Como hábitos tradicionais e saudáveis só adquiriram valor e status depois que passamos a pagar — e caro — por eles
Dia desses fomos até a Zona Cerealista, no Brás, próximo ao Mercadão. É um conjunto de ruas cheias de armazéns que vendem todo tipo de coisa a granel. Depois que o Joaquim nasceu, a gente tem se esforçado em abastecer a casa com coisas saudáveis. Nem sempre é fácil. O preço dos orgânicos e integrais é bem mais salgado que os industrializados. E acho que nunca vou me acostumar com as cifras exorbitantes do quilo de chuchu – um troço que eu sempre comi de graça.
Cresci numa casa com um quintal repleto de galinhas e árvores frutíferas: goiaba branca e vermelha, jabuticaba, três qualidades de laranja e mexericas, gigantescas bananeiras com cachos despencando. E o abacateiro robusto com uma casinha de João de Barro mal ajambrada nos galhos. Sem contar os vastos canteiros de hortaliças que meu pai cultivava desde sempre. Couves com folhas que davam para fazer um chapéu.
Tive vários cachorros e gatos, que conviviam em harmonia com porcos e pintinhos. Era quase um sítio.
Meu pai também costumava arrendar terrenos e plantar feijão, arroz e milho. Lembro dele com o típico chapéu de palha na cabeça batendo feijão no fim de semana. A vara estralava e os grãos se soltavam na lona. Depois ele varria tudo e passava na peneira e guardava tudo numas latas de metal de vinte litros. Muita gente fazia o mesmo. Acho que a prática não deve ter desaparecido de todo, mas no meu tempo de criança era comum andar pela rua e ver feijão secando na frente de inúmeras casas. E mesmo nos armazéns e mercados havia arroz e feijão a granel, tudo produção local, que a gente comprava com caderneta. Não sei se existe mais.
Até a carne do açougue vinha de um matadouro que ficava ali perto de casa. As vacas eram conhecidas – se é que você me entende.
O tempo foi passando, chegou o micro-ondas e as prateleiras dos mercados ficaram mais coloridas e variadas – a geração do meu pai foi logo seduzida pela publicidade das nítidas imagens da TV com Parabólica.
A ilusão de maximizar o tempo. O tempo economizado é gasto trabalhando mais para pagar as coisas que nos prometiam garantir mais tempo livre.
Sem querer parecer alarmista e romântico: a ideia de progresso e cidadania ancorada nas ilusões propagadas pelo consumismo ainda vai nos levar ao fundo do poço.
Ao invés de criar galinhas e matar na hora, de reservar os restos de comida para engordar porcos, passaram a comprar carnes e frutas industrializadas. Acho que em algum momento comer frutas orgânicas, diretas no pé, ou galinhas caipiras mortas na hora, manter um chiqueiro no fundo do quintal, era sinal de atraso e pobreza. E ninguém quer parecer pobre e atrasado. Era por isso que quando recebíamos convidados comprava-se Coca, ao invés de fazer um suco com laranja sangue de boi. Ou se comprava um frango anabolizado e peças de porco embaladas a vácuo. E as alfaces do mercado eram tão mais robustas, os tomates inchados e uma das mexericas da gôndola davam três daquelas que tinham no pé de casa. O gosto é insosso, mas o importante é agradar os olhos com o volume.
Numa cidade como São Paulo, para o Joaquim se alimentar como eu me alimentava na minha infância no interior de Minas, com orgânicos e integrais, eu teria que ganhar na Mega-Sena. Produtos orgânicos custam até 600% mais caro que o similar industrial. E não dá pra pensar na possibilidade de agricultura doméstica: uma casa com quintal do tamanho da casa dos meus pais, aqui em São Paulo, dependendo do lugar, chega fácil aos sete dígitos.
A varanda do apartamento que moro hoje mal cabe três pessoas. E a ainda tivemos que colocar uma tela de proteção, por causa do bebê. Tela na minúscula varanda e em todas as janelas. A vista dá de frente para uma trinca de outros prédios. Quadrados, cinzas, todos iguais. Para o meu desespero, o síndico mandou um punhado de árvores pro chão no mês passado. Mas ainda ouço uns passarinhos cantar lá fora, nas poucas árvores que sobraram. Dia desses tive a impressão de ouvir um galo cantar. Já passava das seis e meia da manhã e eu fumava o primeiro cigarro do dia. Ouricei os ouvidos e os olhos flanaram no horizonte. Um avião passou. Sirenes ao longe. Carros de farol baixo e manobrando no estacionamento lá frente. Joguei o cigarro fora — ainda parei por um tempo — compenetrado. E nada. Pura miragem. Delírio.
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Obs: Acho que vou migrar o blog pro Medium. Por enquanto, ainda vou postando aqui e lá.
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Obs: Acho que vou migrar o blog pro Medium. Por enquanto, ainda vou postando aqui e lá.