Da mesma forma que tirar dez em Física Clássica não faz de ninguém um bom goleiro, centenas de aulas e leituras de Biologia elementar não afastam meu espanto diante de um fato: há vinte cinco semanas uma pessoa de verdade está crescendo na barriga dela.
Tubo bem que o laboratório de ciências da escola era uma catástrofe. O experimento mais complexo – além de germinar feijão com algodão molhado – resumia-se a olhar gotinhas de sangue dalgum aluno mais corajoso no microscópio enferrujado que ampliava umas dez vezes os glóbulos vermelhos. Bem aquela frase do físico alemão de cabelos espetados sobre a importância da imaginação para a Ciência. Na falta de experimento concreto, restava preencher as lacunas com devaneios.
Mas há que se fazer justiça – havia o livro (que a gente tinha que comprar, embora a escola fosse pública) e alguns vídeos pedagógicos cuja trilha sonora era composta por sintetizadores de sonoridade melancólica teclado Cássio, timbre de games de 16 bits, Stay On These Roads do A-ha versão fita K7, alguma coisa assim. Para superar a falta de infraestrutura, D. Maria, excelente professora, além de desenhar uma célula completa com giz colorido na lousa, costumava gravar no vídeo cassete reportagens especiais do Fantástico ou documentários da TV Escola (leia-se docs da BBC e National Geographic dos anos 70 e 80 reprisados com décadas de defasagem) sobre o funcionamento do sistema respiratório, cérebro, rins, dinossauros vagando pela terra devastada, a ameaça invisível das superbactérias, Darwin observando pássaros.
Na era pré-internet, qualquer coisa que fosse além de uma fita do Telecurso 2000 já era lucro.
Vendedores de enciclopédias baratas e jogos paradidáticos faziam a festa. Roletas com grupos, famílias, filos e subfilos que iam do vírus aos macacos, das amebas à jararacuçu. Lembro como se fosse hoje de um esqueleto de papelão de montar com cola e tesoura sem ponta que pendurei na porta do guarda-roupas. Acordei no meio da noite e levei um baita susto diante daquele vulto branco, ali parado com os braços tortos, querendo me surripiar a alma.
Todo conhecimento humano acumulado durante milênios – passado de geração em geração através de narrativa oral, monges copiadores, da imprensa, dos livros, bits, constantemente reformulado por homens solitários trancafiados há três dias sem banho em porões de castelos, nerds insones financiados por fundos de pesquisa sete vezes maiores que o PIB do Uruguai, então organizado no funil do currículo sistematizado para terminar no meu caderno e na minha cabeça – não adiantaram de nada.
Tem uma pessoa de verdade crescendo na barriga dela. E a perspectiva do discurso científico elementar é incapaz de construir uma explicação satisfatória.
Vejo e revejo cada um dos ultrassons, desde o primeiro quando não passava de um feijão, até o último com efeitos em três dimensões, com as expressões e a mão coçando o rosto, mas não adianta. Não dá para entender.
E mesmo a palavra milagre, no fim das contas, é só um nome. Uma metáfora precária, incapaz de cobrir esse espanto abissal, essa sensação de pequinês diante da vida.