09/08/2011

Ele é muito velho



A janela ficava sempre fechava e o rádio chiando o tempo todo. A madeira encarnava um cinza fosco, recortado por manchas pretas. Quando eu subia aquela rua, ouvia as rezas em loop contínuo se aproximarem, misturado aos chiados do rádio vacilante, sintonizado em AM. Eu pregava os olhos na janela e continuava subindo. Acho que era um terço, algo assim. Aquilo que a legião de vozes sussurrava através do rádio, chiando, como se a mensagem viesse de uma dimensão paralela ou coisa do tipo. Eu sabia pouco. Sempre soube pouco. Mas fiquei curioso com aquilo. Havia um homem lá dentro e aquela janela estava sempre fechada. Não entendia porque um homem ficaria o dia todo lá dentro, provavelmente deitado, ouvindo rezas e rezas. Lembro que perguntei a minha mãe por que o homem não saía de lá.

“Ele é muito velho”.

Não sei muito bem como encarei essa explicação. Talvez tenha entendido a debilidade física. A incapacidade de juntar-se àqueles velhos que ficavam na praça, que eu via todos os dias. Àquele que carregava alfaces frescas na rua. Não sei bem. Talvez ele tivesse algum problema. Talvez fosse tão velho que já não conseguisse andar. Talvez não tivesse pernas ou elas simplesmente não funcionassem. Mas mesmo isso não explicava a janela fechada, e muito menos explicava aquele rádio, rezando dia após dia, como se fosse expulsar uma legião de demônios, ou aliviar uma culpa secreta, dessas que esmagam o coração de um homem.

Quando o homem morreu eu fui ao velório. As rezas eram as mesmas. Só que agora eram os vizinhos ali, rezando. Outros vizinhos na cozinha, rindo. Barulho de xícaras e copos. Tinha mais crianças ali, outras correndo na rua. O homem estava estendido na sala. Era realmente muito velho. A pele igual papel de tão branca e fina. Mas não era isso que me impressionava tanto. Fui andando na direção do quarto. O assoalho de madeira cheio de vãos. Lembro do cheiro de roupa guardada, um cheiro forte. A cama desarrumada. Um lençol fino, branco, misturado ao cobertor leve e sem cor definida. Restos de velas no criado mudo. Uma caixa de fósforo e o rádio. Era pequeno, cinza, com a antena encolhida. As pessoas atrás de mim continuavam repetindo como que hipnotizadas. Eu simplesmente estiquei a mão, ia rodar a chavinha. Mas minha mãe me puxou. Me levou de volta pra sala. Fiquei ali encolhido, no meio de todo mundo. Encolhido num canto, arremedando aquelas vozes da melhor forma que podia.

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oi.