19/12/2010

Paisagem com dromedário, Carola Saavedra


Prezado leitor: Paisagem com Dromedário, de Carola Saavedra (Companhia das Letras, 2010) é um romance existencial de ótima qualidade. Explico o existencial: é existencial não apenas pelo maneirismo da personagem Érika por aforismo e/ou reflexões obsessivas sobre “o sentido” maior da existência e/ou a falta de; é existencial não apenas por citar indiretamente reflexões da estética heideggeriana e/ou função e sentido da arte; é existencial não apenas por flertar (ainda que de forma tímida e distante), com A convidada de Simone de Beauvoir na questão do triângulo amoroso; é existencial não apenas por “dizer alguma”, construir ou desconstruir uma moral, o sentindo das relações humanas, o jogo do interno e externo e da atuação (da personagem que finge ser alguma coisa aos outros e carrega uma contradição explosiva dentro si, perdida na apropriação por encenação e na expectativa daquilo que outros esperam que ela seja); é existencial porque imprime uma marca em que lê; é existencial porque o leitor não sai impune da leitura. 


Tenho que confessar que, antes de ler, esperava por uma leitura pesada(não pelo tema, mas pela estrutura). Quer dizer, um livro que é estruturado por um conjunto de 22 gravações, uma única personagem falando o tempo todo diretamente ao interlocutor (tipo: A queda, Camus), não chega a ser cansativo mas exige atenção redobrada. Mas no caso de Paisagem com dromedário, não foi caso disso. Carola Saavedra dosa perfeitamente os momentos de reflexão com os episódios (ou causos) que fazem o enredo avançar. Érika, a narradora, é uma ótima contadora de causos. O tom intimista vai nos envolvendo de uma forma muito prazerosa. Érika é daquele tipo de "pessoa" que se estiver do nosso lado numa longa viagem de ônibus, faz a viagem desaparecer; anos depois, não lembramos nem qual ônibus pegamos, de que cidade a qual cidade, mas nos lembramos da história e do jeito daquela pessoa falar. 

Além do mais, o livro consegue tratar a questão do triângulo amoroso sem cair no lugar-comum; ora, isso não é fácil (ref: uma das mais belas cenas de ménage à trois que eu já li). Todo mundo já viu As horas, não é? Você deve estar lembrado da cena em que o marido de Virginia Woolf pergunta pra ela, algo como: “por que sempre há mortes nos seus livros? Por que sempre alguém tem que morrer?” Virginia responde: “É um contraste. Alguém morre para que outros possam viver.” A morte, a exclusão, é uma maneira de criar um fundo para vida. Em Paisagem com dromedário, Carola Saavedra utiliza uma solução semelhante no triângulo amoroso. Nesse tipo de relação, sempre alguém ficará excluído, é necessário que seja excluído; e essa exclusão é o contraste para que os outros dois se mantenham. A exclusão que traz equilíbrio. Toda negação é uma afirmação. 

Não li os livros anteriores da Carola Saavedra, mas, mesmo antes de lê-los (coisa que pretendo fazer o mais rápido possível), já posso afirmar que estou diante uma grande escritora. É tão boa escritora que me fez suportar e relevar as referências heideggerianas. E isso não é pouca coisa.

E, aliás, nenhum silêncio é igual a outro. 


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[ps: impressionante como há boas escritoras escrevendo e publicando hoje, não? quer dizer, não que exista tal coisa como "literatura feminina" e toda a discussão que isso envolve, enfim; mas, das que li até agora, destaco a Brisa Paim e a Carol Bensimon. Claro, há muito mais autoras, difícil é acompanhar tudo que é lançando e ler os clássicos ainda não lidos (tipo: os sete volumes de Guerra e Paz), e reler aqueles clássicos  essenciais como Crime e Castigo ou Angústia. Mas, li os dois livros da Bensimon, lá pelo começo do ano, e gostei muito. Não comentei aqui na época da leitura, porque, sei lá, não tinha intenção de compartilhar minhas impressões de leituras por aqui. Mas recomendo muito Sinuca embaixo d'águaBensimon trabalha com a narrativa fragmentada em múltiplos focalizadores, consegue construir uma prosa sofisticada e de senso estético depurado. Sem contar, que o Polaco, um dos personagens do livro, é tão pegajoso que dá saudade quando terminamos de ler. Sério, deu até vontade de escrever pra Bensimon e pedir que ela escrevesse uma novela só com o Polaco. ]

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