22/10/2010

O demônio que mora no texto


Voz autoral, esse é o segredo de qualquer texto literário. 

Voz autoral é aquilo que separa um texto comum,de um texto literário. É o feitiço do texto, a varinha mágica que abre uma fresta na realidade, faz do processo de leitura uma espécie de mergulho, submersão, faz do entorno algo suspenso, quebra o pacto de ligação com o cotidiano, provoca a suspensão de juízos, é a quarta parede da representação textual.

Se você não consegue construir uma voz autoral, desista. Essa é a lei.

Porque é a voz autoral que coordena a voz narrativa, que coordena cada narrador de cada história, sustenta todos eles, como um maestro sustenta uma orquestra. Voz autoral é aquilo que faz de cada autor um autor. De cada livro um livro, cada capítulo um capítulo. Faz de Kafka, Kafka. Faz de O castelo, O castelo, e de A metamorfose, A metamorfose. Faz Riobaldo sussurrar verdades ao Dr. interlocutor de orelhas murchas; faz preás gordos e enormes marejar os olhos da gente. Faz Marina, Maga, Capitu, Lolita, Diadorim, Marla Singer. Voz autoral, maldita voz autoral.

Voz autoral é a mãe da voz narrativa. Às vezes, ela nem aparece. Não aparecer faz parte do jogo. Voz autoral é quando o texto fala, mesmo em silêncio. É quando o texto deixa de ser só um encadeamento de palavras, deixa de ser apenas um conjunto de construções rebuscadas, gramaticalmente corretas, seguindo uma sintaxe adequada e originalmente aceita, deixa ser apenas uma história que se conta, por mais verdadeira que seja, por mais que tenha acontecido de verdade, com você, por mais mirabolante, verossímil, estruturalmente impecável e original que seja o enredo, a trama, o subtexto; é quando o texto deixa de ser todas essas coisas, pra ser outra coisa, deixa de ser palavras, gramática, história, sintaxe, trama, subtexto; é quando acontece o  salto; e quando acontece o milagre: o texto fala, fala algo que encontra ressonância na gente; essa estranha ressonância das coisas desconhecidas nunca vivenciadas, coisas que nos enganam e parecem nos pertencer desde sempre.


Voz autoral é o demônio que sopra pequenos segredos no interior das palavras. Sem voz autoral, são só palavras, palavras, palavras. Sem voz autoral, não é literatura, é só história. Voz autoral é aquilo que nos prende ao texto em que nada acontece. Voz autoral, maldito demônio.

Voz autoral é o que transforma essas dezenas de plots de cinco linhas, rascunhados e ruminados durante semanas e meses, naqueles contos que são como um soco no estômago. Como é A terceira margem do rio, Baleia, Bliss, O canário, Gut, Aqueles dois, Visor, como é Espera, Fazendo a barba, Uma namorada, O buraco e um punhado de outros que li e suponho gostar. Aquilo que está nos poemas The genius of the crowd, Making a Fist, O haver; é o cante A palo seco do qual nos fala João Cabral. Abrir o silêncio com sua chama nua; não é um cante a esmo; é como um submarino de couçara absoluta, tão dura, que rasga o interior desse abismo e resiste a todas as bestas.

Sem voz autoral, o personagen não anda. Bonecos. Ideias de chapéu. Então, prefiro não fazer.

Voz autoral. Procuro por ela, procuro, capino seu caminho com leituras que julgo importantes, ouço com atenção senhores que tomo por superiores, leio ensaios, clássicos, supostos gênios. Leituras porcas, mal compreendidas. A vida passa, os dentes amarelam, os olhos afundam no rosto. Um cante, a palo seco.

Com boa vontade encontro um parágrafo, duas linhas, três frases privadas de adjetivos inúteis. Elaboro argumentos, sofismas escorregadios que justificam minhas limitações. Recobro a consciência de imediato, reconheço se tratar de miragens. Arremedos de autores que gosto, cacoetes de prosa falada. Nada mais que isso. Nada que valha. Nada. Bobagens.

Mesmo assim continuo.


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6 comentários:

  1. "Arremedos de autores que gosto, cacoetes de prosa falada".

    Interessante... Eu acredito que, de início, quando começamos a escrever, a querer escrever, a querermos ser autores, nós imitamos nossos ídolos, o parafraseamos por vezes até. Com o tempo vamos, com o auxílio da leitura (coisa importantíssima para a criação de um autor), adquirindo feições próprias, linhas, versos mais similiares a nós, a nossa sensibilidade literária. Por isso, sim: devemos continuar. Até para, como disse Rilke em sua primeira carta, sabermos se somos chamados a caminhar nessa estrada.
    Grande abraço,

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  2. Quando escrevo abre um mar no espelho do banheiro. essa voz autoral é também o desespero de sangrar na folha aquilo que ninguém

    chorou ( escreveu ) é isso move a felicidade num escritor.

    Marcus v. gostaria de enviar meu livro pra tu, qualé o e-mail ?

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  3. Rodrigo, grato pelo comentário.

    Diego, o e-mail tá ali em cima, mas em todo caso: mvalmeida.7@gmail.com

    até mais.

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  4. Meu nome não é Jonny24 de outubro de 2010 às 10:41

    O loco, Marcos.

    Conseguiu emular o Graciliano Ramos, direitinho. Hahha.

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  5. Um segredo. tenho 16 anos. Sempre admirei quem escrevia textos fodas. tipo Fernando de Abreu, Clarice lispector e principalmente o M. de assis. É pq a gente encontra a personalidade deles nos textos e historias que escreviam. E eu tentava.. tentei.. escrever como eles. Tentativas fracassadas eu confesso. Então comecei escrever do MEU jeito.foi qnd fiz esse blog http://confessominhanormalidade.blogspot.com
    Descobri q as pessoas gostam do q escrevo, pq me veem em cada texto, e mais do q isso.. veem a si proprias nos meus textos. fim do segredo.

    visita la se der
    bgs

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  6. Continuamos..., não sei bem por quê, mas continuamos.
    Gostei muito desse texto.

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oi.