Passando por um sebo na Riachuelo, acabei dando de cara com aquela edição de Os Novos. Além da capa, talvez por emoção, resolvi postar aqui dois minúsculos fragmentos que me agradam bastante. É isso.
“O pai pôs a mala no chão.
- Pronto?
- Pronto.
- Tudo aí?
- Está.
- E a passagem?
- Está aqui – o pai bateu no bolso do paletó.
Tinha uma hora ainda e desceram até a lanchonete para comer alguma coisa. Nei pediu dois mistos-quentes, um copo de leite para o pai e uma vitamina para ele. Havia pouca gente, as mesas vazias.
- Eu queria era um leite quente – disse o pai; - esqueci de falar...
- É só trocar.
- Deixa, o garçom pode achar ruim.
- Não, ele troca.
Nei chamou o garçom; ele veio, levou o leite frio e trouxe o leite quente.
- Agora sim – o pai contente.
- Nas férias eu irei pra casa, o senhor fala pra Mamãe.
- Falo sim.
- Fala também pra ela ir preparando os doces...
O pai sorriu.
Ficaram alguns minutos comendo em silêncio.
- Quer dizer que o lançamento ontem esteve bom? - perguntou o pai.
- Esteve.
- Mas isso tem futuro, Nei?
- A revista?
- A revista, escrever... Sabe, eu às vezes fico meio preocupado... (…) Essas coisas de escrever, o seu sono... Você tem dormido bem?
- Mais ou menos. No mundo de hoje é difícil a gente dormir bem.
- Você aqui fica também até tarde da noite batendo à máquina?
- De vez em quando.
- Não te atrapalha dormir? Acho que é isso que atrapalhava dormir lá em casa naquelas férias.
- Não...
- Esses casos de escritores que a gente ouve contar... Parece ser uma vida pouco sadia...
Nei sorriu:
- Pode ficar tranquilo, Papai. No fim tudo dá certo, o senhor vai ver... - Deu-lhe uma palmadinha no ombro: - O senhor vai ainda vai ter um escritor famoso na família...
- Se for, me orgulharei muito – disse o pai – Mas o principal é que os filhos estejam felizes. Isso que é o principal.
Estava feliz? O pai não chegara a lhe perguntar, mas ele se perguntava agora, sozinho no quarto, deitado, os olhos fixos na lâmpada acesa. Estava? Não, não estava – e que importância tinha isso? E que importância tinha tudo mais?
Fechou os olhos, cansado da luz, cansando de pensar, cansado de tudo. Mas não queria dormir – queria o quê? Nada, não queria nada, queria ficar ali simplesmente, deitado, de olhos fechados, sem pensar em nada – mas não pensar em nada era impossível, acabava pensando em alguma coisa, e então o melhor era já escolher uma coisa para pensar. Uma coisa agradável. Por exemplo: a Suécia. A Suécia, por exemplo. As suecas, louras e peitudas, indo nuas nas praias.
Acabou saindo e deitando com uma mulher que não era sueca, nem peituda; tudo rápido, mecânico, quase sem vontade. Voltou aborrecido para casa, detestando-se e jurando que amanhã daria um jeito em sua vida, custasse o que custasse. ”
*******
“- Sábado fui lá no Colégio Estadual fazer aquela minha conferência sobre poesia brasileira contemporânea.
- Hum.
- Rapaz – Vitor segurou-me o braço: - eu saquei tanto que até eu mesmo fiquei com vergonha de mim. Puta merda, acho que eu nunca saquei tanto assim na minha vida; foi um troço... Esses dias te contei que folheei a Obra Aberta, do Umberto Eco, né? Ler mesmo, acho que só li umas dez páginas.
- O que não é nenhuma novidade com você...
- Pois sabe que eu falei o tempo todo lá em Obra Aberta? Já pensou? …
Nei Ria.
- Imagina agora se eu tivesse lido o livro todo, se só com algumas páginas já deu pra sacar tanto... Foi um negócio a conferência, você precisava de ver. Falei uma porrada de coisa lá; falei em mecânica combinatória baseada na lei de permutações, porra, nem sei quê que é isso, mas lembrei que tinha lido nalgum lugar; falei no poema como um campo de possibilidades: bacana, hem? campo de possibilidades, isso fica bonito pra burro; falei em barroco, Stockhausen, Pierre Boulez, Max Bense, os filmes do Antonioni, a lingüística Russa, os móbiles de Calder, o Livro de Mallarmé, Finnegans Wake, história em quadrinhos, comunicação de massas, pop art, semiótica, cibernética, porra, você precisava de ver, deu um show lá, a turma ficou impressionadíssima; esse cara é cobra mesmo no assunto, devem ter pensado; tem uma cultura fabulosa... Morri de rir depois, porra, eu mesmo fiquei surpreendido comigo... Sei que impressionei bem pra burro, fizeram pergunta, escrevi troços lá no quadro, eles vibraram, querem que eu volte lá outra vez; o macete agora é pegar outro livro de vanguarda, descobrir outros troços do tipo lei das permutações, campo de possibilidades, citar uns caras estrangeiros, umas expressões em inglês ou francês, uns troços assim, e voltar lá pra outra dessas.
- Eu queria estar lá...
- Você ia morrer de rir, estava o fino. Eu lá na frente falando com toda a seriedade e a classe escutando em silêncio, fazendo perguntas, porra, foi simplesmente genial.
- Só você mesmo pra fazer uma dessas...
- Você ia morrer de rir... Você não sabe de algum outro livro não? Qual a última moda da estética? O negócio é pegar o assunto da moda, todo mundo interessa e você pode sacar à vontade porque eles estão por fora e não percebem. (…) Pensei até em virar conferencista profissional, quê que você acha?
- Por que você não dá aula? É mais simples.
Muito mais simples:
- Continuando o que vimos na última aula: os valores estéticos; segundo Moritz Geiger, no seu livro A Fenomenologia da Percepção Estética – e ele riu por dentro, lembrando-se de Vitor.”
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oi.