14/05/2010

A vida é minha


Se houvesse realmente um destino, eu nunca teria saído daquela casa, Nina disse. Alguma coisa iria me segurar. Milena devolveu a caneca de chopp na mesa, engasgada em risadas, antes de retrucar dizendo que a Nina era uma louca. Depois perguntou se a Nina esperava por um anjo, ou melhor, que um Nicolas Cage a pegasse pelo braço bem na hora que saia do apartamento e a convencesse meio que por feitiço que, ela e ele, a Nina e o Paulo, eram almas gêmeas ou qualquer sinônimo disso. E Nicolas Cage diria a Nina que Deus estava bravo com essa tentativa de abortar os planos perfeitos d'Ele pra ela. Os planos perfeitos que, de tão perfeitos que eram, a Nina poderia mudar quando bem quisesse.

A vida é minha, Milena.

A vida é tua, mas tu não vive sozinha, Nina.

Caladas sob o chorinho brotando das cordas do violão e da voz grave cantando “Nunca vai ser, nunca vai dar”, ouviram o cara da mesa à esquerda dizer que tinha de acordar cedo amanhã: e uma garrafa de Polar escorregar pra dentro do isolante vermelho, e o ato mecânico de Milena pedir por outro chopp e dizer que tem preguiça dessas coisas de criar laços assim, de uma hora pra outra, e depois desfazer. Então, começa a falar de um tal de Eduardo que era tudo na vida dela, que achava que ia casar com o Eduardo. Que o pai dela adorava o Eduardo e que já tinham até escolhido o nome dos filhos; tu lembra? Sim, Nina responde com o olhar pregado na previsibilidade do movimento da rua. A mesma previsibilidade daquela história que Milena não se cansa de contar; talvez, porque seja o único relacionamento sério que teve, a única história que pode oferecer em contrapartida; e que a Nina se cansara de fingir que ouvia. 

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Mais da Nina

05/05/2010

Porque nada é insubstituível: uma hora ou outra...

Por isso, suponho ter finalmente encontrado um substituto para o Travis na minha playlist. (cansei das antigas e as novas canções do Travis,  não me convencem)

The National: "banda de indie rock formada em 1999 por amigos de Cincinnati, Ohio. As influências vão de Bruce Springsteen a Tindersticks. E as músicas são escritas e cantadas por Matt Berninger com sua diferente voz de barítono". ( last.fm)

Favoritas no momento:

 Fake Empire , Slow Show e Mistaken For Strangers do álbum Boxer (2007)

Mas Anyone's Ghost do álbum High Violet (2010) é sensasional. E não sei dizer o porquê.


Qualquer coisa vai lá no myspace da banda e se vira: aqui

Alegria de escritor:


"Melhor que um editor gostar de um texto é quando um leitor gosta, melhor que quando um leitor gosta é quando nós mesmos gostamos, melhor que quando nós mesmos gostamos é quando gostamos de um texto que nem lembrávamos que tínhamos escrito. Mas daí bate o medo de não ser capaz de escrever aquilo de novo."
(Índigo, no Vida no Campo)

Pois é.



04/05/2010

Argumento anti-solipsistas e experiencialistas ( vulgo, sabichão moralista)

Você tem um amigo que já viveu tudo, sabe tudo e conta uma história sobre tudo?

Aquele cara experiente, cheio de vivência ( ou suposta vivência por osmose ); aquele cara que sempre evoca um caso real para justificar o argumento dele contrário ao seu? O sujeito que sempre usas as expressões, "eu vi", "mas tem um caso que", "bom, pelo que eu sei" ou "até onde vai meu entendimento". Sabe de quem eu tô falando, não é? Todo mundo tem um amigo/colega assim.

Seus problemas acabaram:

1- Suponhamos um sujeito ( esse seu amigo mala) que crê que a sua experiência ou vivência pessoal e singular seja o único valor de verdade.

2-Suponhamos que esse sujeito tenha uma opinião contrária ao assassinato.

3-Pode-se deduzir três coisas: ou esse sujeito matou alguém ou esse sujeito está morto ou esse sujeito matou alguém e está morto.

Portanto: Se seu amigo está vivo, ele é assassino.


02/05/2010

O mundo como buraco e sem fundo


Você já deve ter presenciado a célebre cena do cachorro perseguindo um carro: o carro pára, e pronto: o animal não sabe o que fazer com o imenso objeto de metal na sua frente; fucinha os pneus, novos ou não; as rodas, cromadas ou não: e abana o rabo como quem diz: e agora?

Nós, viventes polidos, críticos, velozes, conectados, higienizados por um lastro histórico cultural milenar, não escapamos muito a essa lógica. Aquela velha lógica do desejo.

Há que se entender bem a distinção entre desejo e vontade, coisa simples. Você quer ir nadar. Ok: é só colocar uma bermuda e ir pra cachoeira. Pular na água e nadar. Pronto: a vontade passou. Vontade é tudo aquilo que está ligado a um impulso contingencial do corpo, que tem como alvo uma meta específica e concreta: quando atingida, supera a vontade.

O desejo, por sua vez, é algo bem mais tinhoso. Está na fundação do ser do homem, na raiz mesma da nossa condição. Um desejo nunca é claro o suficiente para que possamos satisfazê-lo. Digamos que Joãzinho desejava muito transar com a Maria; um dia, Joãzinho deu bebida pra Maria e a levou para a casa dele. Colocou um cd da Maria Rita (que ela gosta) e fez o que tinha de ser feito. Aí, logo depois daquele instante, o Joãzinho olha para o corpo da Maria, nua na cama, de bruços e pensa: “E agora?” - igual o cachorro.

Joãozinho = cachorro.

Isso não se aplica apenas as relações sexuais, mas àquilo que chamamos de “sonhos”.

Você está no final do ensino médio e sonha entrar na faculdade de qualquer jeito, nem importa muito o curso, o importante é poder dizer para os amigos ( e os pais dizerem para os pais de seus amigos) que você está na faculdade; o desejo é tão forte que você entra em desespero imaginando sua vida sem metodologia científica e piadas de professores. Você estuda e passa numa faculdade federal do interior, num curso com mesmo candidato por vaga. A coisa se acalma um pouco. No terceiro período você já começa a questionar se era esse o curso. Se fez a escolha certa. Se não era hora de repensar as coisas. E descobre que uma graduação não vale lá muita coisa hoje em dia. E uma semana depois de se forma você pensa: e agora?

Encontrar a mulher da sua vida, casar, filhos, trocar de emprego, pós-graduação, viajar, ir nos shows das bandas que você gosta, etecétera.

Você entra pela porta da sala, o desejo sai pela porta da cozinha.

Existe sensação mais estranha que completar um álbum de figurinhas?

Schopenhauer já nos alertava que a única forma de atingir um pouco de paz nessa vida, é não desejando; é desejar nada. E é aqui que eu queria chegar: é possível não desejar? Será que lá nesse não-desejo não virá o contraponto fantasmagórico do “e agora?” como a risada do "Rabugento" no Pólo Norte?

Ok, você atingiu o Nirvana: e agora?

E agora Nada!

Como assim nada?

Nada! Nadica de nada.

Nada?

É nada.

Mas e agora?

Nada.

ad infinitum

O que têm depois da paz?

Desejamos tanto uma paz que seja firme feito um tijolo e não nos damos conta que, ao projetar a paz em coisas concretas, pra tornar nossos sonhos possíveis e realizáveis, enterramos nossa vida no contingencial. na infelicidade concreta. Focar o desejo no concreto é a melhor forma de ser infeliz. O desejo, em si mesmo, não tem qualquer relação com as coisas concretas, não pode ser satisfeito por nada que é concreto; é como um abismo, um saco sem fundo, não guarda qualquer coisa, exceto essa ausência pura.

Qual a saída então?

Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.


Se o desejo não é contingencial, a única forma de superá-lo é com algo que também seja necessário.

A felicidade não é deste mundo, exatamente isso.

O desejo tem de transcender “esse mundo” do contingente e ancorar-se na dimensão da transcendência; que não é nem uma supra realidade, mas a dimensão íntima de cada um de nós, a dimensão do encontro e da necessidade de ser aquilo que somos. O desejo tem de girar no eixo do coração do homem, caso contrário é a infelicidade. Somos finitos, mas enquanto existentes, somos necessários. E se há alguma possibilidade de frear essa mola diabólica do desejo, essa possibilidade está nós, não no mundo.