21/04/2010

Através da vidraça

“O romance americano pretende encontrar sua unidade reduzindo o homem quer ao elementar, quer às suas reações e ao seu comportamento. Ele não escolhe um sentimento ou uma paixão, dos quais nos dará uma imagem privilegiada, como em nossos romances clássicos. Ele recusa a análise, a busca de uma motivação psicológica fundamental que explicaria e resumiria a conduta de um personagem. Por isso, a unidade desse romance não é mais que um vislumbre de unidade. Sua técnica consiste em descrever os homens em seu aspecto externo, nos seus gestos mais indiferentes, em reproduzir sem comentários o seu discurso, até em suas repetições, consiste, afinal, em agir como se os homens fossem definidos inteiramente por seus automatismos cotidianos. Neste nível mecânico, na verdade, os homens se parecem, explicando-se, desta forma, o curioso universo em que todos os personagens parecem intercambiáveis, mesmo em suas particularidades físicas. Esta técnica só é chamada de realista por um mal-entendido. Além do fato de o realismo na arte, como veremos, ser uma noção incompreensível, fica bastante evidente que este mundo romanesco não visa à reprodução pura e simples da realidade, mas sim à sua estilização mais arbitrária. Ele nasce de uma mutilação voluntária, efetuada sobre o real. A unidade assim obtida é uma unidade degradada, um nivelamento dos seres e do mundo. Parece que, para esses romancistas, é a vida interior que priva as ações humanas da unidade e arrebata os seres uns aos outros. Esta suspeita é em parte legítima. Mas a revolta, que está na origem dessa arte, só pode encontrar sua satisfação fabricando a unidade a partir dessa realidade interior, não ao negá-la. Negá-la totalmente é referir-se a um homem imaginário. (...) A vida dos corpos, reduzida a si mesma, produz, paradoxalmente, um universo abstrato e gratuito, constantemente negado por sua vez pela realidade. Este romance, depurado de vida interior, em que os homens parecem ser observados através de uma vidraça, ao atribuir-se como tema único o homem supostamente médio, acaba logicamente colocando em cena o patológico. Explica-se, dessa forma, o número considerável de 'inocentes' utilizados nesse universo. O inocente é o assunto ideal de um empreendimento como este, já que só é definido, por inteiro, por seu comportamento. Ele é o símbolo deste mundo desesperado, em que autômatos infelizes vivem na coerência mais mecânica, que os romancistas americanos erigiram, diante do mundo moderno, como um protesto patético, mas estéril.”
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Trata-se, naturalmente, do romance “duro” dos anos 30 e 40, e não do admirável florescimento do romance americano do século XIX.
Mesmo em Faulkner, grande escritor desta geração, o monólogo interior só reproduz a superfície do pensamento.

Albert Camus, O homem revoltado, pág. 304-305

Mãos de Cavalo

Upgrade em 24/10 

(contém spoilers)


Sabe aqueles filmes de terror que a gente vê (ou via ) e que na hora não assustam; mas depois, quando você está sozinho ou na hora de dormir, sempre voltam a sua cabeça? Mãos de cavalo (COMPANHIA DAS LETRAS: 2006) é, a seu modo, como esses filmes de terror. Provoca o mesmo efeito.

Agrado muito do jeito como o Daniel Galera escreve. E como sempre ouvi dizer por aí que o Mãos era o melhor livro do autor até o momento, criei certa expectativa sobre a obra, e talvez tenha sido essa expectativa que tenha afetado minha leitura.


Pela leitura de Dentes Guardados ( Livros do Mal: 2001) e Cordilheira, COMPANHIA DAS LETRAS: 2008) respectivamente, algumas coisas já eram esperadas quando iniciei o livro: excelentes descrições, visualidade da narrativa e sutileza ao lidar com a gradação do conflito; esses três pontos, a meu ver, são aquilo que Galera sabe domar com extrema propriedade e segurança. É impossível não projetar a imagem das gotas de sangue brotando no joelho esfolado do Ciclista Urbano; impossível não seguir a trajetória do vôo de Bonodo ao ser atingindo por Hermano na partida de futebol. Impossível não correr com Hermano para trás da mata e ouvir o som seco, abafado de chutes na cabeça. Impossível não sair alterado dessa experiência.

Impossível parar de ler.

Covardia. Omissão. Mentira; e junto destas coisas,  a maldita câmera da consciência por detrás dos atos. A maldita câmera que nos acompanha por toda parte. Está sempre ligada, pronta a fechar um close. Quem escapa dela?

Mas não se engane, não é um livro moralista chato. A leveza e sutileza com que Galera consegue nos guiar através da história, que nos conduz junto dos personagens, a linguaguem ágil, atual, bem trabalhada, os nuances ao tratar das emoções, sempre veladas e presentes; refências culturais do final  dos anos 80 e anos 90, todas essas qualidades, provocam imersão na história; aquilo de esquecer que estamos lendo um livro.

(spolier)

Porém, na minha primeira leitura ( porque, claro, releituras ao de vir), Mãos de cavalo seria um romance melhor ainda (já é muito bom), sem os monólogos de um cirurgião plástico junto à história de Hermano e sua turma. Sem essa tentativa de amarrar essas monologações numa decisão de mudar o rumo que, por coincidência, jogasse o sujeito diante de uma situação semelhante ao espancamento de Bonodo. Semelhante, porque Bonodo era "amigo" de Hermano; o guri que cruza seu caminho por acaso, é só um guri. E depois esse guri serve como desculpa para levar Hermano até Naira.

Claro, isso é uma perpecção de leitor, de uma leitura feita a partir de muita expectativa prévia. A bem da verdade, não é que a junção não exista (o sangue sujo, sangue novo), existe a junção,  está amarrada da melhor forma possível, tecnicamente falando. É mais uma questão de feeling, não consegui sentir a junção da história. Penso, talvez, que tenha me apegado demais a história de Hermano jovem e não tenha conseguido atravessar para o outro nível, ou me envolver com a mesma intensidade. Pode ser.

No geral, Mãos de Cavalo é um bom livro, aliás, um livro muito bom. Principalmente por esse efeito pós-leitura; a experiência da covardia compartilhada entre leitor e personagem não nos deixa em paz: saímos do livro covardes. A experiência sempre volta, como volta toda boa culpa que carregamos. E não é qualquer autor ou obra que consegue nos provocar tal coisa. 


07/04/2010

Escritores criativos e devaneio (1908 /1907) , Freud

 
Por: Sigmund Freud

Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade - como o Cardeal que fez uma idêntica indagação a Ariosto - em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes. Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna (insight) dos determinantes de sua escolha de material e da natureza da arte de criação imaginativa em nada irá contribuir para nos tornar escritores criativos.

Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade afim à criação literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E, na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita freqüência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta.

Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de atividade imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e dispende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança catexiza seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’.

O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. Dá [em alemão] o nome de ‘Spiel‘ [‘peça’] às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em ‘Lustspiel‘ ou ‘Trauerspiel‘ [‘comédia’ e ‘tragédia’: literalmente, ‘brincadeira prazerosa’ e ‘brincadeira lutuosa’], chamando os que realizam a representação de ‘Schauspieler‘ [‘atores’: literalmente, ‘jogadores de espetáculo’]. A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem, porém, conseqüências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor.

Existe uma outra circunstância que nos leva a examinar por mais alguns instantes essa oposição entre a realidade e o brincar. Quando a criança cresce e pára de brincar, após esforçar-se por algumas décadas para encarar as realidades da vida com a devida seriedade, pode colocar-se certo dia numa situação mental em que mais uma vez desaparece essa oposição entre o brincar e a realidade. Como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância, equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor.

Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Da mesma forma, a criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. Acredito que a maioria das pessoas construa fantasias em algum período de suas vidas. Este é um fato a que, por muito tempo, não se deu atenção, e cuja importância não foi, assim, suficientemente considerada.

As fantasias das pessoas são menos fáceis de observar do que o brincar das crianças. A criança, é verdade, brinca sozinha ou estabelece um sistema psíquico fechado com outras crianças, com vistas a um jogo, mas mesmo que não brinque em frente dos adultos, não lhes oculta seu brinquedo. O adulto, ao contrário, envergonha-se de suas fantasias, escondendo-as das outras pessoas. Acalenta suas fantasias como seu bem mais íntimo, e em geral preferiria confessar suas faltas do que confiar a outro suas fantasias. Pode acontecer, conseqüentemente, que acredite ser a única pessoa a inventar tais fantasias, ignorando que criações desse tipo são bem comuns nas outras pessoas. A diferença entre o comportamento da pessoa que brinca e da fantasia é explicada pelos motivos dessas duas atividades, que, entretanto, são subordinadas uma à outra.

O brincar da criança é determinado por desejos: de fato, por um único desejo - que auxilia o seu desenvolvimento -, o desejo de ser grande e adulto. A criança está sempre brincando ‘de adulto’, imitando em seus jogos aquilo que conhece da vida dos mais velhos. Ela não tem motivos para ocultar esse desejo. Já com o adulto o caso é diferente. Por um lado, sabe que dele se espera que não continue a brincar ou a fantasiar, mas que atue no mundo real; por outro lado, alguns dos desejos que provocaram suas fantasias são de tal gênero que é essencial ocultá-las. Assim, o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e proibidas.

Mas, indagarão os senhores, se as pessoas fazem tanto mistério a respeito do seu fantasiar, como os conhecemos tão bem? É que existe uma classe de seres humanos a quem, não um deus, mas uma deusa severa - a Necessidade - delegou a tarefa de revelar aquilo de que sofrem e aquilo que lhes dá felicidade. São as vítimas de doenças nervosas, obrigadas a revelar suas fantasias, entre outras coisas, ao médico por quem esperam ser curadas através de tratamento mental. É esta a nossa melhor fonte de conhecimento, e desde então sentimo-nos justificados em supor que os nossos pacientes nada nos revelam que não possamos também ouvir de pessoas saudáveis.

Vamos agora examinar algumas características do fantasiar. Podemos partir da tese de que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. Os desejos motivadores variam de acordo com o sexo, o caráter e as circunstâncias da pessoa que fantasia, dividindo-se naturalmente em dois grupos principais: ou são desejos ambiciosos, que se destinam a elevar a personalidade do sujeito, ou são desejos eróticos. Nas mulheres jovens predominam, quase com exclusividade, os desejos eróticos, sendo em geral sua ambição absorvida pelas tendências eróticas. Nos homens jovens os desejos egoístas e ambiciosos ocupam o primeiro plano, de forma bem clara, ao lado dos desejos eróticos. Mas não acentuaremos a oposição entre essas duas tendências, preferindo salientar o fato de que estão freqüentemente unidas. Assim como em muitos retábulos em que é visível num canto qualquer o retrato do doador, na maioria das fantasias de ambição podemos descobrir em algum canto a dama a que seu criador dedicou todos aqueles feitos heróicos e a cujos pés deposita seus triunfos. Veremos que aqui existem motivos bem fortes para ocultamento; à jovem bem educada só é permitido um mínimo de desejos eróticos, e o rapaz tem de aprender a suprimir o excesso de auto-estima remanescente de sua infância mimada, para que possa encontrar seu lugar numa sociedade repleta de outros indivíduos com idênticas reivindicações.

Não devemos supor que os produtos dessa atividade imaginativa - as diversas fantasias, castelos no ar e devaneios - sejam estereotipados ou inalteráveis. Ao contrário, adaptam-se às impressões mutáveis que o sujeito tem da vida, alterando-se a cada mudança de sua situação e recebendo de cada nova impressão ativa uma espécie de ‘carimbo de data de fabricação.’ A relação entre a fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. É como se ela flutuasse entre três tempos - os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une.

Um exemplo bastante comum pode servir para tornar claro o que eu disse. Tomemos o caso de um pobre órfão que se dirige a uma firma onde talvez encontre trabalho. A caminho, permite-se um devaneio adequado à situação da qual este surge. O conteúdo de sua fantasia talvez seja, mais ou menos, o que se segue. Ele consegue o emprego, conquista as boas graças do novo patrão, torna-se indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com sua encantadora filha, é promovido a diretor da firma, primeiro na posição de sócio do seu chefe, e depois como seu sucessor. Nessa fantasia, o sonhador reconquista o que possui em sua feliz infância: o lar protetor, os pais amantíssimos e os primeiros objetos do seu afeto. Esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro.

Há muito mais a dizer sobre as fantasias, mas limitar-me-ei a salientar aqui, de forma sucinta, mais alguns aspectos. Quando as fantasias se tornam exageradamente profusas e poderosas, estão assentes as condições para o desencadeamento da neurose ou da psicose. As fantasias também são precursoras mentais imediatas dos penosos sintomas que afligem nossos pacientes, abrindo-se aqui um amplo desvio que conduz à patologia.

Não posso ignorar a relação entre as fantasias e o sonhos. Nossos sonhos noturnos nada mais são do que fantasias dessa espécie, como podemos demonstrar pela interpretação de sonhos. A linguagem, com sua inigualável sabedoria, há muito lançou luz sobre a natureza básica dos sonhos, denominando de ‘devaneios’ as etéreas criações da fantasia. Se, apesar desse indício, geralmente permanece obscuro o significado de nossos sonhos, isto é por causa da circunstância de que à noite também surgem em nós desejos de que nos envergonhamos; têm de ser ocultos de nós mesmos, e foram conseqüentemente reprimidos, empurrados para o inconsciente. Tais desejos reprimidos e seus derivados só podem ser expressos de forma muito distorcida. Depois que trabalhos científicos conseguiram elucidar o fator de distorção onírica, foi fácil constatar que os sonhos noturnos são realização de desejos, da mesma forma que os devaneios - as fantasias que todos conhecemos tão bem.

Deixemos agora as fantasias e passemos ao escritor criativo. Acaso é realmente válido comparar o escritor imaginativo ao ‘sonhador em plena luz do dia’, e suas criações com os devaneios? Inicialmente devemos estabelecer uma distinção, separando os escritores que, como os antigos poetas egípcios e trágicos, utilizam temas preexistentes, daqueles que parecem criar o próprio material. Vamos examinar esses últimos, e, para os nossos fins, não escolheremos os mais aplaudidos pelos críticos, mas os menos pretensiosos autores de novelas, romances e contos, que gozam, entretanto, da estima de um amplo círculo de leitores entusiastas de ambos os sexos. Nas criações desses escritores um aspecto salienta-se de forma irrefutável: todas possuem um herói, centro do interesse, para quem o autor procura de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia, e que parece estar sob a proteção de uma Providência especial. Se ao fim de um capítulo deixamos o herói ferido, inconsciente e esvaindo-se em sangue, com certeza o encontraremos no próximo cuidadosamente assistido e próximo da recuperação. Se o primeiro volume termina com o naufrágio do herói, no segundo logo o veremos milagrosamente salvo, sem o que a história não poderia prosseguir. O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilharia inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heróico, expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de invulnerabilidade, podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias.

Outros traços típicos dessas histórias egocêntricas revelam idêntica afinidade. O fato de que todas as personagens femininas se apaixonam invariavelmente pelo herói não pode ser encarado como um retrato da realidade, mas será de fácil compreensão se o encararmos como um componente necessário do devaneio. O mesmo aplica-se ao fato de todos os demais personagens da história dividirem-se rigidamente em bons e maus, em flagrante oposição à verdade de caracteres humanos observáveis na vida real. Os ‘bons’ são aliados do ego que se tornou o herói da história, e os ‘maus’ são seus inimigos e rivais.

Sabemos que muitas obras imaginativas guardam boa distância do modelo do devaneio ingênuo, mas não posso deixar de suspeitar que até mesmo os exemplos mais afastados daquele modelo podem ser ligados ao mesmo através de uma seqüência ininterrupta de casos transicionais. Notei que, na maioria dos chamados ‘romances psicológicos’, só uma pessoa - o herói - é descrita anteriormente, como se o autor se colocasse em sua mente e observasse as outras personagens de fora. O romance psicológico, sem dúvida, deve sua singularidade à inclinação do escritor moderno de dividir seu ego, pela auto-observação, em muitos egos parciais, e em conseqüência personificar as correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis. Certos romances, que poderíamos classificar de ‘excêntricos’, parecem contrapor-se ao devaneio modelo. Nestes, a pessoa apresentada como herói desempenha um papel muito pouco ativo; vê os atos e sofrimentos das demais pessoas como espectador. Muitos dos últimos romances de Zola pertencem a essa categoria. Mas devo assinalar que a análise psicológica de indivíduos que não são escritores criativos, e que em alguns aspectos se afastam da norma, mostrou-nos variações análogas do devaneio, nos quais o ego se contenta com o papel de espectador.

Para que nossa comparação do escritor imaginativo com o homem que devaneia e da criação poética com o devaneio tenha algum valor é necessário, acima de tudo, que se revele frutuosa, de uma forma ou de outra. Tentemos, por exemplo, aplicar à obra desses autores a nossa tese anterior referente à relação entre a fantasia e os três períodos de tempo, e o desejo que o entrelaça; e com seu auxílio estudemos as conexões existentes entre a vida do escritor e suas obras. Em geral, até agora não se formou uma idéia concreta da natureza dos resultados dessa investigação, e com freqüência fez-se da mesma uma concepção simplista. À luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar a situação como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga.

Não se alarmem ante a complexidade dessa fórmula. Na verdade suspeito que a mesma irá revelar-se como um esquema muito insuficiente. Entretanto, mesmo assim talvez ofereça uma primeira aproximação do verdadeiro estado de coisas; por experiências que realizei, inclino-me a pensar que essa visão das obras criativas pode produzir seus frutos. Não se esqueçam que a ênfase colocada nas lembranças infantis da vida do escritor - ênfase talvez desconcertante - deriva-se basicamente da suposição de que a obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil.

Não devemos esquecer, entretanto, de examinar aquele outro gênero de obras imaginativas, que não são uma criação original do autor, mas uma reformulação de material preexistente e conhecido (ver em [1]). Mesmo nessas obras o escritor conserva uma certa independência que se manifesta na escolha do material e nas alterações do mesmo, às vezes muito amplas. Embora esse material não seja novo, procede do tesouro popular dos mitos, lendas e contos de fadas. Ainda está incompleto o estudo de tais construções da psicologia dos povos, mas é muito provável que os mitos, por exemplo, sejam vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem.

Poderão dizer que, embora eu tenha colocado o escritor criativo em primeiro lugar no título deste artigo, me ocupei menos dele que das fantasias. Reconheço o fato, e devo tentar desculpar-me alegando o estado atual de nossos conhecimentos. Pude apenas oferecer certos encorajamentos e sugestões que, partindo do estudo das fantasias, levaram ao problema da escolha do material literário pelo escritor. Quanto ao outro problema - como o escritor criativo consegue em nós os efeitos emocionais provocados por suas criações -, ainda não o tocamos. Mas gostaria, ao menos, de indicar-lhes o caminho que do nosso exame das fantasias conduz aos problemas dos efeitos poéticos.

Devem estar lembrados de que eu disse (ver a partir de [1]) que o indivíduo que devaneia oculta cuidadosamente suas fantasias dos demais, porque sente ter razões para se envergonhar das mesmas. Devo acrescentar agora que, mesmo que ele as comunicasse para nós, o relato não nos causaria prazer. Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias. Mas quando um escritor criativo nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes. Como o escritor o consegue constitui seu segredo mais íntimo. A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha. Isso nos leva ao limiar de novas e complexas investigações, mas também, pelo menos no momento, ao fim deste exame.


NOTA DO EDITOR INGLÊS

DER DICHTER UND DAS PHANTASIEREN
(a) EDIÇÕES ALEMÃS:
(1907 6 de dezembro. Pronunciado como conferência)
1908 Neue Revue, 1 (10) [março], 716-2.
1909 S.K.S.N., 2,197-206 (1912, 2ª ed.; 1921, 3ª ed.)
1924 G.S. 10, 229-239.
1924 Dichtung und Kunst, 3-14.
1941 G.W., 7, 213-223.
(b) TRADUÇÃO INGLESA:
‘The Relation of the Poet to Day-Dreaming’
1925 C.P., 4, 172-183. (Trad. de I. F. Frant Duff.)
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A obra de arte é um substituto para aquilo que foi o brincar infantil ?

O funâmbulo e o escafandrista, Laura Erber




Mais: aqui

05/04/2010

"Os Novos" Luiz Vilela, capa épica.

Passando por um sebo na Riachuelo, acabei dando de cara com aquela edição de Os Novos. Além da capa, talvez por emoção, resolvi postar aqui dois minúsculos fragmentos que me agradam bastante. É isso.


“O pai pôs a mala no chão.
- Pronto?
- Pronto.
- Tudo aí?
- Está.
- E a passagem?
- Está aqui – o pai bateu no bolso do paletó.

Tinha uma hora ainda e desceram até a lanchonete para comer alguma coisa. Nei pediu dois mistos-quentes, um copo de leite para o pai e uma vitamina para ele. Havia pouca gente, as mesas vazias.

- Eu queria era um leite quente – disse o pai; - esqueci de falar...
- É só trocar.
- Deixa, o garçom pode achar ruim.
- Não, ele troca.
Nei chamou o garçom; ele veio, levou o leite frio e trouxe o leite quente.
- Agora sim – o pai contente.
- Nas férias eu irei pra casa, o senhor fala pra Mamãe.
- Falo sim.
- Fala também pra ela ir preparando os doces...

O pai sorriu.
Ficaram alguns minutos comendo em silêncio.

- Quer dizer que o lançamento ontem esteve bom? - perguntou o pai.
- Esteve.
- Mas isso tem futuro, Nei?
- A revista?
- A revista, escrever... Sabe, eu às vezes fico meio preocupado... (…) Essas coisas de escrever, o seu sono... Você tem dormido bem?
- Mais ou menos. No mundo de hoje é difícil a gente dormir bem.
- Você aqui fica também até tarde da noite batendo à máquina?
- De vez em quando.
- Não te atrapalha dormir? Acho que é isso que atrapalhava dormir lá em casa naquelas férias.
- Não...
- Esses casos de escritores que a gente ouve contar... Parece ser uma vida pouco sadia...
Nei sorriu:
- Pode ficar tranquilo, Papai. No fim tudo dá certo, o senhor vai ver... - Deu-lhe uma palmadinha no ombro: - O senhor vai ainda vai ter um escritor famoso na família...
- Se for, me orgulharei muito – disse o pai – Mas o principal é que os filhos estejam felizes. Isso que é o principal.

Estava feliz? O pai não chegara a lhe perguntar, mas ele se perguntava agora, sozinho no quarto, deitado, os olhos fixos na lâmpada acesa. Estava? Não, não estava – e que importância tinha isso? E que importância tinha tudo mais?
Fechou os olhos, cansado da luz, cansando de pensar, cansado de tudo. Mas não queria dormir – queria o quê? Nada, não queria nada, queria ficar ali simplesmente, deitado, de olhos fechados, sem pensar em nada – mas não pensar em nada era impossível, acabava pensando em alguma coisa, e então o melhor era já escolher uma coisa para pensar. Uma coisa agradável. Por exemplo: a Suécia. A Suécia, por exemplo. As suecas, louras e peitudas, indo nuas nas praias.

Acabou saindo e deitando com uma mulher que não era sueca, nem peituda; tudo rápido, mecânico, quase sem vontade. Voltou aborrecido para casa, detestando-se e jurando que amanhã daria um jeito em sua vida, custasse o que custasse. ”

*******

“- Sábado fui lá no Colégio Estadual fazer aquela minha conferência sobre poesia brasileira contemporânea.
- Hum.
- Rapaz – Vitor segurou-me o braço: - eu saquei tanto que até eu mesmo fiquei com vergonha de mim. Puta merda, acho que eu nunca saquei tanto assim na minha vida; foi um troço... Esses dias te contei que folheei a Obra Aberta, do Umberto Eco, né? Ler mesmo, acho que só li umas dez páginas.
- O que não é nenhuma novidade com você...
- Pois sabe que eu falei o tempo todo lá em Obra Aberta? Já pensou? …

Nei Ria.

- Imagina agora se eu tivesse lido o livro todo, se só com algumas páginas já deu pra sacar tanto... Foi um negócio a conferência, você precisava de ver. Falei uma porrada de coisa lá; falei em mecânica combinatória baseada na lei de permutações, porra, nem sei quê que é isso, mas lembrei que tinha lido nalgum lugar; falei no poema como um campo de possibilidades: bacana, hem? campo de possibilidades, isso fica bonito pra burro; falei em barroco, Stockhausen, Pierre Boulez, Max Bense, os filmes do Antonioni, a lingüística Russa, os móbiles de Calder, o Livro de Mallarmé, Finnegans Wake, história em quadrinhos, comunicação de massas, pop art, semiótica, cibernética, porra, você precisava de ver, deu um show lá, a turma ficou impressionadíssima; esse cara é cobra mesmo no assunto, devem ter pensado; tem uma cultura fabulosa... Morri de rir depois, porra, eu mesmo fiquei surpreendido comigo... Sei que impressionei bem pra burro, fizeram pergunta, escrevi troços lá no quadro, eles vibraram, querem que eu volte lá outra vez; o macete agora é pegar outro livro de vanguarda, descobrir outros troços do tipo lei das permutações, campo de possibilidades, citar uns caras estrangeiros, umas expressões em inglês ou francês, uns troços assim, e voltar lá pra outra dessas.

- Eu queria estar lá...

- Você ia morrer de rir, estava o fino. Eu lá na frente falando com toda a seriedade e a classe escutando em silêncio, fazendo perguntas, porra, foi simplesmente genial.

- Só você mesmo pra fazer uma dessas...

- Você ia morrer de rir... Você não sabe de algum outro livro não? Qual a última moda da estética? O negócio é pegar o assunto da moda, todo mundo interessa e você pode sacar à vontade porque eles estão por fora e não percebem. (…) Pensei até em virar conferencista profissional, quê que você acha?

- Por que você não dá aula? É mais simples.
Muito mais simples:

- Continuando o que vimos na última aula: os valores estéticos; segundo Moritz Geiger, no seu livro A Fenomenologia da Percepção Estética – e ele riu por dentro, lembrando-se de Vitor.”


04/04/2010

"A peste": debate entre Roland Barthes e Camus

A polêmica da 'Peste'
Roland Barthes

``Crônica: 1) Registros segundo a ordem do tempo, por oposição à história, na qual os fatos são estudados em suas causas e suas consequências; 2) Relato de pequenas histórias corriqueiras.'' Littré

``A Peste'' não é um romance, mas uma crônica -ao menos ela se chamava assim de início. Isso quer dizer que todos os temas habituais do romance -o homem, o amor ou o sofrimento- são vistos aqui através da transparência e do distanciamento de uma história coletiva, acompanhada dia a dia sem jamais se deixar penetrar por uma significação propriamente histórica. A meio caminho entre a História e o Romance, ``A Peste'' poderia ainda ter sido uma tragédia. Logo veremos que preferiu ser o ato de fundação de uma Moral.

A comunidade (tema costumeiro das crônicas) é aqui uma cidade, Oran. Desde o começo do relato, Oran é bem apresentada em seus costumes, seu ``ar'', seu modo de ser -não em sua economia ou em suas funções; a crônica vem somar-se então às numerosas histórias municipais do tempo em que a cidade era a dimensão última da comunidade, simultaneamente céu moral e espaço único dos destinos individuais (nascimento, vida, morte). A cidade é tema e fundamento do relato; fora dela, não há nem realidade nem recurso, e esse caráter definitivo é sublinhado pela própria fábula: toda a crônica d'``A Peste'' desdobra-se na clausura material de Oran, o mar de um lado, as portas fechadas do outro (As Portas da Cidade, tema trágico secular), um encerramento rigoroso que concentra a cidade como se fosse uma essência, um princípio ativo, um objeto perfeitamente finito, pronto a ser capturado pelo símbolo, isto é, pela arte.

``A Peste'' também é crônica, à medida que Oran, submetida à epidemia, constitui um mundo ``sem causas e sem consequências'', conforme à definição de Littré -ou seja, um mundo privado de História. Os homens d'``A Peste'' não enxergam mais que a ``ordem do tempo'': eles vivem, depois a Peste chega e depois a cidade é isolada, e depois eles morrem, e depois a Peste se afasta; não saberiam dizer outra coisa, e tudo o que são capazes de pensar sobre a vida, a morte, o sofrimento ou a solidariedade, seus erros ou seus deveres não lhes ocorre senão segundo essa ordem anódina da Peste que chega, golpeia e depois parte. Não há qualquer estrutura ou causa na Peste, nenhuma ligação entre a Peste e um alhures, que poderia ser o passado, um outro lugar ou um fato qualquer; numa palavra, nenhuma relação. É bem verdade que essa ordem chega a delinear uma crise, dotada de um tempo preparatório, de um início, de um avanço, de um ápice e de uma resolução; mas essa crise não tem, por assim dizer, domicílio fixo. O que é peculiar à História é a organização do desvelamento progressivo dos fatos em função de um epicentro exterior à crise em si mesma, substituindo-se dessa maneira a idéia de estrutura à idéia de tempo. Nada disso ocorre aqui: temos o movimento da crise, não sua explicação; temos a sequência de seus momentos, mas essa passagem dramática da Peste pela cidade não é jamais recuperada, de qualquer maneira que seja, por sua passagem pela humanidade.

Como na definição de Littré, a crônica é feita aqui de pequenas histórias corriqueiras: um encontro, uma visita, um telegrama, um decreto, uma conversa, uma tentativa de fuga, até mesmo uma morte entre centenas de outras; todos esses fatos miúdos, que ligam entre si alguns habitantes de Oran ao longo da passagem da Peste, dão-se ao longo de meses, nem mais rápida nem mais vagarosamente que ela, sem jamais se alçarem à intriga ou ao drama. Na verdade, esse encadeamento sem ênfase não é fortuito: está encarregado de substituir o valor de conhecimento que o argumento poderia evocar (como Tragédia ou como História) por um valor de sentimento e assim impregnar a crônica de uma substância que em geral lhe é desconhecida: a Moral. Por meio dessa adição de fatos miúdos, o patético da situação é reiteradas vezes canalizado para a paciente descoberta de uma ética da amizade.

Há entretanto n'``A Peste'' um elemento puramente trágico: a própria Peste. Essa deusa desconhecida vem desempenhar seu papel desumano como um destino quase tão imutável quanto os Fados antigos. Dela não sabemos nada, a não ser que ela é; ignoramos sua origem e sua forma; não podemos nem sequer atribuir-lhe um adjetivo qualquer -o que seria um modo de torná-la familiar; ela é o Mal absoluto e, como tal, não pode ser qualificada por aqueles que vem esmagar; ela é visível, evidente e entretanto incognoscível; com ela, não há conhecimento possível além da consciência de seu caráter absoluto. De modo que o primeiro ato humano a que ela obriga os habitantes de Oran -e essa abertura não é a parte menos bela do livro- é seu reconhecimento: há que nomear a Peste. Da mesma maneira, a Tragédia antiga foi sempre uma palavra humana encarregada de dar um nome ao deus que faz sofrer.

Ainda assim, a Tragédia reverte aqui numa recusa da Tragédia, um pouco à maneira como Eurípides vem concluir Ésquilo. A Peste é um destino, mas, sob seus golpes, os homens de Oran retêm o grito: são todos gente silenciosa. Mas o que a Peste destrói é de um preço incalculável, e eles o sabem. Um grande tema, pudico e forte, atravessa a obra: o tormento dos amantes separados, o exílio do amor. Rieux é separado de sua esposa doente; Rambert, de sua amante -e, ainda que privado de expressão patética, tudo isso é visivelmente terrível. Mas ao sugerir o viver-em-comum como alvo mesmo da Peste, Camus não lhe entrega à destruição uma felicidade romântica, eloquente (tema habitual das grandes situações romanescas), mas um estado definido por sua duração, objeto de uma moral do silêncio, de uma lírica.

Fato romântico, quase fabuloso, introduzido no meio humano corriqueiro e formado à exata medida do cotidiano, a Peste não exerce aí qualquer purificação espetacular; a tragédia não se consuma, pois o que está em causa aqui é uma moral, não uma metafísica. Nesse mundo da lítote, a Peste não é, ao fim e ao cabo, muito mais que um reagente: a cidade modesta que ela afeta e, dentro dessa cidade, o pequeno grupo que acompanhamos torna-se assim objeto do que hoje em dia seria chamado de micro-sociologia; o flagelo é quase um teste experimental que nos permite ver reagir uma humanidade mediana, em nada heróica, dotada no melhor dos casos de uma virtude antes de moralista que de teólogo: a boa vontade. Essas reações são diferentes entre si porque de início a Peste incide sobre situações diferentes: ela esmaga Rambert, jovem jornalista encerrado por azar na cidade pestilenta e separado da amante adorada; mas ela é doce e benéfica para Cottard, alvo de uma polícia cujas investigações são interrompidas pela Peste. Cada qual recebe-a de modo diverso do vizinho, cada qual parece exercer o que poderíamos chamar de conduta de ocasião. E, entretanto, cada uma dessas condutas de aspecto contingente, particular, acaba por desembocar silenciosamente naquilo que almeja ser uma moral comum da liberdade.

Sim, pois, se a liberdade é simultaneamente conhecimento de uma necessidade e poder sobre essa necessidade, não há dúvida de que a crônica de Camus postula uma moral da liberdade. Todos esses homens medianos que vemos à nossa frente, todos eles reconhecem a Peste, abrem os olhos para ela, olham-na face a face e não contestam em qualquer momento o seu absurdo. Face ao mal da Peste, não agem como avestruzes, não procuram alcançar o refúgio habitual das ilusões retóricas ou metafísicas; a Peste é para eles uma Necessidade que aceitam por assim dizer em estado bruto, sem contestá-la, sublimá-la, justificá-la ou eludi-la; ela está lá, sem que a possa escamotear ou nomear de modo diverso: basta que uma criança morra por obra da Peste para que se interrompa qualquer fuga rumo a uma consolação que não tenha o absurdo (e tão-somente ele) por medida. Desse modo, a despeito das tentações metafísicas, os habitantes de Oran são reconduzidos inexoravelmente à realidade da Peste, não às suas causas, suas justificativas, seus usos ou seu resgate.

Mas tal como no Sísifo de Camus, o ponto extremo da lucidez coincide com o ponto inicial de salvação (terrestre): no momento em que esses homens reconhecem na Peste uma realidade tão dura que qualquer álibi torna-se impossível, eles percebem que sua sociabilidade é o único bem humano que podem opor sem mentira à Peste -vitoriosamente ou não, pouco importa. Na ordem da vida, a solidariedade é feita de metal tão duro quanto o da Peste na ordem dos males; e, se a Peste é um mal infundado, que não obstante força toda a cidade à percepção de sua evidência, a ``simpatia'' é um bem que não tem necessidade de qualquer justificativa -política ou religiosa- para reunir os homens e fazê-los viver. Para Sartre, o inferno são os outros; para Camus, os outros talvez sejam o paraíso. Exercer sua profissão, aplicar-se conscienciosamente a fazer recuar um mal terrível, injusto, incompreensível, com as armas do médico -armas modestas, mas ao menos pacientes, objetivas, forjadas em comum e sobretudo jamais mortíferas-, eis aí a medida de uma felicidade que não nasce da sublimação do sofrimento, mas da obstinação dos homens a mitigá-la -lado a lado, sem ilusão e sem desespero.

Acontece que às vezes o mal tem feições humanas, e é isto o que a Peste não é capaz de dizer. Defender-se da Peste é, apesar dos esforços do livro, um problema antes de conduta que de escolha. Mas defender-se de homens, ser seu carrasco para não ser sua vítima -todo o problema começa quando a Peste não é mais apenas a Peste, mas também imagem de um mal de rosto humano. Diz-se que a Peste é, de fato, o símbolo da Ocupação, que Oran enclausurada não era outra coisa senão a França sitiada. É certo que todos os episódios do livro podem ser traduzidos nos termos da Ocupação e da Resistência: os oraneses lutando contra a Peste enfrentam exatamente as mesmas situações que os franceses de 1942 às voltas com a ocupação nazista; a epígrafe do livro legitima em larga medida essa interpretação (``É aceitável representar uma espécie de aprisionamento por outra...''). Esse símbolo constante, o efeito de generalização que ele produz, as recordações pessoais em que ele remexe, a própria familiaridade com o Mal que ele descreve, tudo isso torna o livro ainda mais tocante. E, entretanto, é nesse aprofundamento histórico da Peste que tem origem o mal-entendido que, desde a publicação d'``A Peste'', opõe Camus a uma parte dos intelectuais franceses. Uma moral da solidariedade -uma solidariedade de conteúdo político consciente- pode bastar para combater o mal das coisas. Será ela suficiente perante o mal dos homens? A História não exibe apenas flagelos inumanos: há também males bastante humanos (guerras, opressões) e igualmente mortíferos, se não mais. Bastará então ser médico e, por medo de converter-se em carrasco, contentar-se em tratar de ferimentos sem atacar a arma que os inflige? O que deve fazer o homem diante do ataque de outro homem? O que fariam os combatentes de Camus frente às feições demasiado humanas que a Peste deveria simbolizar geral e indiferenciadamente?

É essa a questão proposta pelo livro. A resposta de Camus não deixa lugar a dúvida: tal como os médicos, enfermeiros e voluntários d'``A Peste'', e qualquer que seja a conjuntura histórica, há que fazer tudo para não ser ``nem carrasco, nem vítima''. Pode-se discutir e contestar uma Moral que corre o risco de tornar o homem cúmplice de um mal perante o qual ele só deseja sanar os efeitos nocivos; mas não se pode negar a Camus a clareza e a gravidade da escolha. Só que, para se manter inocente, essa escolha tem absoluta necessidade de solidão. Rieux ou Tarrou não conhecem as alegrias de sua escolha moral senão sob a forma de uma amizade silenciosa; não os sustenta, em momento algum, uma solidariedade geral e bem definida (política no sentido forte do termo). O mundo de Camus é um mundo de amigos, não de militantes. Os homens de Camus não podem deixar de ser carrascos ou cúmplices dos carrascos senão sob a condição de permanecerem solitários -o que de fato são. Da mesma maneira, ``A Peste'' inaugurou para seu autor uma carreira de solidão; a obra que nascera de uma consciência da História não vai a ela em busca de evidências, preferindo a lucidez no campo moral; é por via do mesmo movimento que seu autor, testemunha de nossa História presente, acabou por preferir recusar os compromissos -mas não a solidariedade- com seu combate.

Da solidariedade à participação

Abert Camus

Carta de Albert Camus a Roland Barthes
Ao Sr. Roland Barthes

Paris, 11 de janeiro de 1955
Caro Senhor,
Por sedutor que me pareça, não posso compartilhar do seu ponto de vista sobre A Peste. Claro está que todo comentário é legítimo na crítica de boa fé; ao mesmo tempo, aventurar-se tão longe quanto o senhor faz é tão permissível quanto relevante. Mas parece-me que em qualquer obra há evidências que o autor tem o direito de mencionar a fim de ao menos indicar os limites em que pode se desdobrar o comentário. Afirmar, por exemplo, que A Peste funda uma moral anti-histórica e uma política da solidão implica, penso eu, cair em contradições e sobretudo deixar de lado certas evidências; resumo aqui as principais: 1º A Peste, que gostaria que fosse lida de várias perspectivas, tem por conteúdo evidente a luta da resistência européia contra o nazismo. A prova disso está no fato de que, sem que o inimigo seja nomeado, todo mundo soube reconhecê-lo, e em todos os países da Europa. Acrescentemos que um longo trecho d'A Peste foi publicado sob a Ocupação num volume do "Combate" e que essa circunstância bastaria por si só para justificar a transposição que adotei. Em certo sentido, A Peste é mais do que uma crônica da resistência; em todo caso, não é menos que isso. 2º Comparada a O Estrangeiro, A Peste marca, sem discussão possível, a passagem de uma atitude de revolta solitária ao reconhecimento de uma comunidade de cujas lutas é imperativo tomar parte. Se há evolução do Estrangeiro à Peste, ela se deu no sentido da solidariedade e da participação. 3º O tema da separação (cuja importância no livro o senhor percebeu muito bem) é esclarecedor quanto a este ponto. Rambert, que incarna o tema, renuncia justamente à vida privada para se juntar ao combate coletivo. Entre parênteses: este personagem bastaria para mostrar o que pode haver de factício na oposição entre o amigo e o militante. Pois uma virtude é comum aos dois: a fraternidade ativa, que afinal de contas nenhuma história jamais pode dispensar. 4º Além disso, A Peste termina com o anúncio e a aceitação das lutas vindouras. Ela é um testemunho "do que houve que fazer e que sem dúvida [os homens" deveriam ainda fazer contra o terror e sua arma incansável, a despeito de seus conflitos pessoais...". Eu poderia estender ainda mais meu ponto de vista. Mas se me parece bem possível considerar insuficiente a moral em ação n'A Peste (seria então o caso de dizer em nome de qual moral mais completa) ou igualmente legítimo criticar sua estética (muitas das suas observações esclarecem-se pelo fato de eu não acreditar no realismo em arte), parece-me ao contrário bastante difícil afirmar, como faz o senhor à guisa de conclusão, que o autor recusa a solidariedade com a nossa história presente. Difícil e, permita-me dizê-lo com amizade, um pouco entristecedor. Seja como for, a questão que o senhor propõe ("Que fariam os combatentes d'A Peste frente à feição demasiado humana do flagelo?") é injusta, uma vez que deveria ser formulada no passado, ocasião em que recebeu resposta - positiva. O que esses combatentes, cuja experiência parcialmente traduzi, fizeram, eles o fizeram justamente contra os homens e a um preço que o senhor conhece bem. Eles o repetirão, sem dúvida, frente a qualquer terror e qualquer que sejam suas feições - pois o terror tem várias -, o que justifica uma vez mais a escolha de não nomeá-lo precisamente a fim de poder melhor atingir a todos. É sem dúvida isso mesmo que me reprovam: que A Peste possa servir a qualquer resistência contra qualquer tirania. Mas não há como reprovar-me, não há sobretudo como acusar-me de recusar a história, se não sob condição de declarar que a única maneira de entrar na história está na legitimação de uma tirania. Sei que não é esse o seu caso; quanto a mim, levo minha perversidade ao ponto de pensar que resignar-se a uma tal idéia significa na realidade aceitar a solidão humana. E longe de me sentir preso a um carreira de solidão, tenho ao contrário a sensação de viver para e por uma comunidade que até agora nada na história foi capaz de minar. É isto, muito sucintamente, o que desejava dizer-lhe. Para concluir, gostaria tão-somente de assegurar-lhe que esta discussão amistosa não diminui em nada a estima que tenho por seu talento e por sua pessoa.

Albert Camus


Literalidade absoluta dos males

Ao sr. Albert Camus Librairie Gallimard Rue Sébastien-Bottin Paris, 7º distrito Paris, 4 de fevereiro de 1955
Caro senhor,

Agradeço-lhe as observações que o senhor teve a bondade de fazer a propósito de minha resenha da "Peste". Elas não me demovem de meu ponto de vista, mas de qualquer modo permitem-me situar melhor o debate que nos opôs.
Penso que concordaríamos em resumir este debate da seguinte maneira: o romancista tem o direito de alienar os fatos da história? Poderá uma peste equivaler, não digo a uma ocupação, mas à Ocupação?
Todo o seu livro, a epígrafe que o senhor inseriu, suas próprias explicações reivindicam esse direito, que precisamente se confunde, aos seus olhos, com a rejeição do realismo em arte - no qual o senhor lembra não acreditar.

Ora, no que me diz respeito, eu creio nele; ou ao menos (pois o termo "realismo" tem uma hereditariedade bastante pesada) creio numa arte literal em que as pestes não são outra coisa além de pestes, em que a Resistência é a resistência integral.

Vejo nessa arte literal o único recurso possível contra uma moral formal (própria, creio eu, a distrair-nos da ``teimosia dos fatos''), única forma de respeito possível frente à História, cujos males só são remediáveis se os encaramos em sua literalidade absoluta, e não como símbolos ou germes possíveis de uma equivalência.

O senhor me pede que declare em nome do que eu julgo insuficiente a moral da "Peste". Não faço nenhum segredo disso: em nome do materialismo histórico, uma vez que considero uma moral de explicação mais completa que uma moral da expressão. Eu o teria declarado antes, se não temesse parecer demasiado pretensioso ao me filiar a um método que exige tanto de seus partidários.

Portanto, o que procurei contestar foi um sistema, não uma pessoa ou um talento. Peço-lhe que não duvide dos sentimentos de estima e de admiração que sinto por sua pessoa e sua obra.
Roland Barthes