23/10/2014

Galos, quintais e as casas de sete dígitos



Como hábitos tradicionais e saudáveis só adquiriram valor e status depois que passamos a pagar — e caro — por eles






Dia desses fomos até a Zona Cerealista, no Brás, próximo ao Mercadão. É um conjunto de ruas cheias de armazéns que vendem todo tipo de coisa a granel. Depois que o Joaquim nasceu, a gente tem se esforçado em abastecer a casa com coisas saudáveis. Nem sempre é fácil. O preço dos orgânicos e integrais é bem mais salgado que os industrializados. E acho que nunca vou me acostumar com as cifras exorbitantes do quilo de chuchu – um troço que eu sempre comi de graça.

Cresci numa casa com um quintal repleto de galinhas e árvores frutíferas: goiaba branca e vermelha, jabuticaba, três qualidades de laranja e mexericas, gigantescas bananeiras com cachos despencando. E o abacateiro robusto com uma casinha de João de Barro mal ajambrada nos galhos. Sem contar os vastos canteiros de hortaliças que meu pai cultivava desde sempre. Couves com folhas que davam para fazer um chapéu.

Tive vários cachorros e gatos, que conviviam em harmonia com porcos e pintinhos. Era quase um sítio.

Meu pai também costumava arrendar terrenos e plantar feijão, arroz e milho. Lembro dele com o típico chapéu de palha na cabeça batendo feijão no fim de semana. A vara estralava e os grãos se soltavam na lona. Depois ele varria tudo e passava na peneira e guardava tudo numas latas de metal de vinte litros. Muita gente fazia o mesmo. Acho que a prática não deve ter desaparecido de todo, mas no meu tempo de criança era comum andar pela rua e ver feijão secando na frente de inúmeras casas. E mesmo nos armazéns e mercados havia arroz e feijão a granel, tudo produção local, que a gente comprava com caderneta. Não sei se existe mais.

Até a carne do açougue vinha de um matadouro que ficava ali perto de casa. As vacas eram conhecidas – se é que você me entende.

O tempo foi passando, chegou o micro-ondas e as prateleiras dos mercados ficaram mais coloridas e variadas – a geração do meu pai foi logo seduzida pela publicidade das nítidas imagens da TV com Parabólica.

A ilusão de maximizar o tempo. O tempo economizado é gasto trabalhando mais para pagar as coisas que nos prometiam garantir mais tempo livre.

Sem querer parecer alarmista e romântico: a ideia de progresso e cidadania ancorada nas ilusões propagadas pelo consumismo ainda vai nos levar ao fundo do poço.

Ao invés de criar galinhas e matar na hora, de reservar os restos de comida para engordar porcos, passaram a comprar carnes e frutas industrializadas. Acho que em algum momento comer frutas orgânicas, diretas no pé, ou galinhas caipiras mortas na hora, manter um chiqueiro no fundo do quintal, era sinal de atraso e pobreza. E ninguém quer parecer pobre e atrasado. Era por isso que quando recebíamos convidados comprava-se Coca, ao invés de fazer um suco com laranja sangue de boi. Ou se comprava um frango anabolizado e peças de porco embaladas a vácuo. E as alfaces do mercado eram tão mais robustas, os tomates inchados e uma das mexericas da gôndola davam três daquelas que tinham no pé de casa. O gosto é insosso, mas o importante é agradar os olhos com o volume.

Numa cidade como São Paulo, para o Joaquim se alimentar como eu me alimentava na minha infância no interior de Minas, com orgânicos e integrais, eu teria que ganhar na Mega-Sena. Produtos orgânicos custam até 600% mais caro que o similar industrial. E não dá pra pensar na possibilidade de agricultura doméstica: uma casa com quintal do tamanho da casa dos meus pais, aqui em São Paulo, dependendo do lugar, chega fácil aos sete dígitos.

A varanda do apartamento que moro hoje mal cabe três pessoas. E a ainda tivemos que colocar uma tela de proteção, por causa do bebê. Tela na minúscula varanda e em todas as janelas. A vista dá de frente para uma trinca de outros prédios. Quadrados, cinzas, todos iguais. Para o meu desespero, o síndico mandou um punhado de árvores pro chão no mês passado. Mas ainda ouço uns passarinhos cantar lá fora, nas poucas árvores que sobraram. Dia desses tive a impressão de ouvir um galo cantar. Já passava das seis e meia da manhã e eu fumava o primeiro cigarro do dia. Ouricei os ouvidos e os olhos flanaram no horizonte. Um avião passou. Sirenes ao longe. Carros de farol baixo e manobrando no estacionamento lá frente. Joguei o cigarro fora —  ainda parei por um tempo — compenetrado. E nada. Pura miragem. Delírio.


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Obs: Acho que vou migrar o blog pro Medium. Por enquanto, ainda vou postando aqui e lá.

10/10/2014

Por que não voto em Aécio?

Ou como a redução da maioridade penal vai otimizar o poder do sistema carcerário em transformar menores infratores em profissionais do crime 


http://www.malvados.com.br/
Andre Dahmer


Independente de quem vença no segundo turno, o grande estrago já foi feito. Não bastasse os assustadores 500 mil votos de Levy Fidélix (PRTB), cujo discurso homofóbico gerou revolta em grande parte da sociedade, o Congresso eleito este ano é o mais conservador desde 1964.


Houve aumento da bancada de religiosos, militares e ruralistas. Num cenário assim, é possível prever uma flexibilização da legislação ambiental, diminuição de políticas públicas a favor das minorias e maior criminalização e desemparo dos movimentos sociais. Além disso, pautas urgentes como a legalização do aborto, criminalização da homofobia e descriminalização das drogas devem se tornar inviáveis. 

E o mais preocupante: a redução da maioridade penal deve entrar nas discussões e pode vir a ser uma realidade. Daí meu motivo concreto para não votar no candidato do PSDB. 

Grandes vozes do partido tucano são a favor da redução para 16 anos. O Governador Geraldo Alckmin, o candidato Aécio Neves e seu vice, o ex-guerrilheiro Aloysio Nunes, já declaram publicamente o desejo de encarcerar menores infratores. 

Em 2013, quando um vídeo de um jovem morto em um latrocínio na porta de casa foi exaustivamente repetido nos telejornais e na internet, sensibilizando o público, uma pesquisa feita ao calor da hora revelou que 93% dos paulistanos era a favor do endurecimento do tratamento a menores. Diante deste contexto, os dois tucanos paulistas encaminharam um projeto ao Senado. A Comissão de Constituição e Justiça da casa rejeitou o projeto de lei do senador. No entender do colegiado, o projeto era inconstitucional e feria os direitos das crianças e dos adolescentes. Mas agora, com um congresso com esse perfil e a possibilidade do PSDB no executivo, a realidade é outra. 

Respeito muito os sentimentos das famílias que perderam alguém vítima de um crime envolvendo menores. O desejo de que alguma coisa seja feita – até mesmo um sentimento de vingança – é totalmente compreensível em casos assim. Desde que fique no fórum íntimo. A Lei não existe para promover a vingança e tampouco pode amparar-se na subjetividade, em um sentimento. Por maior que seja a dor. Isso porque vingança não resolve o problema da criminalidade. Pelo contrário. Pode aumentar. E uma legislação baseada em sentimentos levaria a sociedade à barbárie.

O fato é que mandar menores de 16 anos para o sistema carcerário brasileiro, da forma que ele está, é aumentar as chances desse jovem que cometeu um delito cair numa espiral de reincidência. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 70% dos egressos nos presídios voltam a cometer crimes. Ou seja, de cada dez criminosos, apenas três se recuperam – sete voltam a ilegalidade. 

No Estado de São Paulo, ao contrário do que diz o senso-comum, o menor infrator não fica impune. Ele é também privado da liberdade. É apreendido e encaminhado para a Fundação Casa. A diferença é que o índice de reincidência na Fundação Casa é de 13%. Ou seja, de cada dez menores que cumprem medidas socioeducativas – 8,7 se recuperam. Apenas 1,3 voltam a cometer delitos. 

Sistema Prisional: de cada 100 presos, 70 voltam a criminalidade. 

Fundação Casa: de cada 100 menores, apenas 13 são reincidentes. 

Ou seja, ao propor que menores infratores sejam mandados para o sistema prisional, Alckmin, Aécio e Aloysio Nunes, ao contrário de combater a criminalidade, estão na verdade aumentando o índice de bandidos nas ruas. 

Não há nenhuma racionalidade em reduzir a maioridade penal. E não dá para votar em um partido que defenda essa bandeira.

São necessárias propostas que reduzam a reincidência tanto nos presídios como nas fundações para menores. Além de propostas concretas para inibir o ingresso de jovens no mundo do crime. Mesmo nesse tocante, a visão desses senhores é tacanha: repressão policial. E mais nada. Não dá para colocar sujeitos assim à frente de um país.

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Em tempo: Bruno Paes Manso, um dos melhores jornalista em atividade hoje no país, escreveu um artigo elucidador sobre a questão da maioridade penal. Não dá para ignorar esses dados:

“Foram pesquisados 3.233 casos de homicídios e latrocínios de 2005 ocorridos em São Paulo. Esse ano foi escolhido para que houvesse mais tempo para que os casos na justiça fossem dados como resolvidos. Os resultados são reveladores

- Do total, só 1,9% (69 casos) foram cometidos por adolescentes com menos de 18 anos de idade.

- No mesmo ano, 264 assassinatos (11%) foram de autoria de policiais militares.”

O artigo completo está aqui.