29/09/2011

Cabelo



Porque era muito cabelo, nunca tinha reparado nisso. Tinha reparado outras vezes, mas não como reparava agora. Era cabelo demais. Caía. E talvez porque fossem esses cabelinhos das pernas e dos braços misturados aos pelos pubianos, todos miudinhos, ali jogados, curtinhos e pretinhos estirados e amontoados no chão branco anemia daquele quarto de paredes rosas esmaecidas. 

Havia, claro, uns fios mais longos que ele logo identificava, era cabelo dela. E esses fios mais miúdos e mais raquíticos e desbotados, eram cabelos dele. De resto, os cabelinhos dele, e os cabelinhos dela, caíam misturados sem oferecer condição de saber qual fio era [ou tinha sido], dele ou dela [mas isso pouco importava, no fim das contas]. Ali sentado [enquanto ela passava creme no rosto, lá na outra ponta, de frente ao espelho do banheiro, a torneira jorrando e empurrado o silêncio do apartamento pra fora], ele deixava o queixo cair no rumo do chão branco anemia. Pensou em dizer a ela, já reparou na quantidade de cabelo que a gente perde?, mas não disse. Nem levantou a cabeça. Ficou ali parado olhando aqueles cabelinhos espalhados no chão e de repente imaginou que, se não houvesse vassouras, ou coragem de usá-las, logo os cabelos tomariam conta de tudo. Entupiriam o chão, os lençóis e o cobertor marrom. Emperrariam as dobradiças das portas, sufocariam as fechaduras, embuchariam as maçanetas. Feito o chão do barbeiro que ele gostava de frequentar, só que pior, bem pior que o chão do barbeiro que ele gostava de frequentar. Precisava fazer a barba, ele se lembrou. E levou a mão no queixo e pensou em perguntar pra ela se a barba estava grande demais ou se podia deixar crescer mais um pouco. Talvez apenas aparar as arestas, aqueles fios soltos e emborolados debaixo do queixo. 

Mas não, não disse nada.

Era muito cabelo ali no chão. E mesmo depois que varresse, ele começou a questionar onde ia parar tanto cabelo. Quase todo mundo tinha cabelo, e perdia cabelinhos das pernas e dos braços e os pelos pubianos pelo chão dos apartamentos de piso branco anemia. Onde ia parar tanto cabelo? Quanto tempo levava até que aquele cabelo todo se dissolvesse? O cabelo sumia, assim como se derrete gelo? Apodrecia e virava outra coisa? O que seria o cabelo depois que deixava ser cabelo?

Não sabia. Nunca tinha pensando nisso. Nunca tinha pensado direito. Talvez nunca pensasse direito em porcaria nenhuma, ainda mais em cabelo. O máximo que tinha feito era varrer aqueles cabelinhos, enfiar numa sacola e enfiar no lixo.

Não perguntou nada pra ela.

Ela massageava o rosto, ainda nua de frente ao espelho, e ele se lembrou de como haviam esfregado as coxas, sôfregos, esfregado todo o resto. Ele apertava o corpo dela contra a parede como se empurrasse uma rocha ladeira acima. Os calcanhares às vezes vinham de encontro ao chão num golpe seco, embora o suor escorresse das pernas. As mãos meladas atarracadas nas costas tencionadas.

Olhando aqueles cabelinhos todos, ele pensou que aqueles cabelinhos todos eram os restos da urgência toda que eles tinham de se tocar e se esfregar e sentir o outro como se precisassem assimilar e desaparecer no corpo do outro, naquela urgência toda e pouco se falava e só havia o chiado da fricção da pele contra a pele e esse cheiro empapado nas mãos úmidas e essa urgência atravessada na respiração disparando como se eles estivessem apostando uma corrida.

Agora, só restava aqueles montinhos de cabelo estirados no chão branco anemia. Aqueles cabelinhos eram tudo que restava.

O barulho da torneira sumiu. Quando ele deu por si, ela entrava no quarto, já de frente pra ele. Ela esticou a mão e tocou a cabeça dele. Deu um daqueles beijos que ela sempre dava, assim meio na orelha e no pescoço, escorrendo os lábios na nuca. Passou a mão no rosto dele, como se descansasse os dedos. Depois ergueu-se, indo no rumo do guarda-roupas.

“Tá na hora de aparar essa barba”, ela disse.

“É, você tem razão”.

Ele era capaz de sentir fios de cabelo crescendo. Enraizado nas axilas. Crescendo como uma planta parasita, agarrada a virilha, chupando toda a água do rosto.



Um comentário:

  1. Cabelo é o que anda me faltando... aos 25 anos...Mas o que eu poderia fazer contra a natureza...?! =/

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oi.