Você fica animado quando descobre que vai ter algumas janelas nesse semestre. Mas logo o ato de ter que ir até a Vila Mariana para assistir apenas uma aula na quinta-feira à noite se transforma em algo desanimador. Uma hora no nosso glorioso transporte público, com direito a baldeação metrô-ônibus. Ida e volta. Meia tonelada de combustível fóssil despejado na atmosfera. Pra nada: uma aula sobre obviedades. Mas pelo menos dá pra brincar um pouco com o Joaquim antes de sair. Além de espalhar a coleção de discos pela sala, de escolher um disco aleatório e pedir pra colocar na vitrola, e girar o volume ao máximo e colocar um carrinho pra girar em cima do disco - e depois pegar outro disco aleatório e repetir o processo - ele também me arrasta pelos quatro cantos da casa e se enfia embaixo da tábua de passar e joga os sapatos atrás da máquina de lavar. A primeira coisa que ele aprendeu a dizer foi “água”. E segunda foi “rua”. Então ele me arrasta até o trocador e pega o par de tênis e entrega na minha mão porque já aprendeu que calçar tênis é sinônimo de abrir a porta, entrar no elevador e caminhar até a portaria do prédio e ficar apontando para os ônibus que passam lá fora. Mas é só mostrar pra ele as luzes acesas lá embaixo. É um código que a gente estabeleceu já tem um tempo. Você diz que está escuro e ele sabe que se trata de banho e trocar de roupa e dormir. E por isso resiste em vir no colo. E eu preciso ir à aula.
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Uma vantagem de sair de casa às 19h50 e pegar um ônibus no sentido do centro é que todo ônibus que passa está vazio. Contrafluxo. Nem mesmo o rescaldo daquela chuva apocalíptica do meio da tarde afeta seu trajeto. E também não há trânsito. Dá pra abrir o livro sem incomodar ninguém. O primeiro conto, Dimensões, é sobre uma garota que conhece um técnico de enfermagem um tanto quanto implicante chamado Lloyd. No começo você não sabe do que se trata, a narrativa é fragmentada, os diálogos e o discurso indireto livre parecem evitar cair no centro da questão. Como se ao mesmo tempo que tentasse se lembrar, tentasse também se afastar do que aconteceu. “Eu sei que essas palavras já estão mortas de tão gastas”, ela disse. “Mas continuam verdadeiras”.* E logo a narrativa avança e você de repente já sabe que a coisa vai terminar mal. “Doree tinha saído correndo da casa e tropeçava pelo quintal da frente, com os braços cruzados apertando a barriga como se tivesse sido cortada ao meio e tentasse se manter inteira”. Então o maluco do Lloyd, o enfermeiro, vai parar numa instituição psiquiátrica e começa a escrever umas cartas totalmente lúcidas – excessivamente lúcidas – para Doree. E Doree começa a visitar o sujeito escondido. Depois de tudo.
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A aula é um horror. Um grande almoço de domingo. Um professor que se declara “de esquerda” defendendo a tese desenvolvimentista encarnada na construção de Belo Monte abertamente. Argumento: essas obras faraônicas são fundamentais para o crescimento do país. O que seria do Brasil sem Itaipu? Além disso: sujeitos que têm bolsa do Prouni e vivem na periferia (e que acham que programas de transferência de renda e combate a desigualdade como cotas, bolsas de estudo e bolsa família são esmola) dizendo que quem protesta durante a semana é vagabundo. “O protesto foi domingo porque a gente trabalha”. Outro sujeito dizendo que o imposto sobre heranças não funciona em lugar-nenhum. E que essas Ongs e entidades, sob pretexto de defenderem os direitos das pequenas comunidades tradicionais que serão afetadas pela construção de hidroelétricas, atrapalham o desenvolvimento do país. Uns ignorantes. Uns atrasados. Um estorvo para o crescimento da nação.
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No metrô uma amiga da sala me conta sobre seu TCC. Um documentário sobre pessoas que perderam a visão. Ela diz que já tem alguns personagens, inclusive um casal de cegos que vive juntos há muitos anos. “E eles sonham?”, pergunto. “Claro”, ela diz. Depois eu falo daquele conto famoso do Carver, Catedral, onde um cara fuma um baseado com um cego e depois tenta descrever para o cego como é uma catedral. O assunto acaba aí. Não tenho muito o que dizer da monografia que estou escrevendo sobre Memórias do cárcere. Exceto o labirinto kafkiano em tentar e sempre fracassar em marcar um horário com o meu orientador. Desço na estação Conceição e pego o ônibus. Consigo terminar de ler o conto da Alice Munro. No meio da Cidade Bagdá, onde tem um barzinho que funciona até tarde, uma viatura da ROTA está estacionada. Olho de relance e vejo três caras encostados na parede tomando geral. Dentro do bar um policial com fuzil apontado para três homens de costas no balcão. “Rota na rua. Bandido bom é bandido morto”, diz o motorista do ônibus, imitando o timbre de voz do Dr. Paulo. A coisa é tão assustadoramente previsível que um arrepio escala minha coluna e estoura na nuca. O cobrador ameaça argumentar: “às vezes é até trabalhador”. Mas logo desiste. Um passageiro próximo da porta da frente – um senhorzinho aposentado de boné que sempre desce naquele ponto, sempre com uma sacola de pão: “Esse era bom. Rouba, mas faz”. O motorista abre a porta e repete: “Rouba, mas faz. Rota na rua”.
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“Rua”, segunda palavra que meu filho aprendeu a falar. Então você resolve descer no ponto depois daquele em que desce todos os dias. Dá uns poucos minutos de diferença, mas pelo menos é mais movimentado, mais iluminado. Uma mulher que vem na minha direção, em sentido contrário, ao longe, atravessa para o outro lado da rua, no breve intervalo entre os carros. Acendo um cigarro. E sigo imaginando os sonhos de um cego. De um cego de nascença. À noite é arrastado para outro tipo de escuridão. Uma escuridão menos opressora. Tranquila. Um sujeito que nunca viu uma imagem. Deve sentir uma forte vertigem. Pesadelos com cachorros e cobras. Os solavancos e empurrões de um bando de estranhos. Vozes que giram ao seu redor e ele de repente vai ao chão com a certeza de enfiar a cabeça num toco cheio de pregos. Pisar em cacos de vidro. Os móveis da casa trocados de lugar a todo momento, como se tivessem pernas, como se fossem um bando de espíritos zombeteiros. Não sei. Imagino. Quando o sonho é bom deve sonhar com música.