15/12/2013

"De onde vem essa certeza de que você mesmo não é o mal?"


Eu caminhava sozinho e com sono no rumo do ponto de ônibus. Eram mais ou menos 5h40. Ainda estava escuro, mas já havia muitos carros e ônibus lotados e trânsito na Av. Interlagos. Eu havia acabado de acender um cigarro e tinha muito sono. Um homem vinha caminhando em sentido contrário, displicente. Eu apenas tragava meu cigarro e pensava em conseguir uma poltrona vazia no ônibus e cochilar até o metrô. Quando o homem cruzou meu caminho, ele agarrou minha blusa na altura do peito e colocou o rosto barbudo e os olhos alucinados na minha cara. Eu quase caí de susto. Girei o corpo num reflexo e me soltei. Completamente perturbado. Como se o céu se abrisse sobre minha cabeça e uma mão gigante me pinçasse pelas costas. O coração disparou e um pouco sem ar e confuso e xinguei o sujeito e joguei meu cigarro nas suas costas. À medida que avançava, ia espiando o homem. Ele caminhava como se nada houvesse acontecido. Preso ao seu mundo (cada um no seu), catava coisas no chão e devolvia no lugar. Despareceu na dobra de uma esquina. 

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Em uma entrevista ao Wall Street Journal, o escritor americano Cormac McCarthy disse o seguinte: “Eu não acho que a bondade seja algo que você possa aprender. Se você é deixado à deriva no mundo para aprender a bondade a partir dele, você está em apuros”. McCarthy diz isso ao falar da experiência particular com seu filho. Uma experiência pessoal que foi transplantada para o romance A estrada, vencedor do Pulitzer em 2007. Ele acha seu filho tão moralmente superior a ele, que não acredita que a moralidade do filho veio da educação que ele pôde lhe oferecer. 



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A dimensão da moralidade é uma negação da Natureza. É uma condição humana. No mundo natural não há moralidade, apenas a opacidade da matéria e o silêncio indiferente dos mecanismos da sobrevivência. Para nós ocidentais frequentadores de universidades e parcamente educados em toscas noções de psicologia e filosofia moral – nessas matérias de primeiros semestres com o título de introdução – o comportamento moral e a internalização de valores ocorrem socialmente. São adquiridos. Nascemos com a condição de possibilidade de operar modelos da moralidade, através da consciência. Toda e qualquer ação moral deve ser um ato livre. Mas se a bondade for apenas ensinada, por que pais relativamente bons e equilibrados têm filhos cruéis e assassinos? 

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Se o mundo é cruel, como de fato é, como esperar que a bondade possa surgir a partir dele?


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Além das montanhas (Cristian Mungiu, 2012) é um dos melhores filmes que vi esse ano. Mungiu ganhou a Palma de Ouro pelo roteiro. E é realmente excelente. O que à primeira vista parece ser a simples história de amor mal resolvido entre duas adolescentes que cresceram em um orfanato na Romênia, acaba por se mostrar uma crítica das mais contundentes ao modo como a religião e o moralismo rígido, a despeito das boas intenções, pode facilmente produzir atos hediondos. 


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Antes de ler Meridiano de Sangue eu li Hiroshima, de John Hersey. É um best-seller. Mas para quem não conhece, trata-se de um livro-reportagem que conta a história de seis sobreviventes da bomba atômica. É aterrador. Na época que foi publicado, ocupando praticamente uma edição inteira da revista The New Yorke, a população americana não sabia exatamente o que havia acontecido com a queda da bomba e de que tipo de arma se tratava. Os próprios japoneses atingidos acharam que aviões haviam banhado a cidade com milhares de litros de gasolina e ateado fogo. Era a única forma de explicar tantos incêndios. Mas quanto à estrutura narrativa do texto, muitas vezes parece um romance mal escrito. Tudo bem. A história é tão relevante que os problemas do texto acabam indo para segundo plano. Afinal, é um texto jornalístico. O curioso é que Meridiano de Sangue, um livro de ficção (apenas inspirado em fatos históricos), me deixou bem mais perturbado que o relato fiel de John Hersey. O motivo: o texto de McCarthy é anos-luz mais vigoroso.

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Não havia assentos livres no ônibus e fiquei de pé no trajeto até o metrô. Sentia-me muito mal por ter xingado e jogado o cigarro no homem que havia agarrado minha blusa. Era um sujeito com problemas mentais, sozinho, vagando à esmo sabe-se lá à procura de quê. Quando contei a história para os colegas de trabalho, em tom de humor, fiz questão de ressaltar – foi por reflexo. Era verdade. Claro: reflexo. Mas não era suficiente. 

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"De onde vem essa certeza de que você mesmo não é o mal?" é o título de um ensaio de Jonathan Franzen, publicado na coletânea Como ficar sozinho.