31/03/2010

A graça, o doce, o leite

Em gratidão a Nossa Senhora, os fazendeiros de Luminárias-MG ofertam todo o leite retirado na Sexta-Feira Santa às pessoas. Não sei a origem exata desse hábito. Sei, no entanto, que quando a gente era moleque, quinze e dezesseis anos, buscar leite era uma excelente desculpa pra beber. Beber cachaça e vagar pelas estradas vicinais, no escuro, de mochila nas costas, saltando de uma propriedade a outra; sem qualquer vasilha pra encher de leite, é claro. Todo ano quando chegava em casa morto de cansaço, bafo de pinga, sem dormir e sem nenhuma gota de leite, meu pai, utilitarista profissional, dizia: “cê tá de coragem. Zanza a noite inteira e nada de leite? Um litro já serve pra fazer doce”.
Moleque, adolescente, desregrado: e aquele culto visceral à inutilidade. Pra mim, a serventia dessa perigrinação era outra e transcendia as proteínas do leite.

Acontece que ia muita mulher.

E beber com mulher naquela época era uma espécie de paraíso na Terra. A gente queria sexo, é verdade; e nem sempre conseguia; mas só das moças ficarem esquentadas, com perfume de conhaque na boca, faceiras de tudo, fogosas e querendo brincar de provocamento, a molecada perdia a rédea. Afinal, era uma espécie de alforria pra meninas, eram livres:  podiam amanhecer em roda de fogueira com violão, beber, flertar e dormir no mesmo colchão que a gente, ali estirado de frente do retiro.

Na lógica de aço dos pais das moças, acampar era coisa de maconheiro, vagabundo, malandro, “maloqueiro”, pra usar de um termo dos anos 70; e já que “filha minha” não se envolve com maconheiro, maloqueiro, vagabundo e derivados, “filha minha não faz isso” é o primeiro mandamento, “filha minha” não vai acampar. E as meninas, pobrezinhas, com água na boca, raivosas, frustadas, enchiam-se de tristeza quando a gente passava de mochila nas costas num fim de tarde pra ir acampar no alto da Serra de Luminárias ou no lagoa da Usina da Fumaça.

Por isso, num dia como hoje, quarta-feira da semana santa, a gente já tinha planejado tudo. Qual fazenda? qual caminho seguir? que bebida ia levar? e, principalmente, equacionado com precisão os casais da turma.  Imaginando cenas de sexo com um “que” de romantismo e perfeição.

Só que a gente envelhece, as coisas mundam de sentido; ganhar ou perder, tanto faz,  o fato é que mundam. Aquilo que fazíamos com permissão de escuro e isolamento, no escondido do isolado, agora está às claras, a qualquer dia, nos conformes, à necessidade. Dívida em boteco. Dirigir. Calejar mãos; quase responsáveis, no prosseguir; as meninas já nos recebem em casa, no mais puro agrado e consentimento dos pais. Dormem na casa  da gente, quando namoradas. E o buscar leite perde seu milagre, porque o não poder torna-se um possível aceitável.

O engraçado, é que de dez anos anos pra cá, a tradição em si perdeu muito da sua força. Há anos não ouço falar de empreitadas de ir na Palestina, no Geraldo Quim-Quim e nas dezenas de fazendas onde os fazendeiros continuam oferecendo o leite das vacas, de graça, a quem quer que se achegue, em oferenda à Santa. Os moleques e meninas prendadas de quinze e dezesseis anos de hoje, no entanto, não tem nenhum interesse em buscar esse leite. Nem de vagar por estradas no escuro de mãos dadas com aquela mocinha bonita, filha de pai bravo, que não pode ficar até tarde na rua; mas pode andar sozinha no escuro com você, na Sexta Feira Santa.

As mocinhas de hoje não precisam desse leite porque já nascem desmamadas.

Os moleques de hoje já nascem velhos, porque tudo é permitido e desvelado.

Não é nem questão de ser melhor ou pior, o sistema antigo de descobrir as coisas desse sistema novo onde tudo já vem explicado e, portanto, permitido. Mas, nesse meu jeito caduco e sem nostalgia; sinceramente, acho que as sextas feiras à moda antiga, eram bem mais gratificantes e doces, mesmo sem levar leite pra casa; mesmo sem fazer o doce.



foto: Raquel Santana.

4 comentários:

  1. ..."acho que as sextas feiras à moda antiga, eram bem mais gratificantes e doces,"

    Eu que o diga! :O

    Blea prosa/poética.
    abs

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  2. sextas-feiras, alvoradas de carnaval, e outras pequenas confraternizações no estilo antigo: grandes, imensos, enormes e singelos momentos que moldaram algumas gerações.

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  3. Já disse que adoro te ler?
    Iniciei minha manhã com gosto de nostalgia ao ler teu texto... ;*

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  4. Até chorei. Cresci ouvindo falar do leite de sexta-feira santa. Nunca participei. Primeiro porque sou "filha minha", segundo porque morei pouco em minha terra natal - Carrancas - minha cidade foi pra mim terra de férias. Adorei o texto e seu estilo. Um grande abraço.

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oi.