Você já deve ter presenciado a célebre cena do cachorro perseguindo um carro: o carro pára, e pronto: o animal não sabe o que fazer com o imenso objeto de metal na sua frente; fucinha os pneus, novos ou não; as rodas, cromadas ou não: e abana o rabo como quem diz: e agora?
Nós, viventes polidos, críticos, velozes, conectados, higienizados por um lastro histórico cultural milenar, não escapamos muito a essa lógica. Aquela velha lógica do desejo.
Há que se entender bem a distinção entre desejo e vontade, coisa simples. Você quer ir nadar. Ok: é só colocar uma bermuda e ir pra cachoeira. Pular na água e nadar. Pronto: a vontade passou. Vontade é tudo aquilo que está ligado a um impulso contingencial do corpo, que tem como alvo uma meta específica e concreta: quando atingida, supera a vontade.
O desejo, por sua vez, é algo bem mais tinhoso. Está na fundação do ser do homem, na raiz mesma da nossa condição. Um desejo nunca é claro o suficiente para que possamos satisfazê-lo. Digamos que Joãzinho desejava muito transar com a Maria; um dia, Joãzinho deu bebida pra Maria e a levou para a casa dele. Colocou um cd da Maria Rita (que ela gosta) e fez o que tinha de ser feito. Aí, logo depois daquele instante, o Joãzinho olha para o corpo da Maria, nua na cama, de bruços e pensa: “E agora?” - igual o cachorro.
Joãozinho = cachorro.
Isso não se aplica apenas as relações sexuais, mas àquilo que chamamos de “sonhos”.
Você está no final do ensino médio e sonha entrar na faculdade de qualquer jeito, nem importa muito o curso, o importante é poder dizer para os amigos ( e os pais dizerem para os pais de seus amigos) que você está na faculdade; o desejo é tão forte que você entra em desespero imaginando sua vida sem metodologia científica e piadas de professores. Você estuda e passa numa faculdade federal do interior, num curso com mesmo candidato por vaga. A coisa se acalma um pouco. No terceiro período você já começa a questionar se era esse o curso. Se fez a escolha certa. Se não era hora de repensar as coisas. E descobre que uma graduação não vale lá muita coisa hoje em dia. E uma semana depois de se forma você pensa: e agora?
Encontrar a mulher da sua vida, casar, filhos, trocar de emprego, pós-graduação, viajar, ir nos shows das bandas que você gosta, etecétera.
Você entra pela porta da sala, o desejo sai pela porta da cozinha.
Existe sensação mais estranha que completar um álbum de figurinhas?
Schopenhauer já nos alertava que a única forma de atingir um pouco de paz nessa vida, é não desejando; é desejar nada. E é aqui que eu queria chegar: é possível não desejar? Será que lá nesse não-desejo não virá o contraponto fantasmagórico do “e agora?” como a risada do "Rabugento" no Pólo Norte?
Ok, você atingiu o Nirvana: e agora?
E agora Nada!
Como assim nada?
Nada! Nadica de nada.
Nada?
É nada.
Mas e agora?
Nada.
ad infinitum
O que têm depois da paz?
Desejamos tanto uma paz que seja firme feito um tijolo e não nos damos conta que, ao projetar a paz em coisas concretas, pra tornar nossos sonhos possíveis e realizáveis, enterramos nossa vida no contingencial. na infelicidade concreta. Focar o desejo no concreto é a melhor forma de ser infeliz. O desejo, em si mesmo, não tem qualquer relação com as coisas concretas, não pode ser satisfeito por nada que é concreto; é como um abismo, um saco sem fundo, não guarda qualquer coisa, exceto essa ausência pura.
Qual a saída então?
Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
Se o desejo não é contingencial, a única forma de superá-lo é com algo que também seja necessário.
A felicidade não é deste mundo, exatamente isso.
O desejo tem de transcender “esse mundo” do contingente e ancorar-se na dimensão da transcendência; que não é nem uma supra realidade, mas a dimensão íntima de cada um de nós, a dimensão do encontro e da necessidade de ser aquilo que somos. O desejo tem de girar no eixo do coração do homem, caso contrário é a infelicidade. Somos finitos, mas enquanto existentes, somos necessários. E se há alguma possibilidade de frear essa mola diabólica do desejo, essa possibilidade está nós, não no mundo.