17/12/2010

Variações de um Natal passado.


Embora houvesse o homem de bucho estufado, empresário; oriundo de um reino distante chamado São Paulo, vez por sempre, estufando com imagens a tela da televisão tingida de verde (o reino São Paulo, não o homem), exibindo umas casas diferentes, extensas, na vertical, pilares gordos sem nada pra sustentar, cheias de janelas; a profusão de senhoras e madames de óculos escuros se acotovelando com trajes de missa à luz da rotina ordinária; embora houvesse presentes iguais aos presentes da televisão tingida de verde (presentes jamais encontrados em mercados e bazares da pequena cidade, àquela época); embora houvesse até mesmo o saco, a camionete (a mesma função de trenó), de pintura e pneus majestosos frente aos parcos carros que transitavam por aquela cidade de ruas irregulares, estreitas e sem trânsito; e o homem, de bucho estufado e equilibrado, e risonho, jogando balas aos moleques que vinham atrás, correndo de shorts Adidas vermelhos com três listras brancas, bermudinhas de moletom cinza ou azul e sem camisa, uma camisa do Atlético escrito coca-cola, às vezes descalços, às vezes calçados com chilenas havainas azuis ou samoas pretas, brotando das casas aos montes, formando um grupo sedento por balas lançadas ao ar, presas nos vãos ásperos dos bloquetes, machucando a falange dos dedos nas quinas dos bloquetes e no esforço de arrancar, pequenos arranhões pra puxar a bala, encher os bolsos, as mãos e a boca:

e o sorriso na boca daquelas crianças fosse da mesma tonalidade sentimental dos sorrisos na televisão tingida de verde, porque, afinal, havia o homem de bucho estufado, vindo de algum lugar misterioso e importante para oferecer presentes especiais e jogar bala chita; embora as crianças voltassem correndo para casa com os beiços lambuzados de bombons garoto à medida que a mãe, cuidadosa, retirava o presente do embrulho como se o embrulho fosse mais importante que a coisa embrulhada; embora houvesse essas coisas todas, não havia neve. E foi a ausência da neve a grande epifania intuitiva, uma semente de lucidez, ou podridão, plantada como um explosivo sorrateiro, enraizada pra sempre, ainda que os tornozelos e joelhos do menino fossem miúdos, e houvesse os restos de chocolate nos beiços, embrulhos estocados como se fossem presentes; a intuição, insuperável, fez com que ele entendesse, não naquele momento, mas em um confuso e indefinido momento futuro, dez, quinze, vinte anos à frente, (a intuição explodindo, crescendo, avançando, aos poucos, como avança a trepadeira no muro, sempre presente; discreta, evitando impor sua ausência), que o mundo prometia muito e cumpria pouco.

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Tinha algo de errado com aquele microfone, ineficiência do operador de som, a má qualidade do equipamento; ou as duas coisas. O homem de bucho estufado (agora, sem a falsa barriga), disse que tinha saído daquela cidade miúda numa pobreza extrema, apenas com um par de botinas, uma mão na frente outra atrás, mas calçado, graças à Deus; e descambado pra São Paulo.

O menino, agora já de barba na cara e gosto de cachaça na boca, ouvia aquelas coisas e se perguntava, sem formular qualquer frase mental objetiva, um raciocínio suspenso, automático, o giro invisível da engrenagem no interior mais obscuro do motor de um carro, rememorando aquele tempo de joelhos e tornozelos miúdos, embrulhos guardados como se fossem presentes, o menino, agora de barba na cara e gosto de cachaça na língua, pelo viés dos sedimentos instalados e reavivados pelo o homem no palanque, o menino intuía, espreitava à mentalidade, e paciência, planejamento, esperança medonha habitando à cabeça daquele homem de bucho estufado (agora, sem a falsa barriga no alto do palanque) para elaborar a engenhosa compra de votos a priori.



3 comentários:

  1. Esse enorme "embora" é que dá o nó na garganta, né? Escrevê-lo é assumir que algo ficou faltando, ou que sempre há de faltar, como está escrito ali em cima, só que outras palavras.
    Mas, mesmo assim, a gente deseja um Feliz Natal. (Certamente ainda vou mandar o meu "Feliz Natal", aguarde, rs.)

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oi.