13/10/2010

Nenhum palmo de herança

O homem disse, num timbre de voz orgulhoso, que não tinha nenhum palmo de herança nos trinta e seis alqueires de terra,  nenhum palmo de herança desde o mirante até o vale onde brotava a extensa pastagem de gado, divisa com o cafezal florido; em ponto de pobre, não tinha nada que reclamar à Deus ou a quem quer que fosse. O outro, aquele que ouvia essas coisas, inferiu da ausência de queixas do homem, a justificativa para as imagens de santos na sala, a minúscula Nossa Senhora no painel do carro, a correntinha com crucifixo no pescoço, ostentação de gratidão ao Senhor. 

Depois, o homem se calou e saiu a passos curtos guiado pelo ronco dos porcos, afoitos, debruçados uns sobre os outros, os focinhos nas frestas das velhas tábuas do velho chiqueiro debaixo do limoeiro ressecado. 

O outro permaneceu recostado no carro, espiando o homem apanhar a lata de lavagem e apontar com o ombro meia dúzia de cavalos no pasto do outro lado do vale, dizer que lhe pertenciam também, os cavalos e o pasto, nenhum palmo de herança, nada a reclamar de Deus. O outro, aquele que ouvia essas coisas, pensou, mesmo que abstraísse às terras e o carro, mesmo que não houvesse imagens de gesso com as pontas dos dedos descascadas, mesmo que não houvesse trinta e seis alqueires de terra conquistadas a suor, mesmo que não houvesse ostentação de gratidão ao Senhor, mesmo que não houvesse o homem; e ele, recostado no carro, mesmo que não houvesse nada daquilo, os santos, de alguma forma, estariam lá, mesmo que não houvesse Deus ou a palavra santo; os santos estariam lá, plainando sobre os trinta e seis alqueires de terra inexistente,  presença sem corpo,  camada espessa de cerração das manhãs de julho.

Mais uma vez, agora, dentro do chiqueiro, restos de lavagem nas botas, o homem repetiu, nenhum palmo de herança.

*******

4 comentários:

  1. Meu nome não é Jonny14 de outubro de 2010 às 03:32

    Marcos,

    Você já viu Comer, rezar, amar?

    ResponderExcluir
  2. Que texto bacana, Marcos.

    bjo

    ResponderExcluir
  3. Cristalino. como se eu lavasse pratos já limpos pra porra nenhuma. sensação desapercebida de que li algo forte e profundo. há também um tiquinho de maldade debaixo do

    sol. belíssimo texto M. vinicius. estranho e azulado. tentei decifrar a essencia da narrativa mas acabei dando uma de otário. muito bacana.

    ResponderExcluir
  4. Diego, otário nada, rapa!
    "como se eu lavasse pratos já limpos pra porra nenhuma", é um dos melhores comentários que já recebi por aqui.

    valeu mesmo
    até

    ResponderExcluir

oi.