15/05/2012

Chofer




I

Encontrei o Pingo debaixo da carcaça do Chofer.

Chofer era como todo mundo chamava aquele Fiat 147. Afundado no lote, do lado da escola. Ainda tinha os vidros laterais e as rodas dianteiras. Bancos cheios de pulgas, fedendo à urina de rato, bosta de pombos e cachorro molhado.

“Você viu as crianças?”.
“Lá no Chofer”.

Supunham que o Chofer tinha sido de um tal de Cangaço. Suposto italiano dos dedos peludos, supostamente tinha vivido nas redondezas. Há uns sete anos: algo como o bandido mais famoso da breve história da cidade.

Brincávamos praticamente todo dia no Chofer. O Zé Puta e o Banana costumavam apontar buracos de ferrugem na lataria e falar de tiros.

“Esse foi quando o Cangaço roubou três postos de gasolina”, dizia o Zé Puta.

“No terceiro posto, uma loirinha se apaixonou por ele e entrou no carro. E eles foram perseguidos pela polícia até que o Cangaço ficou sem gasolina, e teve que deixar o Chofer aqui. E fugir pra Cruzília.”.

Era essa a história.


Dava pra ouvir os disparos de 38, cheiro de pneus fritando, as risadas do Cangaço ecoando junto das sirenes ecoando pelo bairro.

A gente costumava encontrar camisinhas no Chover. E uma vez o Banana encontrou uma calcinha e vendeu pro Digão por treze reais. Treze reais era praticamente toda grana que o Digão ganhava vendendo abacate pra mãe dele.

O Digão levou aquela calcinha pra casa e guardou debaixo do colchão.

Um troféu roubado ainda é um troféu.

E foi aí que o Digão passou pra outro nível. Não o nível dois (onde estavam o Zé Puta e o Banana, cheios de histórias). Um nível intermediário.

Meio nível, talvez.

O Digão era o único cara da nossa idade que tinha uma calcinha de verdade em casa.

Quando eu ia até a casa do Digão, eu pedia que ele deixasse eu pegar um pouco. E como eu sempre pedia e outros também pediam, o Digão logo percebeu uma forma de ganhar dinheiro com aquilo.

Começou a alugar a calcinha.  

Com o dinheiro o Digão comprou uma espingarda de chumbinho toda enferrujada, do seu Arlindo. E saía por aí acertando a fuça de pardais.

Mas o importante é que ninguém com um pouco de juízo ia ao Chofer quando chovia, principalmente depois da aula.

As calhas da escola despencavam direto no lote. Virava um lamaçal. E além de tudo, o mato era alto. A gente sempre apanhava por nada. Os pais de todo mundo viviam batendo. Batendo. Às vezes sem explicar o motivo, sei lá. Parecia algum tipo de passatempo de adultos.

Nada de bom na televisão, hmm, vem cá moleque. E traz a cinta.

Bastava uma risada durante o jornal, um comentário na hora da janta – às vezes só o barulho de mastigar.

Chegar em casa com o tênis sujo de barro, o uniforme molhado, era pedir pra apanhar.

Fomos só o Digão e eu. Dois cabeças duras. Íamos fazer o de sempre. Dirigir por estradas desertas, assaltar três ou quatro bancos, enganar a polícia nas esquinas do bairro.

Mas aí eu comecei a ouvir aquele barulho. O choro do Pingo – que ainda não se chamava Pingo – todo encharcado debaixo do Chofer.

Rodeei o carro, seguindo os barulhos do bichinho.

Chamei. E o Digão também chamou. Mas o Pingo não quis sair de lá.

Tive que agachar pra conseguir pegá-lo.


Saiu igual um Zumbi que tivesse acabado de escavar sua volta ao mundo dos vivos - tão imundo que não dava para saber a cor do seu pelo.

"É meu", eu disse.

O Digão disse que eu podia ficar, que ele não gostava de cachorro.

Na verdade, era a mãe do Digão que não gostava de cachorro. Ela tinha três gatos perebentos em casa, (coisa pra espantar os ratos - embora ali no bairro aparecesse ratos do tamanho gatos, e vice-versa - mas funcionava). Ela não gostava de cachorros porque viviam perseguindo os gatos dela. E ela era apaixonada por aqueles gatos encardidos. Perebentos. Magros feito frangos do pescoço pelado.

A mãe do Digão costumava colocar chumbinho no angu e dar pros vira-latas da rua. Sempre aparecia a carcaça de um cachorro.

Às vezes a gente descobria pelo cheiro.

Todo mundo sabia como acontecia. Mas talvez porque houvesse tantos vira-latas no bairro, revirando o lixo, uivando, andando em bando atrás de cadelas - ninguém dava falta. Boatos. E ninguém ligava.

Coloquei o Pingo no colo, ele começou a se revirar, a chorar ainda mais. Chorar e balançar as patas. Então escorregou da minha mão, e quando eu fui tentar pegá-lo, desequilibrei e caí, com a orelha atolada no barro.

“Oito ponto três”, disse o Digão, e me estendeu o braço.

Levantei, peguei o Pingo: e saí andando. E minha maior preocupação nem era o barro na roupa.

O tênis. A sova.

O negócio era convencer meu pai a deixar eu ficar com o Pingo.

***