14/08/2011

As coisas vão muito bem



Essa coisa de montar uma casa, um espaço só seu, engana a gente. A gente enche o lugar de objetos redondos, artesanatos exóticos ou cadeiras recicladas. Caretas coloridas sem expressão. Carrancas. Você encosta a bunda na poltrona e pensa. Isso tudo é meu. Como uma criança cercada de brinquedos. Mas de repente você anda de um lado para outro da casa sem saber muito bem o por quê. Está tudo em seu lugar, mas a casa parece chata. Tudo bem. Basta comprar um Buda de gesso. Um jarro de palha. Trocar a estante de lugar, arranjar um abajur que combine melhor com as paredes. Levar a luminária da sala para o quarto. Trocar o espelho do banheiro. Mexer na decoração. No fim, você olha aquilo tudo e pensa: é isso, agora está certo. Mas nunca está certo. E aí tudo se repete, de novo, de novo e de novo. E você nunca entende que a falha não está nos objetos. Daí você vai lá, feito um macaco bem treinado, e compra mais um cacareco azul e entulha num canto.

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Esses dias encontrei com um cara. Fazia anos que não o via. E foi isso que eu disse. As coisas vão muito bem. Porque é isso que as pessoas querem (precisam) ouvir. Então a gente responde como numa entrevista de emprego. A frieza do cano da arma roçando na nuca. As coisas vão muito bem (a possibilidade de algo errado as assusta, precisam exorcizar toda fragilidade, porque saber que as coisas não estão bem com você, pode despertar nelas alguma coisa soterrada e escondida, pode trazer à tona o fato de que talvez elas não estejam nada bem). Mas elas não precisam apenas ouvir você dizer que está tudo bem. São insaciáveis. Precisam ouvir você dizer que tudo está sempre bem. Que tudo que passou foi bom. Que tudo vai ficar bem. Não porque se importem de verdade. Porque as pessoas só querem se distrair e se divertir. Sempre. Aproveitar tudo. Como se tudo fosse importante. Como se vivessem num mundo sem lixeiras onde nada é descartado. Não querem saber se seu vagão escapou dos trilhos, e que você talvez esteja agonizando nos escombros. E você também não quer incomodá-las, é verdade. No fim das contas, elas torcem (voyeurs à distância, empunham bandeiras?para que dê tudo certo. E costumam dizer, “você tem que pensar em você mesmo”. Porque é exatamente isso que elas fazem, elas só pensam nelas mesmas.

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Aquelas duas mulheres na mesa à minha frente. Pareciam turistas. Uma delas era feia como uma escavadeira com a lataria esturricada no sol, a outra, parecia uma dessas mulheres de algum filme cult dos anos 90. A julgar pela forma que se vestiam, e pelo clima de discussão, acho que deviam ter visões de mundo quase opostas. Mas eu não dei muita atenção para a conversa. Fiquei imaginado porque elas estavam juntas. Por que faziam companhia uma a outra. É claro que se eu fosse até lá e perguntasse, elas iriam evocar argumentos abstratos como amizade e coisas assim. É isso que as pessoas fazem. Sacam clichês abstratos para não pensar nas coisas. De toda forma, para mim a coisa entre elas era mais primária. Aquela feinha precisava da bonitinha. Era a única maneira de atrair homens mais interessantes. A bonitinha sentia-se mais bonita perto da feinha. Mais segura. Questão de contraste. E entrava no jogo, mesmo sem perceber. Acho que nenhuma delas sequer suspeitava. A mais feinha, talvez. Parecia mais ardilosa. Não sei. No fim das contas, diziam uma a outra algo como "gosto tanto da sua companhia. Me sinto bem aqui com você". E não entendiam o motivo. Fiquei um pouco comovido, sabe? Essa triste poesia exalando da fissura entre as pernas. Mas só um pouco.

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A gente encheu a casa com plantinhas. Eu não sei o nome dessas plantinhas. É coisa da Íris. Encher a casa com plantinhas na varanda, na sala, na cozinha. Um vaso com flores no criado mudo e esse tipo de coisa. Ela me diz é que para tornar o lugar mais agradável. Homens desgraçados se matam de trabalhar a troco de mixaria para encher isso de concreto e ferragens, para expulsar a selvageria e a sujeira das florestas, para que as pessoas sintam-se limpas e seguras, (mas as pessoas nunca sabem o que querem de verdade, ou melhor, preferem pensar que não sabem o que querem, acham isso chique), então enfiam badulaques, cacarecos, e mato dentro de casa. A Íris encheu a casa de mato, quadros, badulaques. A gente não pode passar por uma dessas lojinhas de cacarecos inúteis e voltamos para casa com uma dessas bobagens enfiadas em sacolas de plásticos. Isso está se transformando numa floresta. Talvez fosse melhor voltar para a selva. É a maneira mais honesta de se dormir enroscados em serpentes.

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As coisas vão muito bem.

6 comentários:

  1. hahaha... vc é simplesmente hilário no bom sentido, é claro, não me entenda mal... ^^


    Abração! =D

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  2. eu lembrei de um dia q não sei se alguém te falou, se vc mesmo tirou da cabeça, mas vc me disse "não ficamos sozinhos, nós somos sozinhos". nunca mais esqueci.

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  3. Eu me lembro disso, Carol. Eu também não me esqueço. E quanto mais o tempo passa, acho que faz mais sentido pra mim. Sem falar, que tenho chegado a conclusão que os diálogos são monólogos se debatendo... rs

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  4. Wagner, emular esses narradores rabugentos é sempre divertido. Um abraço.

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  5. When will you post again ? Been looking forward to this !

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  6. Com o tempo, os móveis mudam, fica-se descrente, mas a busca pelo diferente continua pra sempre

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oi.