02/12/2010

Domingo encarnado

O nome do sujeito é Domingo. Nunca dei muita atenção para o nome. Muito menos para as roupas desgrenhadas, barba que poeira só, os pés cascudos. Domingo é motorista, zanza pela cidade com um volante nas mãos como se guiasse um veículo imaginário.

O volante, segundo consta, era de uma rural velha, estacionada no almoxarifado da prefeitura há anos. Ao investigar as origens desse hábito e do volante, numa noite no Bar do Tatá, soube que o homem tinha conseguido de um dos mecânicos; e como não houve protesto por perda de patrimônio público, Domingo guiava sua quimera com tranquilidade.

Sobre a origem do hábito, no entanto, pouco se sabia. Havia quem dissesse que tinha nascido assim, outros que foi pé na bunda, uma mulher que ninguém sabia o nome. Eram tantas hipóteses isoladamente verdadeiras que, em conjunto, nada daquilo fazia sentido.

Sábado passado, saí logo pela manhã movido por um convite inconveniente de pescaria do acolhedor Josué, então, topei de frente com o motorista daquele veículo abstrato. Quase me atropela. Trocou marchas, tascou a mão na buzina sem piedade, ameaçou fazer uma baliza ao redor da praça, entre o uno do Padre e gol de um taxista, talvez, suponho, para tirar satisfação com esse pedestre que já batia queixo e tremia na base; calcule meu desespero, já sentia as volantadas na cabeça, nas costas, uma desgraça; mas, para meu alívio, desistiu da baliza. Deve ter achado a vaga pequena; acelerou avenida afora, debreou, engatou à quarta marcha. Sumiu. Tamanha habilidade me deixou embasbacado, eu que nunca aprendi a guiar essas coisas, nunca memorizei a função dos pedais. A destreza do sujeito me distraiu tanto, que me fez esquecer o grande absurdo, na verdade, que era dar de cara com o Domingo, em pessoa, no sábado.

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Publicado na revista Diversos Afins, 30/11/2010

11 comentários:

  1. Acho que todos que conhecem um Domingo, nunca pensam na maluquice desse nome. Pq ainda se fosse Domingos, acho que é até mais "normal", mas Domingo soa estranho... sem contar as brincadeiras: Quem morre no sábado? u.u
    Bom, colocar dia de mês, dia da semana, estação do ano nos filhos, é no mínimo pedir que ele seja alvo de brincadeiras para sempre...rs

    beijos

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  2. O silêncio é a mais perfeita forma de comunicação.

    ( essa frase me desconcentrou ... já me fugiram as palavras, mas adorei seu texto)

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  3. Kamomylla,esse exotismo do nome que é interessante, creio.


    Maria Quitéria, obrigado pela leitura e comentário.

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  4. Não chamaria de genial, mas valeu o comentário.

    Um abraço

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  5. Senti o cheiro da cidade pequena e o temor dos passantes ante o louco, figura marcante da cidadezinha...

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  6. Ah, fantástico! Sem palavras... poxa, muito bom mesmo este texto, o blog... nossa um dos meus favoritos! Sucesso!!

    http://orasbolotas.blogspot.com/

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  7. Ele tem algo a ver com o Quinta-feira, daquele filme que não lembro o nome? Abraços.

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  8. Poxa, Fabrício, não me lembro de desse Quinta-Feira não. Lembro do Sexta-Feira, do Robson Crosué.
    Abraços

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  9. Eu já tive um volante desses que achei na casa do meu avô. Já fui um Domingo na Infância

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oi.