18/08/2012

"pó de ferrugem"


Ashes, 1894. Edvard Munch


"Um ano depois, mudam-se para um sobradinho na periferia da cidade. Com 54 metros quadrados, é a miniatura de uma casa, o que de certa forma misteriosa lhe agrada. Num dos quartos minúsculos do segundo andar, faz uma estante primitiva que cobre a parede inteira e cujas tábuas de araucária, lixadas, pintadas e repintadas, montadas, desmontadas e refeitas, seguirão por toda a sua vida, numa transformação perpétua. Ele gosta de mexer com madeira. (Sonha às vezes com um espaço de garagem, uma bancada, um torno, uma minimarcenaria que jamais terá na vida.) E a altura e largura da estante serão o termômetro da melhora de seu padrão de vida, nas mudanças seguintes, pela parede a mais que sobrar, para os lados e para cima, O preço do sobrado era convidativo; a prestação, menos que um aluguel; a entrada, o cheque que recebeu por um trabalho avulso na área das letras. Tudo parece fácil. Deram o sinal num sábado à tarde; na terça seguinte, ao revisitar o sobradinho, descobre que há uma serra­ria próxima e que o ruído das máquinas, um zumbido inextinguível, acompanhará cada linha que escrever. À noite, uma mulher nua e louca, loira como o pecado, impressionante sob o luar, às vezes sai à rua — de chão batido, cortando terrenos baldios, estão no limite do mundo — gritando as mesmas fra­ses ininteligíveis, até que alguém venha buscá-la com um roupão para protegê-la, e ela volte em transe, na sua loucura cir­cular. Ele vê aquilo das sombras e nas sombras, e transforma mentalmente a imagem num quadro de Münch, para se defender — mas o metal histérico da voz de araponga permanece horas no ar, ressoando. Uma manhã descobre que lhe roubaram o botijão de gás, que ficava no pequeno pátio dos fundos, cortando a mangueirinha que atravessava a parede. Começa a comprar cadeados, correntes, grades. Manda erguer um portão de ferro. No espaço da frente, um quadrado de dois por dois metros, que poderia ser um jardim, planta pepi­no, girassol, salsinha, rabanete. Uma tarde uma senhora para diante dele e diz que admira quem aproveita o menor terreno para produzir alguma coisa. Ele agradece — gostou de ouvir aquilo. Ele se sente — ou se faz de — um teimoso personagem de William Faulkner, obedecendo a algum chamado an­cestral que não compreende mas que precisa levar adiante por alguma força imemorial que está além da razão. É uma bela imagem literária, mas isso não é ele. Sente-se em falso; ainda lhe deforma o senso o velho cordão umbilical do seu imaginário da infância, o pai que ele não teve, com o sonho rousseauniano — afastar-se dessa merda de cidade, refugiar-se fora do sistema, viver no mundo da lua, estabelecer as próprias regras, dar as costas à História. É difícil — as coisas parece que vão perdendo o controle. Uma fase atormentada. A mulher tem de pegar dois ônibus para ir ao trabalho, que fica no outro lado da cidade. Por que não pensou nisso antes? Ela não queria comprar o sobrado; ele que insistiu, obtuso e sorridente. Ele cuida da casa, dá aulas particulares, faz revisão de textos e teses. Para dizer onde mora, tem de desenhar um mapa, assinalar placas indicativas, setas, nomes de ruas que ninguém conhece. A ruazinha do sobrado tem nome de um poeta medíocre: Luiz Delfino. Por um bom tempo não tem telefone. Autista, debruça-se sobre o novo romance que escreve já há alguns meses, Trapo, indiferente ao mundo, enquanto não consegue publicar o anterior. Vai pondo na ga­veta as cartas de recusa das editoras e engolindo em seco as derrotas dos concursos literários, mas nada disso o incomo­da de fato. É como se uma parte dele negasse o confronto desigual — melhor baixar a cabeça, discreto, e tentar uma outra esquina do labirinto. O mundo é muito mais forte, impressionante e poderoso do que ele. A medida da província entranha-se na sua alma. Talvez fosse o momento de reler Nietzsche, começar de novo, mas ele não tem mais tempo. Ouve pela primeira vez rodar a engrenagem poderosa do tem­po, e um discreto pó de ferrugem já transparece nos objetos que toca. Finalmente, o tempo começa a passar". 

Cristovão Tezza, O filho eterno. 13ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2012.

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