Carver, em Iowa (1963) Fonte: http://thisrecording.com |
Eu fico cada vez mais impressionado em como o Carver consegue ser tão bom. Alguns contos não saem da minha cabeça. O mais recente é o conto Febre, que faz parte do livro Catedral, (que está incluído no estupendo 68 contos de Raymond Carver, editado pela Companhia das Letras, 2010). É a história de um professor de "Educação Artística" do "Ensino Médio", chamado Carlyle, que é abandonado pela mulher, Eileen, depois de 18 anos de relação. O casal têm dois filhos pequenos. Eileen vai embora e deixa Carlyle sozinho com as crianças.
Carlyle está bem encrencado. O conto abre com a contratação desastrosa de uma babá adolescente. Carlyle chega do trabalho e encontra as crianças no jardim de fora da casa. Há um cachorro cuja boca poderia devorar a cabeça das crianças, lambendo o rosto de uma delas. Carlyle está mesmo muito encrencado. As janelas da casa vibram com o som alto. Carlyle apanha as crianças e entra em casa. Lá dentro, se depara com adolescentes ouvindo Rod Stewart no talo e tomando cerveja. E não há nada melhor para mostrar como a vida desse sujeito está uma bagunça. Carlyle está na sala da sua casa, com as duas crianças no colo, discutindo com adolescentes bêbados (WTF? Quem são essas pessoas na minha casa?) ao som de Rod Steward (Rod Stewart, que cena).
Carlyle precisa de alguém para ajudá-lo a colocar as coisas nos eixos. Ou, pelo menos, é isso que ele acha que precisa.
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(se você não leu o conto, não leia daqui pra baixo, contém spoilers)
O conto é narrado em terceira pessoa, mas como a focalização está em Carlyle, o filtro das impressões é orientado pela perspectiva dele. Então não sabemos muito sobre Eileen. Apenas as ligações constantes que ela faz a Carlyle (essas ligações, aliás, estão entre os melhores momentos do conto), e uma ou outra memória em tom de sumário que o narrador nos oferece. Sabemos que Eileen se envolveu com outro professor, amigo de Carlyle, e foi tentar uma obscura carreira artística. Aquele clichê de correr atrás de seus sonhos, não importe o tempo que passar. Sabemos que Eileen tinha deixado isso de lado em algum momento do passado. Essa pretensa carreira artística. E que esse desejo estoura (ou serve de vazão para outras frustrações não mencionadas), no meio da rotina maçante e sufocante. Ela aborta a relação e vai seguir seus sonhos juvenis, sem se importar muito com Carlyle ou com as crianças (embora sempre insista em dizer que se importa).
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Tem uma mulher chamada Carol, com quem Carlyle tem saído. Uma colega de trabalho. Mas há uma grande fissura nessa relação. Por mais que Carlyle tente, ele nunca consegue estar totalmente com Carol. Há uma cena que ilustra bem essa passagem. Os dois estão sozinhos na casa de Carlyle e o telefone toca. É Eileen ligando (o passado ligando e atormentando Carlyle). Carlyle sabe disso e não quer atender. Mas Carol diz que talvez seja algo importante (algo mais importante que ela). E Carol diz isso e vai embora.
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Mas a personagem mais cativante do conto é a Sra. Webster. Uma babá já de idade que é indicada por Eileen. A Sra. Webster cuida das crianças, cuida de Carlyle. A Sra. Webster faz bolinhos, a Sra. Webster é quase uma mãe. Bendita seja a Sra. Webster.
O aparecimento da Sra. Webster no conto coloca as coisas nos eixos. É exatamente aquilo que Carlyle precisava. Quase um Messias. E a tensão da narrativa aponta para uma solução. Mas logo Carlyle cai numa crise de febre, fica afastado da escola, e as coisas começam a complicar. Já não bastasse a febre que toma conta de Carlyle, a Sra. Webster diz que precisa ir embora. Ela e o Sr. Webster arranjaram empregos em outro estado e não podem recusar. Porque o Sr. Webster já está velho e há muito tempo está desempregado. E é aqui que vem a cena final do conto, onde Carlyle narra sua história com Eileen para o Sr. e a Sra Webster. Mas não sabemos dos detalhes. A narrativa dessa história não vem em primeiro plano. Aparece apenas como sumário.
O aparecimento da Sra. Webster no conto coloca as coisas nos eixos. É exatamente aquilo que Carlyle precisava. Quase um Messias. E a tensão da narrativa aponta para uma solução. Mas logo Carlyle cai numa crise de febre, fica afastado da escola, e as coisas começam a complicar. Já não bastasse a febre que toma conta de Carlyle, a Sra. Webster diz que precisa ir embora. Ela e o Sr. Webster arranjaram empregos em outro estado e não podem recusar. Porque o Sr. Webster já está velho e há muito tempo está desempregado. E é aqui que vem a cena final do conto, onde Carlyle narra sua história com Eileen para o Sr. e a Sra Webster. Mas não sabemos dos detalhes. A narrativa dessa história não vem em primeiro plano. Aparece apenas como sumário.
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Carlyle revive a perda da mulher ao perder a Sra. Webster. E é essa segunda perda que permite a Carlyle livrar-se da primeira. Livrar-se de vez, narrando a história toda. Só assim acontece a mudança da personagem. Não é à-toa que a história de Carlyle e Eileen não aparece em primeiro plano, aparece apenas como sumário. Carlyle narra para si mesmo. É ele quem precisa entender as coisas, não seus interlocutores. Carver mostra isso com a descrição das crianças, sentadas, ouvindo o pai contar tudo, como se prestassem atenção e estivessem entendendo. Mas aquela experiência é impossível de ser transferida, impossível de ser narrada ao outro (essa incapacidade dizer para outro, está por exemplo no conto Catedral, onde um sujeito tenta inutilmente descrever a um cego de nascença uma catedral). Ninguém entende e nem precisa entender os detalhes da questão, apenas Carlyle.
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Narrar para superar. É mais ou menos isso que está ali.
De toda forma, desde sempre os homens narram para tentar expulsar o caos e o vazio das suas vidas. Seja nas narrativas mitológicas das diversas culturas, nos causos, mentiras, canções, narrativas religiosas, na literatura. A memória, por exemplo, é essencialmente narrativa. E por isso mesmo sempre nos prega peças. Deixa as coisas mais suportáveis e mais bonitas. E se não fosse assim, talvez não suportássemos.
A gente narra para empurrar o caos para longe. Narra contra o vazio à espreita. Narra à beira do abismo. E o vazio não é outra coisa senão a falta de limites. O sentido só existe a partir do limite.
Narrar é limitar, limitar é definir, tentar colocar as coisas nos seus devidos lugares. Fora do limite, o vazio que engole tudo. Feito o Nada, em A História sem fim. Aquele cão devorando montanhas e rios, memórias e nomes, esvaziando o interior das pedras. Ele sempre esteve aí, sempre vai estar.
De resto, não há sentido nenhum nessa coisa toda. Senão esse sentido que a gente tenta encontrar, a conta-gotas. Nunca é definitivo, claro. Mas narrar é resistir, e talvez uma das melhores formas de resistir.
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