I
Encontrei o Pingo debaixo da carcaça do Chofer.
Chofer era como todo mundo chamava aquele Fiat 147. Afundado no lote, do lado da escola. Ainda tinha os vidros laterais e as rodas dianteiras. Bancos cheios de pulgas, fedendo à urina de rato, bosta de pombos e cachorro molhado.
“Você viu as crianças?”.
“Lá no Chofer”.
Supunham que o Chofer tinha sido de um tal de Cangaço. Suposto italiano dos dedos peludos, supostamente tinha vivido nas redondezas. Há uns sete anos: algo como o bandido mais famoso da breve história da cidade.
Brincávamos praticamente todo dia no Chofer. O Zé Puta e o Banana costumavam apontar buracos de ferrugem na lataria e falar de tiros.
“Esse foi quando o Cangaço roubou três postos de gasolina”, dizia o Zé Puta.
“No terceiro posto, uma loirinha se apaixonou por ele e entrou no carro. E eles foram perseguidos pela polícia até que o Cangaço ficou sem gasolina, e teve que deixar o Chofer aqui. E fugir pra Cruzília.”.
Era essa a história.
Dava pra ouvir os disparos de 38, cheiro de pneus fritando, as risadas do Cangaço ecoando junto das sirenes ecoando pelo bairro.
A gente costumava encontrar camisinhas no Chover. E uma vez o Banana encontrou uma calcinha e vendeu pro Digão por treze reais. Treze reais era praticamente toda grana que o Digão ganhava vendendo abacate pra mãe dele.
O Digão levou aquela calcinha pra casa e guardou debaixo do colchão.
Um troféu roubado ainda é um troféu.
E foi aí que o Digão passou pra outro nível. Não o nível dois (onde estavam o Zé Puta e o Banana, cheios de histórias). Um nível intermediário.
Meio nível, talvez.
O Digão era o único cara da nossa idade que tinha uma calcinha de verdade em casa.
Quando eu ia até a casa do Digão, eu pedia que ele deixasse eu pegar um pouco. E como eu sempre pedia e outros também pediam, o Digão logo percebeu uma forma de ganhar dinheiro com aquilo.
Começou a alugar a calcinha.
Com o dinheiro o Digão comprou uma espingarda de chumbinho toda enferrujada, do seu Arlindo. E saía por aí acertando a fuça de pardais.
Mas o importante é que ninguém com um pouco de juízo ia ao Chofer quando chovia, principalmente depois da aula.
As calhas da escola despencavam direto no lote. Virava um lamaçal. E além de tudo, o mato era alto. A gente sempre apanhava por nada. Os pais de todo mundo viviam batendo. Batendo. Às vezes sem explicar o motivo, sei lá. Parecia algum tipo de passatempo de adultos.
Nada de bom na televisão, hmm, vem cá moleque. E traz a cinta.
Bastava uma risada durante o jornal, um comentário na hora da janta – às vezes só o barulho de mastigar.
Chegar em casa com o tênis sujo de barro, o uniforme molhado, era pedir pra apanhar.
Fomos só o Digão e eu. Dois cabeças duras. Íamos fazer o de sempre. Dirigir por estradas desertas, assaltar três ou quatro bancos, enganar a polícia nas esquinas do bairro.
Mas aí eu comecei a ouvir aquele barulho. O choro do Pingo – que ainda não se chamava Pingo – todo encharcado debaixo do Chofer.
Rodeei o carro, seguindo os barulhos do bichinho.
Chamei. E o Digão também chamou. Mas o Pingo não quis sair de lá.
Tive que agachar pra conseguir pegá-lo.
Saiu igual um Zumbi que tivesse acabado de escavar sua volta ao mundo dos vivos - tão imundo que não dava para saber a cor do seu pelo.
"É meu", eu disse.
O Digão disse que eu podia ficar, que ele não gostava de cachorro.
Na verdade, era a mãe do Digão que não gostava de cachorro. Ela tinha três gatos perebentos em casa, (coisa pra espantar os ratos - embora ali no bairro aparecesse ratos do tamanho gatos, e vice-versa - mas funcionava). Ela não gostava de cachorros porque viviam perseguindo os gatos dela. E ela era apaixonada por aqueles gatos encardidos. Perebentos. Magros feito frangos do pescoço pelado.
A mãe do Digão costumava colocar chumbinho no angu e dar pros vira-latas da rua. Sempre aparecia a carcaça de um cachorro.
Às vezes a gente descobria pelo cheiro.
Às vezes a gente descobria pelo cheiro.
Todo mundo sabia como acontecia. Mas talvez porque houvesse tantos vira-latas no bairro, revirando o lixo, uivando, andando em bando atrás de cadelas - ninguém dava falta. Boatos. E ninguém ligava.
Coloquei o Pingo no colo, ele começou a se revirar, a chorar ainda mais. Chorar e balançar as patas. Então escorregou da minha mão, e quando eu fui tentar pegá-lo, desequilibrei e caí, com a orelha atolada no barro.
“Oito ponto três”, disse o Digão, e me estendeu o braço.
Levantei, peguei o Pingo: e saí andando. E minha maior preocupação nem era o barro na roupa.
O tênis. A sova.
O tênis. A sova.
O negócio era convencer meu pai a deixar eu ficar com o Pingo.
***
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oi.