21/04/2010

Através da vidraça

“O romance americano pretende encontrar sua unidade reduzindo o homem quer ao elementar, quer às suas reações e ao seu comportamento. Ele não escolhe um sentimento ou uma paixão, dos quais nos dará uma imagem privilegiada, como em nossos romances clássicos. Ele recusa a análise, a busca de uma motivação psicológica fundamental que explicaria e resumiria a conduta de um personagem. Por isso, a unidade desse romance não é mais que um vislumbre de unidade. Sua técnica consiste em descrever os homens em seu aspecto externo, nos seus gestos mais indiferentes, em reproduzir sem comentários o seu discurso, até em suas repetições, consiste, afinal, em agir como se os homens fossem definidos inteiramente por seus automatismos cotidianos. Neste nível mecânico, na verdade, os homens se parecem, explicando-se, desta forma, o curioso universo em que todos os personagens parecem intercambiáveis, mesmo em suas particularidades físicas. Esta técnica só é chamada de realista por um mal-entendido. Além do fato de o realismo na arte, como veremos, ser uma noção incompreensível, fica bastante evidente que este mundo romanesco não visa à reprodução pura e simples da realidade, mas sim à sua estilização mais arbitrária. Ele nasce de uma mutilação voluntária, efetuada sobre o real. A unidade assim obtida é uma unidade degradada, um nivelamento dos seres e do mundo. Parece que, para esses romancistas, é a vida interior que priva as ações humanas da unidade e arrebata os seres uns aos outros. Esta suspeita é em parte legítima. Mas a revolta, que está na origem dessa arte, só pode encontrar sua satisfação fabricando a unidade a partir dessa realidade interior, não ao negá-la. Negá-la totalmente é referir-se a um homem imaginário. (...) A vida dos corpos, reduzida a si mesma, produz, paradoxalmente, um universo abstrato e gratuito, constantemente negado por sua vez pela realidade. Este romance, depurado de vida interior, em que os homens parecem ser observados através de uma vidraça, ao atribuir-se como tema único o homem supostamente médio, acaba logicamente colocando em cena o patológico. Explica-se, dessa forma, o número considerável de 'inocentes' utilizados nesse universo. O inocente é o assunto ideal de um empreendimento como este, já que só é definido, por inteiro, por seu comportamento. Ele é o símbolo deste mundo desesperado, em que autômatos infelizes vivem na coerência mais mecânica, que os romancistas americanos erigiram, diante do mundo moderno, como um protesto patético, mas estéril.”
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Trata-se, naturalmente, do romance “duro” dos anos 30 e 40, e não do admirável florescimento do romance americano do século XIX.
Mesmo em Faulkner, grande escritor desta geração, o monólogo interior só reproduz a superfície do pensamento.

Albert Camus, O homem revoltado, pág. 304-305

Um comentário:

oi.