26/02/2015

Ler ficção

Dezembro, fim de semana entre o Natal e o Ano Novo. Estava sentado na escadinha, no canto da praça, contemplado um sábado acontecer. Objetivamente o cenário era o mesmo: moleques mal saídos da puberdade orbitando carros de porta-malas abertos. Sertanejo universitário ou um rock cafona do tipo Dire Straits e Guns N' Roses. A única viatura de polícia da cidade ronda o local e os moleques baixam o porta-malas e depois levantam quando a polícia vai embora. A grande conquista de suas vidas é ludibriar três policiais caipiras entediados de tanto andar de carro numa cidade quase sem carros. Há dez, quinze anos, a mesma cena se repete. Mas havia alguma coisa diferente antes, algum tipo de cegueira que me preservava de cair num sufoco fisico com todo aquele ridículo. Antes, essa pobreza de espírito não me incomodava tanto. Mas agora o ar era irrespirável. As ruas tinham encolhido e toda a cidade era de repente um grão de areia submerso no universo da pequenez total que afinal define qualquer lugar. E qualquer vida. A pequenez contra a qual tentamos lutar. Não dava para acreditar que eu tinha vivido tanto tempo ali e que aquilo tivesse sido tudo.

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Nas últimas páginas de Um outro amor, Karl Ove acaba retornando ao lugar de sua adolescência, em que se passa grande parte de A morte do pai. Há um descompasso tremendo na forma como Karl Ove via (ou se lembrava) do lugar, e como o lugar realmente era. Esse desacordo gera um estranhamento profundo em Karl Ove:

“Tem muita pouca coisa aqui. Aliás, não tem nada. Nunca vi um lugar assim antes. Não tem nada aqui. E em outra época isso foi tudo para mim”.

E mais adiante:

“Todos os lugares que eu trazia dentro de mim, que tinha imaginado infinita vezes ao longo da minha viva, passaram do lado de fora da janela, sem nenhuma aura, totalmente neutros, assim era tudo aquilo, na verdade. Umas poucas rochas, uma pequena baía, um trapiche decrépito, um braço de mar, umas casas velhas e uma planície que descia rumo à água. Era tudo”.

Depois concluiu:

“Mas vidas continuavam a ser vividas naquelas casas, e para elas aquelas coisas todas ainda eram tudo. Pessoas nasciam, pessoas morriam, faziam amor e discutiram, comiam e cagavam, bebiam e festejavam, liam e dormiam. Assistiam televisão, sonhavam, tomavam banho, comiam maçãs e olhavam para os telhados das casas em meio aos ventos de outono, que faziam balançar os pinheiros compridos e esbeltos. Um lugar pequeno e feio, mas que era tudo que existia”.

Difícil é saber se o desencanto é com a paisagem concreta, com a memória que se construiu (um tanto quanto idealizada) ou as duas coisas ao mesmo tempo. 

Mais ou menos o que diz Heráclito, sobre a impossibilidade de se atravessar o mesmo rio duas vezes. Porque nem o homem nem o rio são os mesmos.

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Acho que todo mundo sabe que nem sempre é bom rever aquele filme favorito de quando se tem 15 ou 16 anos. O horror de reencontrar alguém por quem fomos apaixonados há muito tempo e constatar o quanto aquele sentimento era ridículo. Ou lembrar de chofre de bobagens que acreditamos  e defendíamos arduamente enfurecidos numa cozinha de festa de república. É mais ou menos disso que se trata. 

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A leitura de uma narrativa de ficção é sempre uma forma de experimentar a própria vida na vida dos outros. Percorrer uma narrativa (afinal essa ordem narrativa só existe nos livros, nunca na vida, e por isso narramos, para tentar colocar ordem no caos que é viver uma vida), é também uma forma de inaugurar embates com seus próprios conflitos evocados através dos conflitos das personagens. Acredito que é mais ou menos isso que as pessoas querem dizer quando dizem que “entraram na história”. Ou que saíram “transformadas” de um livro. Ou em casos mais enfáticos “esse livro mudou minha vida”.

Meu estranhamento depois do Natal aconteceu antes que chegasse a parte do livro em que Karl Ove narra uma experiência semelhante. E ler o relato de Karl Ove tornou a minha própria experiência ainda mais clara e vívida. Exatamente porque a coisa (sentimento, impressão) se repetiu de forma organizada e com o distanciamento e controle que a posição de leitor nos coloca. E eu acho isso do caralho. Um entre os grandes baratos de ler ficção.

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Mas ler ficção é principalmente se deixar arrastar por universos estranhos e experimentar ambientes emocionais, estéticos e intelectuais completamente diversos daquilo a que estamos acostumados. Deixar-se contaminar com novos ares e com mundos singulares calcados nas angústias e prazeres fundamentais da realidade humana: amor, paixão, abandono, solidão, aventura, humor, morte, a inalcançável experiência do tempo.

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O deslocamento de Karl Ove não se resume no entanto ao deslocamento geográfico, ao fato de deixar a sua pequena província na Noruega e ir para Estocolmo. É um descolamento existencial. 

Ele escreve: 

"É simples entender uma vida, pois os fatores que a determinam são poucos. Na minha vida foram dois: meu pai e o fato de que eu não pertenci a lugar nenhum".

Eis aí o eixo duro dos dois primeiros livros. Somando-se a isso os apuros com os filhos pequenos, consigo entender porque tenho curtido e me identificado tanto com esses livros do sr. Knausgard.

De toda forma, a expectativa em relação ao terceiro só aumenta. Parece que A ilha da infância deve ser ainda mais foda. O livro chega nas livrarias em maio.

Enquanto não chega, estou me debruçando sobre Extinção, do Bernhard.


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Camus em quadrinhos

Passou mais ou menos batido um baita lançamento no ano passado. A tradução da versão em quadrinhos de O estrangeiro, do Camus, por Jacques Ferrandez (Quadrinhos da Cia, 2014). É um troço simplesmente sensacional.  




Jacques Ferrandez nasceu na Argélia e trabalhou no país por 25 anos. Tem grande familiaridade com o local, assim como Albert Camus. Em entrevista ao Estadão, Ferrandez disse: "Camus jamais esteve muito longe de mim e eu o tornei minha referência, até que passei naturalmente à ilustração de um de seus contos, L’Hôte (O Hóspede), uma novela extraída do L’Exil et le Royaume, de 1957, que apareceu em 2009. Desejei adaptar essa obra maior de Albert Camus da forma mais fiel possível ao romance." 

Ferrandez enche a página de luz na primeira parte do livro. Como se o sol estivesse conduzindo a história. Depois da cena da praia, as sombras tomam conta de tudo.