terrível. A moça dos olhos azuis disse que não podia reservar. 

Tinha uns seis anos na época e lhe pareceu que, dentro daquela caixa, a besta, meia dúzia de flechas, havia alguma coisa a ser atingida (por ele), exatamente ali (anos depois, quando essa sensação voltou, ele poderia chamar de felicidade o ponto a ser atingido, e mais tarde ainda, embora nunca tenha entendido completamente, intuía que não tinha nada a ver com o alvo, e sim com o mirar, mesmo que não houvesse chances), mas aos seis anos era nítido essa ilusão de que a felicidade estava materializada exatamente ali, na besta, meia dúzia de setas com borrachinha vermelha. Precisava ter aquela besta, não havia escolha. 

Ele disse que esperou o mês todo até que sua mãe pudesse comprar a besta. E aquele movimento da moça escalando a escada e descendo com a caixa, que ele não deixou embrulhar e abriu ali mesmo, de fora da loja, arrancando o plástico que brilhava debaixo do sol, o cheiro de brinquedo novo, o cheiro borrachinhas vermelhas e o primeiro tiro foi na porta da loja, isso ele não esqueceu. E foi a primeira vez que alguma coisa que ele desejava de verdade, esperava, aconteceu de verdade. 

Dormiu com a besta ao lado da cama e no dia seguinte bombardeou a geladeira, janelas de metal, paredes, guarda-roupas. 

Onde é a cozinha, era uma varanda, ele disse. E ao lado ficava um lote vago, sem a casa que tem hoje, era só pé de mamono e branquiária alta. Então eu cheguei na beira da varanda, ele disse, fez uma pausa: - e joguei tudo lá. 

Ela não disse nada. 

Nunca entendi por que fiz aquilo, eu queria tanto aquela besta. 

Mas e depois? 

Eu não me lembro muito bem, ele disse, sei que umas semanas depois, sabe-se lá quantos, uns caras tavam andando lá dentro do lote. Eu lembro que cheguei na cerca e perguntei: “ei, cêis num viu uma besta e umas flechinhas aí não?”, “não, não vi não”. É a última coisa que eu lembro. 

Ela se arrastou na cama e se encostou nele, apenas respirando. Ele deu-lhe um beijo na testa e disse que ia fumar e logo voltava. Mas ele precisava apenas respirar um pouco. Por saber, que no fim das contas, a maioria das coisas que haviam conversado, eram dois monólogos, paralelos, se esbarrando aqui ou ali. E ele não fazia a mínima ideia de como resolver isso, mas por hora, bastava chegar a janela, acender um cigarro e respirar um pouco, sabendo que a noite ficaria cada vez mais fria. E talvez ele enfiasse duas meias nos pés essa noite.

14°C ontem?, ele perguntou ao voltar para o quarto.

Ela cochilava. Abriu os olhos e perguntou ou disse alguma coisa, e ele não entendeu. Ele apenas se deitou, ouvindo ela respirar, e assim estava bom, pensou por um segundo, mas logo a sensação se dissipou, feito um plugzinho miúdo que se soltasse, não conseguia parar de pensar no motivo de jogar aquela maldita besta fora. E não seria dessa vez que entenderia.

*******


06/06/2011

variações literárias


A Bruna Maria me convidou para colaborar com um projeto bem bacana: As Variações Literárias.  O projeto se resume na produção de ficção inspirada em ficção. Já passaram por lá Israel Fabiano Souza, que localizou sua produção a partir de As intermitências da morte, de José Saramago, Marcos Nunes, que partiu de O Horla, de Guy de Maupassant e Mayra Lopes do Couto, que produziu a partir de A Última Estação. Os últimos dias, de Tolstói.


Meu mote foi o famoso microconto de Ernest Hemingway. O resultado está disponível aqui, uma série de dez microrelatos ficcionais intitulado Breviário de Salomão.

*
Quatro desses microrrelatos foram publicados também no Jornal Opção.

*
É isso.


01/06/2011

ele ainda tocava violão



Desse frio aqui em São Paulo, venho avisar a vocês, meus queridos leitores, que tem um conto inédito no ar. Na seção A cada 15, da editora Grua.

[ler]

*
E feliz aniversário pra Quel.

*