Desde o primeiro dia a magrelinha me olhava torto.
No fim do expediente eu passava na loja de conveniência e comprava um maço de cigarros e quando eu entrava na loja o rosto da magrelinha virava um pimentão, mexia no cabelo como se tivesse piolhos e não me olhava nos olhos de jeito nenhum.
Nunca ouvi a voz da magrelinha ali na loja.
Às vezes eu comprava uma latinha de Brahma e ficava fumando e tomando cerveja e jogando conversa fora com o Buiú perto do lavajato. Uma vez, o Buiú comentou comigo, “Alá, rapa! a magrelinha não para de olhar pra cá, Marcelão!”. Eu tinha percebido faz tempo, mas disse ao Buiú que era lorota, que a mocinha quando muito devia ter uns dezessete anos e que era chave de cadeia, que eu já tinha visto o namoradinho da cabeça russa vir buscar a magrelinha num gol quadrado amaçado na lateral; que eu não ia me meter com a mulher do rapaz, é claro. O rapaz era malencarado, desse povo que ouve Racionais no talo e devia carregar uma arma debaixo do banco do gol quadrado. Mas falava isso só pra despistar o linguarudo do Buiú. Eu sempre ouvi Racionais e nunca carreguei arma nenhuma. E no fim das contas, eu já tinha planejado direitinho como é que eu ia dar um trato na magrelinha.
Escrevi o número do meu celular num papelzinho antes de sair de casa. No fim do expediente, entrei na loja de conveniência e na hora de entregar o dinheiro do cigarro, entreguei o papelzinho junto. A magrelinha foi desenrolar o dinheiro e deixou o papelzinho cair. Quando abaixou pra catar eu já tinha saído da loja.
Eu sabia que ia dar certo.
Naquela noite mesmo a magrelinha me ligou. Eu tava requentando um mexidão quando o celular começou a vibrar. Ouvi uma confusão de gente falando no fundo e perguntei se ela tava em algum boteco. A magrelinha disse que tava ligando do orelhão da faculdade, que era intervalo de aula, que não podia ligar do celular dela, porque o Japonês vigiava as ligações que ela fazia. Pensei em perguntar por que aquele sujeito da cabeça russa tinha o apelido de Japonês, mas desisti. Daí, sem mais nem menos, a magrelinha disse que tinha que desligar e que amanhã ligava de novo. Tudo bem, eu disse.
Quando cheguei no lavajato no dia seguinte, a magrelinha me tratou como se nada tivesse acontecido. Avermelhou o rosto e coçou a cabeça do mesmo jeito e não me olhou nos olhos. Pensei comigo que o papelzinho tinha extraviado e que outra pessoa tinha ligado. Que uma outra magrelinha, que namorava um Japonês de verdade, e não aquele rapaz do gol quadrado da cabeça russa, tinha encontrado o papelzinho e me ligado. Tava pensando nessas coisas quando o Buiú veio me dizer que o dono do Celta branco reclamou de uma lavagem que eu tinha feito, disse que esqueci de limpar o motor do carro.
Minha tia Esmeralda tá doente, eu disse, tá me deixando meio desconcentrado.
E o quê é que ela tem, Marcelão?
Câncer na língua, Buiú.
Lavava umas meias e cuecas quando o celular tocou naquela noite. Era o mesmo barulho de fundo da noite passada. Mas antes que eu pudesse perguntar por que ela não falava comigo lá no posto, pra ver se era mesmo a magrelinha que tava ligando, ela disse que tinha que desligar rápido, porque o Japonês ia pegar ela mais cedo hoje, mas que, amanhã, o Japonês ia sair pra jogar sinuca com os caras e que ela não tinha aula antes do intervalo, e que, então, amanhã, ligaria mais cedo. Tudo bem, eu disse, e a magrelinha desligou.
Voltei a esfregar as cuecas e fiquei pensando que diabos tava acontecendo. E nessa hora, lembro perfeitamente, olhando pra espuma que saia da cueca, tive a ideia genial de escrever outro bilhetinho.
Entreguei o bilhetinho do mesmo jeito que tinha entregado o outro, enrolado na nota de cinco reais. Mas dessa vez eu esperei ela abrir o bilhetinho. Fiquei olhando direto pra ela, disfarçado, reparando (no maior fingimento) os preços de pão de forma e biscoitos. Daí ela me olhou, então eu vi os olhos castanhos e ela piscou, quer dizer, piscou de um jeito esquisito, piscando os dois olhos de uma vez como tivesse uma linha de anzol amarrada na ponta dos cílios. Era esquisito, mas era o bastante. No bilhetinho eu tinha escrito meu endereço.
A magrelinha precisou de uma semana pra despistar o Japonês. Abri a porta e tava lá a magrelinha untada num perfume doce e tão forte que quase me arrancou um espirro. Tava com o rosto vermelho, uns cadernos cor de rosa na mão, e com a boca lambuzada de brilho como se tivesse acabado de devorar um frango inteiro. Dei um beijo no rosto dela e falei pra entrar e ficar à vontade. Ia dar tudo certo, eu pensei. Ela parou no meio da sala, reparando nos móveis e mexendo no cabelo. Tava com uma calça dessas jeans bem baixa, com uma faixa de carne e aqueles ossinhos de fora.
A magrelinha não falava de jeito nenhum. Mas eu não forcei ela falar. Por instinto, comecei a falar em dobro, falar como se eu tivesse duas línguas. Acho que nunca falei tanto na minha vida como naquela noite. Falei de tudo quanto é assunto, e você sabe como um assunto entra no outro, como a coisa flui feito água rasgando pedra. Comecei falando sobre a incompetência do meu irmão ao lidar com o celular, como meu irmão não sabe desligar o despertador do celular e joga o aparelho dentro do baú de cobertores, e logo fiz um resumo confuso de Rock e Táxi Driver (filmes que via com meu irmão), contei de uma superstição antiga que eu tinha quando moleque (época que dividia o quarto com meu irmão), na minha cidade, acertar pedradas numa árvore seca e velha, na esquina da minha casa, e como a vida é engraçada porque acertar pedradas naquela árvore me dava sorte, me fez ser titular do time da escola (no lugar do meu irmão) naquele último campeonato daquela época, e que foi muita sorte aceitar o emprego no lavajato, mesmo que eu quisesse coisa melhor, se eu tivesse aceitado outro emprego que um amigo (amigo do irmão) tinha me indicado, que pagava bem melhor, eu teria de mudar de cidade e não teria conhecido você, eu disse, e a gente não estaria aqui agora, conversando. Sim, aquela altura a gente já conversava, de um jeito esquisito, mas conversava. Eu fazia uma pergunta ou outra, quer outro vinho? como vai a faculdade? e a magrelinha respondia dando de ombros, movendo a cabeça ou a boca num movimento estranho (sem melhor palavra pra usar, eu chamaria de sorriso), também movia as pálpebras conforme a resposta fosse positiva ou negativa, e eu entendia, e conforme a velocidade com que movia as pálpebras, ou jogava os ombros, ou mordia os lábios internamente e depois afastava os lábios uns dos outros, e erguia o ombro direito mais alto que o esquerdo, eu entendia que aquilo era um sim, e entendia que o não era quando apontava o nariz no rumo do piso da sala, piscava, movia o queixo um pouco pra esquerda; era estranho, mas eu dominei rápido aquele jeito da magrelinha conversar. E eu gostei bastante do jeitinho da magrelinha conversar.
Depois, foi tudo muito rápido. A conversa entrou no piloto automático. Do beijo até abaixar as calças foi uma coisa tão ligeira que parecia que a gente tinha ensaiado no mínimo umas três vezes antes de executar.
Enquanto eu procurava minha camiseta no meio das almofadas, a magrelinha correu pro banheiro. Vesti a camiseta e fui no quarto buscar um cigarro, e lá do quarto ouvi o barulho da porta do banheiro e quase de imediato o barulho da porta da sala.
Tentei ir atrás, desci as escadas correndo, e quando cheguei na rua, a magrelinha tinha sumido.
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Belezura de conto, Marcos. bacana mesmo.
ResponderExcluirHavia me esquecido como é legal esse seu jeito leve e coloquial de escrever, Marcus!
ResponderExcluirContinue, to adorando
Beijo
Fabi