06/09/2010

Como se nada tivesse acontecido ou das coisas que se descobre na escola.


I

Empilhasse três cópias daquele corpo ( não necessariamente idênticas ) eretas umas sobre as outras, a estabilidade do corpo original, na base, pés firmes no piso de tacos de madeira, fosse de tal forma convertida em elasticidade potencial ( então ) encarnada no movimento do último dos corpos; os dedos miúdos do último dos corpos, lançados ao ar, não tocariam o cume do portal revestido a tinta óleo verde escuro. Bastava ( aos pequenos ) desfolhar a tinta ao pé do portal, em grupo, unha suja, às vezes um lápis velho, tesoura sem ponta, régua obsoleta. Mesmo que a professora trocasse os nomes, vez por sempre, Mário fosse Ricardo ou Alex, nunca Mário, não se tratava de três cópias. Talvez, cópias dos pais; já que os nomes dos pais, somados aos dos pequenos nas apresentações ( Mário do Luís do Açougue, Alex da Maria Que Benze, Ricardo do Antônio Contador ) fossem obrigados à substituir sobrenomes; embora o uniforme vermelho fogo cobrisse todos os corpos sem distinção; embora tivessem os nomes esquadrinhados no diário da classe; embora à merce das mesmas técnicas pedagógicas e retórica de ensino, não eram cópias.

Apesar de ter gasto em média uns oitocentos reais por mês durante três anos em boletos de faculdade para memorizar o imperativo evidente de tratar todos iguais ( como se fossem cópias de um modelo ideal ); a primeira coisa que fez ( a professora, mesmo sem perceber ) foi separar os garotos em dois grupos virtuais distintos, distribuídos conforme a coloração e a elasticidade da gola vermelha do uniforme. Os de camiseta com gola desbotada e arreganhada ( camiseta de segunda mão que a mãe do garoto comprara mais barato de um aluno do ano anterior ou ganhara de uma patroa ou vizinha mais rica e caridosa) não mereciam atenção. As crianças cuja gola da camiseta estivesse com pigmentação e elasticidade em potência máxima ( e cheiro de roupa nova ) recebiam em contrapartida máxima atenção e respeito. Não eram os meninos de gola nova arrancando a tinta verde ao pé do portal. Meninos de gola nova não fazem essas coisas. Se houvesse um deles, a professora, mesmo que se esforçasse não conseguia ver. Aquela resposta automática voltem para seus lugares, sosseguem, não aconteceu. Como se tratava dos garotos de gola desbotada e sem elasticidade ( um deles com cabelos crespos ensebados, outro com o nariz escorrendo ) foi caso de castigo. A professora levou os três meninos de golas desbotadas e sem elasticidade para três cadeiras de frente para diretoria. Daquelas cadeiras, sem poder conversar um com outro, os três pequenos de golas de segunda mão viram os pequenos de gola vermelha com pigmentos fortes e elasticidade correr, e gritar, e correr com suas lancheiras fartas e coloridas como se nada tivesse acontecido.

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II

Primeira semana de aula na Escola Municipal. Uma vez por dia, a ocupação sagrada de tecer garranchos em um caderno de folha amarela foi substituída pelo ensaio. Ao todo, quatro semanas de ensaios com uma hora de duração durante as aulas. O texto era curto, tal como as pernas que, na ocasião, haviam atingindo àquilo que a predisposição genética aos sete anos e alguns meses de vivência permite. Nos ensaios não há público nem figurino. A professora traz o texto sempre a mão. Conserva o hábito de grudar os dedos cobertos de giz aos ossos franzinos dos ombros dos atores. Arrastar cada pequena criatura uniformizada através das marcações imaginárias dispostas no palco imaginário construído próximo ao quadro-negro. Ajeita os óculos, aponta um lugar, arrasta um boneco, oferece instruções irrevogáveis; sempre termina a frase com o fatídico “não pode errar”. Depois, cruza os braços, ordena repetição para legitimar o talento do grupo. No dia da apresentação ninguém engoliu fala, entrou ou saiu fora de hora; tudo deu certo. A professora trocou risadas com a diretora, olhou com despeito para as outras professoras no fundo da platéia, debruçadas umas sobre as orelhas das outras, a cochichar e rir. Está feito. Ninguém errou; mas o medo errar, sedimentando nos ensaios, aquela lucidez vinda a força no momento da apresentação, nunca mais passou. Não tanto para nós, às crianças, que desaprendem com maior flexibilidade; não passou para ela.

Duas décadas depois, ao encontrá-la conferindo a simetrida do casaco antes da missa e numa outra vez, contando o troco do lado de fora da padaria, moeda por moeda, e o modo de acomodá-las nos bolsos como se mapeasse um caminho, presenciar estes fatos posteriores foi o que me levou aos ensaios, encolher as pernas, oferecer o ombro ao arraste, ao “não pode errar”. Parado diante da padaria, a cumprimentei. Esgotou o gesto de guardar as moedas e sorriu. Lançou perguntas genéricas sobre a vida, as quais respondi com o otimismo do esmalte dos dentes; falou da escola, de alguns alunos e suas profissões. Só quando ergueu a mão para se despedir, vi a ausência da aliança.

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2 comentários:

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