02/05/2010

O mundo como buraco e sem fundo


Você já deve ter presenciado a célebre cena do cachorro perseguindo um carro: o carro pára, e pronto: o animal não sabe o que fazer com o imenso objeto de metal na sua frente; fucinha os pneus, novos ou não; as rodas, cromadas ou não: e abana o rabo como quem diz: e agora?

Nós, viventes polidos, críticos, velozes, conectados, higienizados por um lastro histórico cultural milenar, não escapamos muito a essa lógica. Aquela velha lógica do desejo.

Há que se entender bem a distinção entre desejo e vontade, coisa simples. Você quer ir nadar. Ok: é só colocar uma bermuda e ir pra cachoeira. Pular na água e nadar. Pronto: a vontade passou. Vontade é tudo aquilo que está ligado a um impulso contingencial do corpo, que tem como alvo uma meta específica e concreta: quando atingida, supera a vontade.

O desejo, por sua vez, é algo bem mais tinhoso. Está na fundação do ser do homem, na raiz mesma da nossa condição. Um desejo nunca é claro o suficiente para que possamos satisfazê-lo. Digamos que Joãzinho desejava muito transar com a Maria; um dia, Joãzinho deu bebida pra Maria e a levou para a casa dele. Colocou um cd da Maria Rita (que ela gosta) e fez o que tinha de ser feito. Aí, logo depois daquele instante, o Joãzinho olha para o corpo da Maria, nua na cama, de bruços e pensa: “E agora?” - igual o cachorro.

Joãozinho = cachorro.

Isso não se aplica apenas as relações sexuais, mas àquilo que chamamos de “sonhos”.

Você está no final do ensino médio e sonha entrar na faculdade de qualquer jeito, nem importa muito o curso, o importante é poder dizer para os amigos ( e os pais dizerem para os pais de seus amigos) que você está na faculdade; o desejo é tão forte que você entra em desespero imaginando sua vida sem metodologia científica e piadas de professores. Você estuda e passa numa faculdade federal do interior, num curso com mesmo candidato por vaga. A coisa se acalma um pouco. No terceiro período você já começa a questionar se era esse o curso. Se fez a escolha certa. Se não era hora de repensar as coisas. E descobre que uma graduação não vale lá muita coisa hoje em dia. E uma semana depois de se forma você pensa: e agora?

Encontrar a mulher da sua vida, casar, filhos, trocar de emprego, pós-graduação, viajar, ir nos shows das bandas que você gosta, etecétera.

Você entra pela porta da sala, o desejo sai pela porta da cozinha.

Existe sensação mais estranha que completar um álbum de figurinhas?

Schopenhauer já nos alertava que a única forma de atingir um pouco de paz nessa vida, é não desejando; é desejar nada. E é aqui que eu queria chegar: é possível não desejar? Será que lá nesse não-desejo não virá o contraponto fantasmagórico do “e agora?” como a risada do "Rabugento" no Pólo Norte?

Ok, você atingiu o Nirvana: e agora?

E agora Nada!

Como assim nada?

Nada! Nadica de nada.

Nada?

É nada.

Mas e agora?

Nada.

ad infinitum

O que têm depois da paz?

Desejamos tanto uma paz que seja firme feito um tijolo e não nos damos conta que, ao projetar a paz em coisas concretas, pra tornar nossos sonhos possíveis e realizáveis, enterramos nossa vida no contingencial. na infelicidade concreta. Focar o desejo no concreto é a melhor forma de ser infeliz. O desejo, em si mesmo, não tem qualquer relação com as coisas concretas, não pode ser satisfeito por nada que é concreto; é como um abismo, um saco sem fundo, não guarda qualquer coisa, exceto essa ausência pura.

Qual a saída então?

Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.


Se o desejo não é contingencial, a única forma de superá-lo é com algo que também seja necessário.

A felicidade não é deste mundo, exatamente isso.

O desejo tem de transcender “esse mundo” do contingente e ancorar-se na dimensão da transcendência; que não é nem uma supra realidade, mas a dimensão íntima de cada um de nós, a dimensão do encontro e da necessidade de ser aquilo que somos. O desejo tem de girar no eixo do coração do homem, caso contrário é a infelicidade. Somos finitos, mas enquanto existentes, somos necessários. E se há alguma possibilidade de frear essa mola diabólica do desejo, essa possibilidade está nós, não no mundo.


2 comentários:

  1. A ignorância é uma bênção, meu caro... Não ter vontade de nada é a melhor forma de se satisfazer sempre...

    ResponderExcluir
  2. Este seu texto está repleto de questionamentos que são, infelizmente, a minha vida. Mas eu luto para que esses desejos sejam paixão e sejam amor e sejam parte do corpo pra morrer só quando eu me enterrar de vez. Há um conto do Thomas Mann que tem muito a ver com essa ideia de desejo e o seu consequente "e agora?". Eu coloquei uma vez esse texto em meu blog, mas como ele está fora do ar momentaneamente, passo-lhe outro link: http://www.clube-de-leituras.pt/upload/e_livros/clle000174.pdf
    O nome do conto é Desilusão e meu comentário acerca dele, e que se insere nas questões propostas por você, é:
    "Quem não esteve diante de um sentimento, de uma grande ideia, de um local cuja imaginação trabalhou para engrandecer e, sem ao menos prever, foi tomado por uma espécie de frustração, um descontentamento inexplicável? A um grande amor – que é o grande desejo de toda a vida – você se prostra, encasula-se, submerge-se à impossibilidade porque não era o que esperava, não era tudo isso, não era nada e, frente ao espelho, grita: é isso o amor?
    O conto Desilusão, de Thomas Mann, é um profundo mergulhar sobre esse universo do homem frente às coisas como são e sobre a gigante imagem que formamos diante das impressões que nada tem a ver com a realidade. De um simples encontro em uma praça, discutem-se as grandezas e impossibilidades do homem frente ao desconhecido. É um texto curto de belíssima envergadura.
    Eu me identifiquei bastante com o trecho:
    “...e estava cheio de avidez por tudo isso e de uma saudade profunda, atormentada, por uma realidade mais ampla, por uma experiência não importa de que gênero, fosse uma ventura gloriosa e intoxicante ou uma angústia indizível.”
    Sim, meu amigo, como conviver com a desilusão?"

    Bom, parabéns pelo texto!!!
    Beijos, Polyana

    ResponderExcluir

oi.