Cada vez que descubro um diretor de talento acima da média (a mesma coisa ocorre também com um escritor), um sujeito que eu mal suspeitava a existência (e sobreviveria muito bem sem conhecer, assim como se sobrevive muito bem sem provar o cheiro da Mona Lisa, sem comer a Nicole Kidman, ou coçar os olhos numa tempestade de areia no Saara), cada vez que me deparo com uma obra cinematográfica dessa envergadura, é como se a vastidão caipira da minha ignorância contemplasse a vastidão desse horizonte a se perder de vista que é o mundo do cinema para além dos cartazes pregados no terceiro piso sempre limpo dos shoppings, onde cidadãos suburbanos trabalham até dez horas da noite de um sábado ou domingo a troco de mixaria, para servir pipoca e coca-cola e garantir a diversão unidimensional de um casal unidimensional que acha genial essas comédias pasteurizadas tipo Globo Filmes.
Climas (2006) |
Esse pequeno adendo mal humorado apenas para dizer que eu mal fazia ideia de quem era Nuri Bilge Ceylan, quando fui ver Era uma vez na Anatólia. É sempre um risco e nem sempre recompensado, mas eu gosto de ver filmes sem planejar, sem manuais interpretativos a priori. Além de ser uma boa estratégia para escapar da cartilha publicitária que arrasta nós todos a esses objetos de puro consumo disfarçados de cinema, um bom filme é uma das poucas coisas na vida capaz de te forçar a experimentar outra realidade. Assumir outra perspectiva.
Embora seja apenas um suspiro de duas horas na escalada de Sísifo de uma segunda a outra, encarar outra perspectiva além do centro gravitacional do ego é salutar. Essa imersão, pelo menos pra mim, costuma ser mais efetiva com a leitura, mas no cinema – assim como uma viagem ou uma mudança de cidade, ou quando você acaba criando vínculos razoavelmente satisfatórios com pessoas que têm crenças e princípios contrários aos seus – há essa possibilidade de experimentar a si mesmo e o mundo por outra ótica.
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Se alguém me perguntasse de supetão o que é a beleza, em sentido radical, eu diria que a beleza é uma destas poucas coisas que te mobiliza a continuar vivendo. E a beleza em Ceylan – além dos planos longos e abertos, da opção pelo silêncio, do apreço pela fotografia – está nessa habilidade simples e ao mesmo tempo sofisticada de projetar os dramas das personagens na natureza concreta. Em Climas, essa projeção da subjetividade das personagens na natureza conduz o filme em dois planos narrativos distintos. Sutil e sofisticado, o clima lá fora é inversamente proporcional ao sentimento do casal. Em 3 Macacos, por sua vez, a ausência do filho afogado se enrosca ao pescoço do pai, literalmente. E como numa espécie de parábola mística, aquele céu negro ao final sugere que a culpa não expiada se propaga indefinidamente, como uma hemorragia contagiosa. Enquanto signo de um possível perdão, o céu se fecha e ameaça desabar. Não há salvação. Diante da fragilidade humana, a culpa assume contornos de maldição. Curiosamente, em Era uma vez na Anatólia, um sujeito a persegue intencionalmente, tentando incorporá-la, satisfazê-la, mesmo que no lugar de outrem.
De resto, basta dizer que são três ótimos filmes de um excelente diretor. Vale muito a pena conhecer. Mesmo que atrasado, como eu.
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oi.