Hoje voltando de ônibus me lembrei de uma notícia que li
algum tempo atrás. Um senhor de oitenta e seis anos que cometeu suicídio,
saltando da janela do seu apartamento. Não lembro da cidade ou do ano, ou do andar, mas
lembro que fiquei um tanto quanto impressionado.
Em tese, além dos oitenta e tanto anos não há muito o que
se esperar. Já se enterrou o pai, mãe, meia dúzia de amigos, o amor, sete gerações de gatos e
quem sabe um ou dois filhos. O mundo que você nasceu, cresceu e envelheceu não
existe mais. O pior já passou.
E a despeito do corpo que apodrece, do abandono
dos parentes, da catarata e da osteoporose, das reprises de novelas e programas
de humor no meio da tarde, você não está preso a nada. Tanto faz: livre. Daí que é meio chocante um sujeito saltar de uma janela já no crepúsculo da vida.
Não é preciso viver oitenta e tanto anos pra perceber que
os dias nos tornam mais duros. Não falo de experiência, apenas de aridez. Essa
é a verdadeira serenidade. Esse músculo no peito fecha-se num único calo.
***
A minha avó arranjou um namorado depois do sessenta. Já
estava viúva há trinta anos. Namorava escondido dos filhos, dos netos. E até
da fotopintura do meu avô no meio da sala. Quando o namorado chegava, ele
jogava um pano por cima do retrato.
O namorado era um sujeito do século passado, com calça de
brim e um chapéu miúdo na cabeça, uns vinte anos mais novo. Lembro dele
caminhando numa toada mansa, com roupas escuras num solzão de estalar mamona.
Exalava um odor de guarda-roupas trancado e tinha muita dificuldade pra entender
qualquer coisa que não fosse explicada aos berros. Era um bom
sujeito.
O namoro durou quinze anos, um romance moderno, em casas
separadas.
Segundo consta nas fofocas da família, o homem dormia por lá toda madrugada. E escapava na surdina, antes que o sol apontasse. Apesar do espírito adolescente, era uma pessoa de bem. Queria casar e até visitou meus tios, escondido, pediu permissão, consentimento.
Queria tudo às claras. Regularizar-se junto à família.
Segundo consta nas fofocas da família, o homem dormia por lá toda madrugada. E escapava na surdina, antes que o sol apontasse. Apesar do espírito adolescente, era uma pessoa de bem. Queria casar e até visitou meus tios, escondido, pediu permissão, consentimento.
Queria tudo às claras. Regularizar-se junto à família.
Mas minha avó
começou a reparar que o colchão do lado onde o namorado dormia estava começando
a afundar. Ao invés de trocar o colchão, terminou o namoro. O sujeito ficou
inconsolável. Abandonado assim, de um dia pra outro, por nada. Sumiu por um tempo e depois só lembro de vê-lo anos depois no dia do enterro. Soluçando, em silêncio.
Meu avô deve ter ficado feliz. Nunca mais
precisou dormir debaixo do pano.