05/10/2011

O Sol, Abraão e "A Cicatriz de Ulisses"

"5. E o sol desponta e o sol se põe
E ao mesmo ponto
Aspira de onde ele reponta


6. Vai rumo ao sul
e volve rumo ao norte
Volve revolve e o vento vai
e às voltas revolto o vento volta

7. Todos os rios correm para o mar
e o mar não replena
Ao lugar onde os rios acorrem
para lá de novo correm




8. Tudo tédio palavras
como dizê-lo em palavras
O olho não se sacia de ver
e o ouvido não se satura de ouvir


9. Aquilo que já foi é aquilo que será
e aquilo que foi feito é aquilo que será
e aquilo que foi feito aquilo se fará
E não há nada de novo sob o sol".


Qohelet/ O-que-sabe, Haroldo de Campos. Cap. 1: 5-9.

Eclesiastes, 1: 5-9.


***

Abraham and Isaac (1783), William Blake


"A singularidade do estilo homérico fica ainda mais nítida quando se lhe contrapõe um outro texto, igualmente antigo, igualmente épico surgido de um outro mundo de formas.Tentarei a comparação com o relato do sacrifício de Isaac, narração inteiramente redigida pelo assim chamado Eloísta. Na versão King James, a introdução vem assim traduzida: 'Depois disto, Deus provou Abraão. E disse-lhe: Abraão! - Eis-me aqui, respondeu ele.' Já este princípio nos deixa perplexos, quando viemos de Homero. Onde estão os dois interlocutores? Isto não é dito. Mas o leitor sabe muito bem que normalmente não se acham no mesmo lugar terreno, que um deles, Deus, deve vir de algum lugar, deve irromper de alguma altura ou profundeza no terreno, para falar com Abraão. De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é dito. Ele não vem, como Zeus ou Posseidon, das Etiópias, onde se regozijara com um holocausto. Nada se diz, também, da causa que o movera a tentar Abraão tão terrivelmente. Ele não a discutira, como Zeus, com outros deuses, numa assembléia, em ordenado discurso; também não nos é comunicado o que ponderara no seu próprio coração; inesperada e enigmaticamente penetra na cena, chegado de altura ou profundeza desconhecidas e chama: 'Abraão!' A noção judaica de Deus não é somente causa, mas antes, sintoma do seu particular modo de ver e de representar. Isto fica ainda mais claro, quando nos voltamos para o outro interlocutor, Abraão. Onde está ele? Não o sabemos. Ele diz, contudo: 'Eis-me aqui'."

A Cicatriz de Ulisses, Mímeses, Erich Auerbach, São Paulo: Perspectiva, 4ª. ed. 1998.

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