09/08/2014

Primeira vez

Arquivo pessoal

Não sei com você, mas comigo é assim: o dia passa cada vez mais lento e os anos cada vez mais rápido. O relógio custa a girar até meio-dia, depois meia eternidade até o final do expediente. Mas ontem mesmo era janeiro e agora o calendário na geladeira me informa que estamos já entrando no fim da primeira quinzena de agosto. 

Tempo é um troço estranho.

Mas eu estava pensando essas coisas porque segunda já faz dez meses que meu filho nasceu. Parece que foi ontem que a Raquel e eu chegamos à maternidade, um tanto quanto amortecidos e anestesiados pelo nervoso. Ela participou de vários grupos, eu vi algumas palestras, pesquisamos muito a respeito do parto humanizado e visitamos uma meia dúzia de médicos e maternidades. Nosso desejo sempre foi fazer as coisas da melhor forma possível. Estávamos focados. E realmente tudo correu perfeitamente bem no parto, que foi natural, sem qualquer intervenção - até um pouco além das nossas expectativas. 


Claro que os dias na maternidade são um conto de fadas. A gente acha que o parto é o maior desafio e quando ele acaba parece que tá tudo resolvido. Ainda mais com refeição quentinha servida de três em três horas. Enfermeiras que trocam as fraldas do bebê e dão banho. Sem contar nas arrumadeiras que limpam tudo e só faltam nos servir cerveja com picanha. E a quantidade constrangedora de presentes chegando? Dá até vergonha, mas a gente acaba aceitando que é uma necessidade da nova família viver esses primeiros dias assim. É só curtição. Mas quando voltamos pra casa, são outros quinhentos. Descobrimos que o parto é só uma ínfima parte de todo processo. E nunca se está preparado para uma coisa como essa: éramos dois, agora somos três. Acompanhar o pré-natal e o parto e tentar se preparar para a paternidade é o mínimo a fazer. Só não evita o desespero em noites sem sono diante da exigência de uma dedicação integral. A logística das mamadeiras, das fraldas, do colo. E o mais duro é tentar reconstruir aos poucos aquela vida de casal de antes. Uma entrega que talvez você nunca tenha imaginado dispôr. Mas precisa ter. Como todas as grandes coisas que valem a pena nessa vida, essa disposição não tem fórmula. Tem que aprender por si mesmo.

***

Dia desses, o Joaquim ficava virado de costas como uma tartaruginha batendo as perninhas de ponta cabeça. Agora engatinha pra todo lado e já cai os primeiros tombos. Passa rápido. E a coisa que mais me surpreende é o modo como a relação entre pai e filho é construída e solidificada ao longo do tempo. Parece óbvio. Mas não é. Num primeiro momento, é pura emoção. E a prevalência de um instinto muito forte de proteção e acolhimento. À medida que os meses passam, o vínculo fica mais profundo e complexo. É natural que seja assim. Não existe amor a priori. Toda relação precisa de tempo para tecer conexões mais complexas, sedimentar as experiências compartilhadas. Precisa sobretudo de memórias em comum, de reconhecimento. E quanto maior a convivência, maior o vínculo. Isso vale para os dois lados.

Daí que o desafio da nossa geração é passar mais tempo com os filhos. Trabalhando o dia todo e depois encarando uma jornada noturna na faculdade, é difícil. E eu sou totalmente contra essa tendência de despejarem os filhos na casa dos avós de segunda a sexta, enquanto os pais fazem frila de pais aos finais de semana. Há casais que abandonam empregos ou mudam de ramo ou contratam babás ou colocam os miudinhos no berçário. É uma sinuca de bico. O que é o melhor? Não sei.

Domingo é meu primeiro dia dos pais e o tempo é a única coisa que me preocupa agora. Mas espero que faça sol e que meu time saia da lanterna. Espero que possamos todos sobreviver a esse bombardeio da publicidade infantil e não mergulhar nesse ciclo de consumismo precoce e ridículo. E também espero que os circos não acabem. E espero também ter muita paciência pra frequentar os aniversários de outras crianças cujos pais sem noção marcam as festas para às 18hs. Espero ser um bom pai, desses que encontram o equilíbrio entre a tolerância e a severidade. E também espero que amanhã o feijão da sogra não esteja salgado. E que tenham comprado uma caixa de cerveja extra.

Tudo bem ganhar três pares de meia.

04/08/2014

E um gosto de óleo no fundo da garganta


Arquivo pessoal


A mancha de sol desaparece atrás dos prédios e os postes e os carros já com as luzes acesas. O mormaço de centenas de motores em ponto morto e os carros buzinando e os motoqueiros também buzinando e subindo na calçada e acelerando avenida afora. “Como se todo mundo estivesse muito apertado pra ir ao banheiro”, alguém diz. O cheiro de borracha queimada e um gosto de óleo no fundo da garganta. Mesmo com as janelas abertas o ar é sufocante no ônibus. É tipo uma sala de espera. Nada acontece até um estrondo grave preencher tudo. Depois apenas o barulho de metal se partindo e se arrastando no asfalto. As pessoas gritam e a porta do ônibus se abre e eu tento escapar da multidão. É inútil. Vejo uma carreta cegonha caída e uma dezena desses carros em infinitos tons de cinzas prateados e retorcidos. Gigantescas bolas de papel alumínio. É difícil avançar. Há uma viatura da CET estacionada na calçada. No meio da pista e já embicado na contramão está o Chevrolet D60. Bege. Sem para-choques. Tombado de lado e com os pneus ainda girando no ar. Os braços de um homem surgem escalando a porta do passageiro. Ele fica em pé no caminhão tombado. A luz dos faróis cai sobre sua cabeça e os braços brilham como que cobertos por um verniz escuro. Há uma beleza perturbadora no rosto e cabelo ensanguentados e a camisa tingida de vermelho. Uma criança que tivesse brincado com tinta. Ele salta como se já tivesse feito aquilo infinitas vezes e dois homens correm para ajudá-lo. Eu fico muito contrariado com aquilo tudo. O homem me parece familiar, o caminhão também, mas ainda não sei quem é. Penso em dar meia volta e olhar a placa do caminhão, mas o movimento da multidão é unilateral. Os caras do SAMU pedem pra todo mundo se afastar e um cara do meu lado me pega pelo braço e balança a cabeça. “Vão sacrificar os cavalos”, diz. Não compreendo a frase até ver os animais caídos. Seis ou sete, aos espasmos, movendo os joelhos e as pernas em ângulos que lembram aranhas. Os olhos dos bichos brilham arregalados e negros e o sangue vaza das ventas, num sopro ofegante, como se tentassem refugar o inexorável. Acendo um cigarro. Acontece de tudo nesse cidade. Há muitas pessoas na rua e elas caminham em duplas e trios e cochichando coisas que não consigo entender. Não há buzinas e o barulho dos motores e as luzes ao longe são entidades imateriais. À medida que me afasto uma camionete estaciona próximo dos bichos. Dois homens descem e batem as portas e sem pressa mexem na carroceria e conversam e riem. Fuçam debaixo de uma lona preta e riem e conversam e apontam para os animais. A última coisa que eu vejo é o brilho da lâmina de um machado. Só aí eu acordo.