04/08/2014

E um gosto de óleo no fundo da garganta


Arquivo pessoal


A mancha de sol desaparece atrás dos prédios e os postes e os carros já com as luzes acesas. O mormaço de centenas de motores em ponto morto e os carros buzinando e os motoqueiros também buzinando e subindo na calçada e acelerando avenida afora. “Como se todo mundo estivesse muito apertado pra ir ao banheiro”, alguém diz. O cheiro de borracha queimada e um gosto de óleo no fundo da garganta. Mesmo com as janelas abertas o ar é sufocante no ônibus. É tipo uma sala de espera. Nada acontece até um estrondo grave preencher tudo. Depois apenas o barulho de metal se partindo e se arrastando no asfalto. As pessoas gritam e a porta do ônibus se abre e eu tento escapar da multidão. É inútil. Vejo uma carreta cegonha caída e uma dezena desses carros em infinitos tons de cinzas prateados e retorcidos. Gigantescas bolas de papel alumínio. É difícil avançar. Há uma viatura da CET estacionada na calçada. No meio da pista e já embicado na contramão está o Chevrolet D60. Bege. Sem para-choques. Tombado de lado e com os pneus ainda girando no ar. Os braços de um homem surgem escalando a porta do passageiro. Ele fica em pé no caminhão tombado. A luz dos faróis cai sobre sua cabeça e os braços brilham como que cobertos por um verniz escuro. Há uma beleza perturbadora no rosto e cabelo ensanguentados e a camisa tingida de vermelho. Uma criança que tivesse brincado com tinta. Ele salta como se já tivesse feito aquilo infinitas vezes e dois homens correm para ajudá-lo. Eu fico muito contrariado com aquilo tudo. O homem me parece familiar, o caminhão também, mas ainda não sei quem é. Penso em dar meia volta e olhar a placa do caminhão, mas o movimento da multidão é unilateral. Os caras do SAMU pedem pra todo mundo se afastar e um cara do meu lado me pega pelo braço e balança a cabeça. “Vão sacrificar os cavalos”, diz. Não compreendo a frase até ver os animais caídos. Seis ou sete, aos espasmos, movendo os joelhos e as pernas em ângulos que lembram aranhas. Os olhos dos bichos brilham arregalados e negros e o sangue vaza das ventas, num sopro ofegante, como se tentassem refugar o inexorável. Acendo um cigarro. Acontece de tudo nesse cidade. Há muitas pessoas na rua e elas caminham em duplas e trios e cochichando coisas que não consigo entender. Não há buzinas e o barulho dos motores e as luzes ao longe são entidades imateriais. À medida que me afasto uma camionete estaciona próximo dos bichos. Dois homens descem e batem as portas e sem pressa mexem na carroceria e conversam e riem. Fuçam debaixo de uma lona preta e riem e conversam e apontam para os animais. A última coisa que eu vejo é o brilho da lâmina de um machado. Só aí eu acordo.