O homem disse, num timbre de voz orgulhoso, que não tinha nenhum palmo de herança nos trinta e seis alqueires de terra, nenhum palmo de herança desde o mirante até o vale onde brotava a extensa pastagem de gado, divisa com o cafezal florido; em ponto de pobre, não tinha nada que reclamar à Deus ou a quem quer que fosse. O outro, aquele que ouvia essas coisas, inferiu da ausência de queixas do homem, a justificativa para as imagens de santos na sala, a minúscula Nossa Senhora no painel do carro, a correntinha com crucifixo no pescoço, ostentação de gratidão ao Senhor.
Depois, o homem se calou e saiu a passos curtos guiado pelo ronco dos porcos, afoitos, debruçados uns sobre os outros, os focinhos nas frestas das velhas tábuas do velho chiqueiro debaixo do limoeiro ressecado.
O outro permaneceu recostado no carro, espiando o homem apanhar a lata de lavagem e apontar com o ombro meia dúzia de cavalos no pasto do outro lado do vale, dizer que lhe pertenciam também, os cavalos e o pasto, nenhum palmo de herança, nada a reclamar de Deus. O outro, aquele que ouvia essas coisas, pensou, mesmo que abstraísse às terras e o carro, mesmo que não houvesse imagens de gesso com as pontas dos dedos descascadas, mesmo que não houvesse trinta e seis alqueires de terra conquistadas a suor, mesmo que não houvesse ostentação de gratidão ao Senhor, mesmo que não houvesse o homem; e ele, recostado no carro, mesmo que não houvesse nada daquilo, os santos, de alguma forma, estariam lá, mesmo que não houvesse Deus ou a palavra santo; os santos estariam lá, plainando sobre os trinta e seis alqueires de terra inexistente, presença sem corpo, camada espessa de cerração das manhãs de julho.
Mais uma vez, agora, dentro do chiqueiro, restos de lavagem nas botas, o homem repetiu, nenhum palmo de herança.
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Marcos,
ResponderExcluirVocê já viu Comer, rezar, amar?
Que texto bacana, Marcos.
ResponderExcluirbjo
Cristalino. como se eu lavasse pratos já limpos pra porra nenhuma. sensação desapercebida de que li algo forte e profundo. há também um tiquinho de maldade debaixo do
ResponderExcluirsol. belíssimo texto M. vinicius. estranho e azulado. tentei decifrar a essencia da narrativa mas acabei dando uma de otário. muito bacana.
Diego, otário nada, rapa!
ResponderExcluir"como se eu lavasse pratos já limpos pra porra nenhuma", é um dos melhores comentários que já recebi por aqui.
valeu mesmo
até