28/04/2014

Dança das mãos


Arm in Arm (A Collection of Connections, Endless Tales, Reiterations, and other Echolalia)
by Remy Charlip, Parents' Magazine Press, 1969 


Subjetividade é apenas um nome laico para a alma.

Quando as pessoas estão falando de subjetividade estão na verdade falando de uma alma imanente e perecível. Uma dimensão etérea com prazo de validade curto. O que existe de fato são centenas de bilhões de conexões neurais que organizam o cheiro e o sabor e o calor e o frio e as decepções e as milhares de imagens captadas pela retina e também a tabuada que você nunca decorou. Uma monstruosidade de impressões somadas a um universo ainda maior de memórias aleatórias e melhoradas a nosso bel-prazer através do tempo. Tudo isso acontecendo simultaneamente é o que nos ensinam a chamar de self

Elucubrações bestas. Bobagens.

À medida que vejo meu filho crescer essas noções mal ajambradas desaparecem completamente.

Ele fica sozinho no quarto olhando os galhos da árvore balançar lá fora. Eu fico na porta do quarto olhando e tentando imaginar se aos seis meses de idade ela já sabe que está aqui e que há um mundo além daquela janela. Um mundo onde homens de cinquenta anos ouvem boleros em espanhol no ar condicionado do Citroen prateado parados no trânsito e praguejando contra as faixas de ônibus. Fico imaginando se meu filho já tem consciência da extensão do próprio corpo. Se sabe que a mão que ele leva sempre à boca é também ele ou aceita de bom grado a companhia desse outro ser misterioso e amigável. Fico imaginando se já produz divagações no nível mais primário: prazer, fome e sono. 

Às vezes ele murmura à noite como se sonhasse. 

Nessa tenra idade, não dá para usar a própria experiência como material de análise. Na primeira lembrança que tenho da minha própria vida eu já andava e falava. E talvez seja isso: a memória – acessível – só passa a existir a partir da linguagem abstrata. É a linguagem simbólica que organiza e orienta nossa experiência no mundo.

Uma amiga psicóloga me disse uma vez que mesmo as sensações mais concretas como fome ou frio acontecem fora da subjetividade da criança. Achei a observação sensacional. A fome seria como um trovão distante, ela disse. Uma coisa que vem e vai embora totalmente além do seu controle. Como uma tempestade.

Dia desses, entrei no quarto ele estava na cama sozinho. Olhava o vento balançar os galhos da árvore. Eu o chamei por duas vezes. Sempre que eu o chamo ele logo me olha de volta e sorri. Mas desta vez não foi assim. Continuou como estava, contemplando a árvore balançar. Eu o chamei outra vez e mais outra. E nada. Olhos fixos nas folhas, o vento empurrando os galhos, como que se divagasse sobre o céu e a terra.

Uma das brincadeiras que ele mais gosta é a dança das mãos. Quem inventou o nome foi a Quel, mas deve ser um hábito universal. Trata-se basicamente de ficar mexendo as mãos e cantarolando músicas inexistentes diante dos olhos do seu filho enquanto ele ri e mexe os bracinhos desesperadamente feito uma tartaruga de bruços. 

A dança das mãos requer uma resistência grande dos pais. Pais com LER (Lesão por Esforço Repetitivo), devem praticar com moderação. Crianças nessa idade estão na fase no eterno retorno. Exigem uma disposição infinita dos pais para a repetição e criatividade nas coreografias e alternância de ritmos. Ainda não encontrei cursos sobre a dança das mãos.

A solução é fazer pequenas pausas durante o procedimento. E é isso que eu faço. 

Hoje, durante uma dessas pausas, aconteceu uma coisa que me deixou espantado. Meu filho ergueu as mãos e começou a mexer os dedos na frente dos olhos. Eu fiquei de lado, só olhando. Ele mexia os dedos de modo desajeitado, todos de uma vez. Tinha o cenho franzido e olhava para mão direita e depois para a esquerda. Mexia os dedos, virava as costas da mão, virava o corpo de lado e voltava na mesma posição. Eram uns movimentos tímidos e rústicos e sem pressa. Um movimento de exploração e reconhecimento. Eu fiquei ali deitado. Sei lá por quanto tempo. Olhando aqueles dedinhos miúdos dançar e dançar.

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