Porque
era muito cabelo, nunca tinha reparado nisso. Tinha reparado outras
vezes, mas não como reparava agora. Era cabelo demais. Caía. E talvez porque
fossem esses cabelinhos das pernas e dos braços misturados aos pelos
pubianos, todos miudinhos, ali jogados, curtinhos e pretinhos
estirados e amontoados no chão branco anemia daquele quarto de
paredes rosas esmaecidas.
Havia, claro, uns fios mais longos que
ele logo identificava, era cabelo dela. E esses fios mais miúdos e
mais raquíticos e desbotados, eram cabelos dele. De resto, os
cabelinhos dele, e os cabelinhos dela, caíam misturados sem oferecer
condição de saber qual fio era [ou tinha sido], dele ou dela [mas
isso pouco importava, no fim das contas]. Ali sentado [enquanto ela passava
creme no rosto, lá na outra ponta, de frente ao espelho do banheiro,
a torneira jorrando e empurrado o silêncio do apartamento pra fora], ele deixava o queixo cair no rumo do chão branco anemia. Pensou em
dizer a ela, já reparou na quantidade de cabelo que a gente perde?,
mas não disse. Nem levantou a cabeça. Ficou ali parado olhando
aqueles cabelinhos espalhados no chão e de repente imaginou que, se
não houvesse vassouras, ou coragem de usá-las, logo os cabelos tomariam
conta de tudo. Entupiriam o chão, os lençóis e o cobertor marrom. Emperrariam as dobradiças das portas, sufocariam as fechaduras, embuchariam as maçanetas. Feito o chão do barbeiro que ele gostava de
frequentar, só que pior, bem pior que o chão do barbeiro que ele
gostava de frequentar. Precisava fazer a barba, ele se lembrou. E levou a mão no queixo e pensou em perguntar pra ela se a barba
estava grande demais ou se podia deixar crescer mais um pouco. Talvez
apenas aparar as arestas, aqueles fios soltos e emborolados debaixo
do queixo.
Mas não, não disse nada.
Era
muito cabelo ali no chão. E mesmo depois que varresse, ele começou
a questionar onde ia parar tanto cabelo. Quase todo mundo tinha
cabelo, e perdia cabelinhos das pernas e dos braços e os pelos
pubianos pelo chão dos apartamentos de piso branco anemia. Onde ia
parar tanto cabelo? Quanto tempo levava até que aquele cabelo todo
se dissolvesse? O cabelo sumia, assim como se derrete gelo? Apodrecia
e virava outra coisa? O que seria o cabelo depois que deixava ser
cabelo?
Não
sabia. Nunca tinha pensando nisso. Nunca tinha pensado direito.
Talvez nunca pensasse direito em porcaria nenhuma, ainda mais em cabelo.
O máximo que tinha feito era varrer aqueles cabelinhos, enfiar numa
sacola e enfiar no lixo.
Não
perguntou nada pra ela.
Ela
massageava o rosto, ainda nua de frente ao espelho, e ele se lembrou
de como haviam esfregado as coxas, sôfregos, esfregado todo o resto. Ele apertava o corpo dela contra a parede como se empurrasse uma rocha ladeira acima. Os calcanhares às vezes vinham de encontro ao
chão num golpe seco, embora o suor escorresse das pernas. As mãos meladas atarracadas
nas costas tencionadas.
Olhando
aqueles cabelinhos todos, ele pensou que aqueles cabelinhos todos eram os restos da urgência toda que eles tinham de se tocar e se
esfregar e sentir o outro como se precisassem assimilar e desaparecer
no corpo do outro, naquela urgência toda e pouco se falava e só
havia o chiado da fricção da pele contra a pele e esse cheiro empapado nas mãos úmidas e essa urgência atravessada na respiração disparando como se eles estivessem apostando uma corrida.
Agora, só
restava aqueles montinhos de cabelo estirados no chão branco anemia.
Aqueles cabelinhos eram tudo que restava.
O barulho
da torneira sumiu. Quando ele deu por si, ela entrava no quarto, já
de frente pra ele. Ela esticou a mão e tocou a cabeça dele. Deu um
daqueles beijos que ela sempre dava, assim meio na orelha e no
pescoço, escorrendo os lábios na nuca. Passou a mão no rosto dele, como se descansasse os dedos. Depois ergueu-se, indo no rumo do
guarda-roupas.
“Tá na
hora de aparar essa barba”, ela disse.
“É,
você tem razão”.
Ele era capaz de sentir fios de cabelo crescendo. Enraizado nas axilas. Crescendo como uma planta parasita, agarrada a virilha, chupando toda a água do rosto.
Ele era capaz de sentir fios de cabelo crescendo. Enraizado nas axilas. Crescendo como uma planta parasita, agarrada a virilha, chupando toda a água do rosto.
Cabelo é o que anda me faltando... aos 25 anos...Mas o que eu poderia fazer contra a natureza...?! =/
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