21/12/2010

Conservação dos dias


Percebo os anos avançando encavalados, atropelando-se; paralelos.

2008 permaneceu ao lado de 2009 até o fim. Depois, infiltrou-se em 2010, de janeiro até dezembro. Mas tão logo constatou seu anacronismo, esmoreceu, desistiu de prosseguir.

2009 morreu em setembro de 2009, antecipando à entrada de 2010

prematuro, 2010 não resistiu, morreu antes do tempo, antes que 2011 chegasse;
abandonando os dias:

soltos, cada um por si, no vácuo, desligados dos anos; obstruindo a contagem.

soltos, os dias beiravam à loucura, indiferenciados;
sábado disfarçado de segunda chuvosa,
domingo caindo na quarta, terça se fazendo passar por quinta.

dias sem rosto beirando à beira da suposta eternidade;

Tudo bem.

Pra recuperar a ordem basta usar o calendário. Mas calendário é uma coisa muito datada, pragmática. Cada dia no calendário vale um dia só. E dentro de uma semana um dia é apenas a sétima parte. Num mês, é uma pequena fatia entre outras trinta equiparáveis. Em um ano, então, um pequeno suspiro no meio de outros trezentos e ínfimos suspiros. Cada dia nasce anunciando a sua precariedade. E marcar o tempo é a melhor forma de acelerar os ponteiros e desmerecer as vinte e quatro horas. Feito o prisioneiro, pragmático, riscando pauzinhos na parede da cela a cada noite de sono injustiçado.

Pergunto se as formigas adotaram a prática do calendário em seus misteriosos túneis subterrâneos. Duvido. Já no início das eras, na primeira geração, as formigas perceberam a ineficiência de contar os dias e  abandonaram esse hábito obsoleto.

Calendários aceleram o tempo.

Com o tempo passando mais rápido, o trabalho não rende. Não dá pra abastecer os estoques da colônia; despir a paineira de suas folhas, depenar as pastagens de capim gordura ou braquiária. E seria inverossímil conciliar a existência do calendário e a habilidade das formigas em aparecer do nada, atravessar espaços como se os espaços não existissem. Não poderiam surgir misteriosamente no meio da cozinha e surrupiar dois torrões de açúcar, seis grãos de arroz detrás do fogão; farelo de bolacha sobre a toalha de mesa. A única forma de galgar espaços de forma tão rápida, é suprimindo o tempo. Por isso as formigas abandonaram os calendários.

Eu, ao contrário, continuo contando.

Riscando pauzinhos na folhinha, marcando os compromissos na agenda, colocando o relógio pra despertar cinco minutos mais cedo. Tentando dar eficiência a vida, aproveitar bem o tempo, riscar mais um pauzinho na folhinha; feito o prisioneiro, projetando uma saída futura, algum tipo de redenção inexistente; ou a azeitona em conserva, esperando virar petisco, cair num prato, morrer nos lábios sorridentes; e vencer a data de validade, evitar a lixeira, pra não terminar devorado, até o caroço, na fome paciente da legião de formigas.

Um comentário:

oi.