28/10/2010

Um leve estudo sobre “Estudos sobre a leveza”.


Não me recordo como e nem quando conheci o Fernando de F. L. Torres.

Suponho, naquele momento que me escapa qual seja, algum comentário retuitado por outro no twitter ter me chamado atenção e eu ter chegado ao seu perfil, ter caído no seu blog numa dessas pesquisas no google no meio da madruga; ou talvez, por sua resenha de Areia nos Dentes, na Copa de Literatura 2009. Não sei exatamente como foi; só sei que, num dado momento, estávamos trocando e-mails. Coisas do mundo muderno.

Nesse tempo(final de 2009), falou-me que preparava um livro de contos, esse que acabei de reler hoje: Estudos sobre a leveza, lançado pela Editora Multifoco em fevereiro de 2010. O livro é composto por vinte e dois contos, que vão da construção neorealista ao tom fabular. Contos breves, subtextos bem trabalhados e leitura fluente. O estudo do título, é um estudo do autor sobre a natureza da narrativa. Um exercício de composição. Um aprendizado. O próprio F. L. Torres, consciente de seus limites e do objetivo de seu projeto literário, salienta numa entrevista ao blog Na Ponta do Lápis: “encarar a empreitada de escrever o primeiro livro como estudo é uma forma se colocar em uma posição de humildade que eu acho necessária”. Por outro lado, o estudo se refere aos próprios personagens, a seus conflitos, naquele modo de estudo velado que a narrativa, e apenas a narrativa, é capaz de proporcionar.

Na orelha, Eric Novello propõe a existência de uma matéria abstrata como origem dessas breves narrativas: ideias, a matéria sem peso. Segundo Novello, posteriormente, essas ideias, encarnadas em situações concretas, encorporadas por personagens jogados às peripécias e conflitos, causariam aquele eco no leitor. É uma hipótese interessante, senão pelo caráter mediúnico dos personagens em transmitir supostas “mensagens”.

Não creio que a leveza do estudo ao qual se propõe F. L. Torres, ou melhor, o livro, venha estritamente do mundo das ideias. A leveza aqui, é de outra natureza. A leveza é gerada em outro reino. Escolhi um dos contos para tentar explicar meu ponto de vista.

No conto “Inesperado Gol”, narrado em terceira pessoa, André M., um cineastra fracassado, executa o trabalho de investigar rolos de películas de um empresário morto, “cuja vida pouco teria de interessante”. O ambiente é um “frigorífico que funcionava apenas para conservar os filmes, e onde era o antigo escritório comercial, foi feita uma pequena sala de cinema. (…) Nos primeiros dias percebeu, que o milionário havia comprado todo e qualquer filme que lhe aparecesse (...) Descobriu, obviamente, rolos de filmes que, para muitos, estavam perdidos.” Meses de investigação, não sabemos quantos, agora debruçado sobre fragmentos de filmes, pedaços de programas televisivos antigos sem qualquer marca ou identificação, André M. se depara com um filme cuja inscrição exterior, “Belíssimo gol na rua Javali”, desperta-lhe um interesse especial. Supõe ser o famoso gol de Pelé (aliás, o conto tem 10 parágrafos), aquele gol de Pelé que, conforme a lenda, seria o mais bonito de todos e fora destruído em um incêndio na TV Record. A partir daí, o sumário narrativo apresentado até então dá lugar a cena final, onde André M, e o leitor através dele, assiste ao filme.

A breve descrição do gol, apresenta visualidade, vemos o filme, estamos ali, sozinhos naquele frigorífico, diante da tela que abre um espaço dentro do espaço da narrativa. Quem é o autor do gol? Um anônimo. Um menino que corre para câmera e pede o filme. É o grande personagem do conto que, nesse breve momento de glória, aparece de forma inesperada e representa, com leveza e profundidade, quão efêmero é uma conquista, um momento de glória pessoal. Enlatados, arquivados, esquecidos, abandonados. Os momentos valem o momento, valem na medida que são.

Registrar o momento, extensão do imperativo viver intensamente, é uma das obsessões humanas mais recorrentes. Na nossa época, em particular, não basta viver. É preciso registrar a vivência, exibir essa vivência; onde a profissão do saudoso retratista que confeccionava books de formaturas e porta-retratos foi substituída por câmeras caseiras de baixo custo, uma jovem adolescente possui mais fotos de si que todo sua geração familiar. Uma foto para cada momento especial ou banal. A foto pela foto. Para onde vão esses registros? De que servem? Qual seu sentido? O gol mais bonito de Pelé, entregue as chamas, esquecido. Essas são possíveis investigações que a breve narrativa nos sugere. Ou pelo menos a mim, sugeriu.

Sugere ainda, reflexão sobre a seleção histórica. Uma espécie de acaso demoníaco que escolhe o que permanece, e o que é levado ao limbo. Pensei talvez, em investir sobre os intuitos do autor ao promover um registro narrativo, mas não é caso disso. Ficaria massante e suponho não ter competência para tal.

O que não é massante, é a leitura do livro. Como num jogo, esses vinte e dois contos, são vinte e dois jogadores. Ligam-se entre si, por um tom, por estilo, justificam sua presença por essa ligação, do jogo do autor contra a palavra, o jogo da construção ficcional. Cada um deles nos propõe uma charada, porque, a leveza desses Estudos sobre a leveza, está na consciência literária, construção bem feita; em saber construir, não apenas narrativas de superfície, mas as narrativas de fundo, que, como um gol inesperado, nos pega de surpresa.

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Fernando de F. L. Torres é advogado e escritor. Colabora nas revistas Aguarrás e Mundo Mundano. Estudos sobre a leveza é seu primeiro livro. Bloga em http://arlequinal.com.br/
Twitter: @novasvisoes

Estudos sobre a leveza
contos
Editora Multifoco, 2009
ISBN: 978-85-7961-066-0

22/10/2010

O demônio que mora no texto


Voz autoral, esse é o segredo de qualquer texto literário. 

Voz autoral é aquilo que separa um texto comum,de um texto literário. É o feitiço do texto, a varinha mágica que abre uma fresta na realidade, faz do processo de leitura uma espécie de mergulho, submersão, faz do entorno algo suspenso, quebra o pacto de ligação com o cotidiano, provoca a suspensão de juízos, é a quarta parede da representação textual.

Se você não consegue construir uma voz autoral, desista. Essa é a lei.

Porque é a voz autoral que coordena a voz narrativa, que coordena cada narrador de cada história, sustenta todos eles, como um maestro sustenta uma orquestra. Voz autoral é aquilo que faz de cada autor um autor. De cada livro um livro, cada capítulo um capítulo. Faz de Kafka, Kafka. Faz de O castelo, O castelo, e de A metamorfose, A metamorfose. Faz Riobaldo sussurrar verdades ao Dr. interlocutor de orelhas murchas; faz preás gordos e enormes marejar os olhos da gente. Faz Marina, Maga, Capitu, Lolita, Diadorim, Marla Singer. Voz autoral, maldita voz autoral.

Voz autoral é a mãe da voz narrativa. Às vezes, ela nem aparece. Não aparecer faz parte do jogo. Voz autoral é quando o texto fala, mesmo em silêncio. É quando o texto deixa de ser só um encadeamento de palavras, deixa de ser apenas um conjunto de construções rebuscadas, gramaticalmente corretas, seguindo uma sintaxe adequada e originalmente aceita, deixa ser apenas uma história que se conta, por mais verdadeira que seja, por mais que tenha acontecido de verdade, com você, por mais mirabolante, verossímil, estruturalmente impecável e original que seja o enredo, a trama, o subtexto; é quando o texto deixa de ser todas essas coisas, pra ser outra coisa, deixa de ser palavras, gramática, história, sintaxe, trama, subtexto; é quando acontece o  salto; e quando acontece o milagre: o texto fala, fala algo que encontra ressonância na gente; essa estranha ressonância das coisas desconhecidas nunca vivenciadas, coisas que nos enganam e parecem nos pertencer desde sempre.


Voz autoral é o demônio que sopra pequenos segredos no interior das palavras. Sem voz autoral, são só palavras, palavras, palavras. Sem voz autoral, não é literatura, é só história. Voz autoral é aquilo que nos prende ao texto em que nada acontece. Voz autoral, maldito demônio.

Voz autoral é o que transforma essas dezenas de plots de cinco linhas, rascunhados e ruminados durante semanas e meses, naqueles contos que são como um soco no estômago. Como é A terceira margem do rio, Baleia, Bliss, O canário, Gut, Aqueles dois, Visor, como é Espera, Fazendo a barba, Uma namorada, O buraco e um punhado de outros que li e suponho gostar. Aquilo que está nos poemas The genius of the crowd, Making a Fist, O haver; é o cante A palo seco do qual nos fala João Cabral. Abrir o silêncio com sua chama nua; não é um cante a esmo; é como um submarino de couçara absoluta, tão dura, que rasga o interior desse abismo e resiste a todas as bestas.

Sem voz autoral, o personagen não anda. Bonecos. Ideias de chapéu. Então, prefiro não fazer.

Voz autoral. Procuro por ela, procuro, capino seu caminho com leituras que julgo importantes, ouço com atenção senhores que tomo por superiores, leio ensaios, clássicos, supostos gênios. Leituras porcas, mal compreendidas. A vida passa, os dentes amarelam, os olhos afundam no rosto. Um cante, a palo seco.

Com boa vontade encontro um parágrafo, duas linhas, três frases privadas de adjetivos inúteis. Elaboro argumentos, sofismas escorregadios que justificam minhas limitações. Recobro a consciência de imediato, reconheço se tratar de miragens. Arremedos de autores que gosto, cacoetes de prosa falada. Nada mais que isso. Nada que valha. Nada. Bobagens.

Mesmo assim continuo.


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20/10/2010

Espíritos animais


Duvido que tenha condicionando meu gato de maneira satisfatória. Dormir lá fora, não mastigar o fio do notebook, não fazer merda detrás do sofá. Duvido da obediência, da postura submissa, dos cochilos  recorrentes na mesa da cozinha ou quando devora uma aranha no quintal. Duvido da humanização dos gatos, principalmente do meu gato, mesmo que evite hábitos inconvenientes. Quando mia, roça o lombo nas minhas canelas finas e peludas, sou tomado por um poder demoníaco, automático. Meu corpo se move num maquinismo obscuro. Percorro o trajeto até a geladeira, apanho o leite, derramo o líquido no pires, retorno à posição anterior como se saísse de um transe mediúnico. Duvido que tenha condicionado meu gato de maneira satisfatória. Duvido.

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18/10/2010

CSI: fofoca


Outro dia, me veio a seguinte dúvida: qual tipo de blog mais expõe um sujeito? 

Os blogs cheios de desabafos, relatos cotidianos, poesia e crônica autobiográfica, diários cheios de intimidades; ou, por outro lado, aqueles em que o sujeito escreve sobre outras coisas, escreve sobre os filmes que viu, os livros que leu, política, sua série de tv favorita?

À primeira vista, o leitor pode achar essa dúvida ingênua. E o leitor tem razão. Num primeiro momento, nos parece, que o blog cheio de visceralidades, supostas confissões, desabafos, textos autobiográficos, coloca o sujeito nu na frente do leitor. Mas, convenhamos não é, leitor, você não precisa ser ofendido com um marmanjo pelado, com as tripas de fora, coração do avesso,  mesmo porque, essas veias abertas, essa nudez, exposição radical, não expõe quase nada; salvo raras exceções.

Num texto em que o sujeito fala sobre um filme que viu, um livro que leu, às vezes, é possível perceber muito mais coisas sobre esse sujeito do que em um texto confessional sobre dor de corno. No texto dor de corno, o autor não está ali, está ali um coitado auto-idealizado, moldado a partir de uma retórica que visa o causador daquela dor, que visa uma justificativa para si mesmo, está ali um simulacro, uma fantasia moldada a partir da suposta sinceridade.

Quanto mais visceral, íntimo e “sincero” é um texto, mais obscuro. A exposição é tão autoreferenciada, cifrada na própria experiência, que só entende o texto aquele que o escreveu, mais ninguém. Pra entender a verdade daquele texto, o leitor deveria passar pelas mesmas experiências que o autor, elaborar essas experiências da mesma forma; o que é, claro, impossível.

Por outro lado, os juízos de um sujeito sobre outra coisa, terminam por mostrar quem é esse sujeito, o que ele pensa, quais são suas preocupações, valores, preconceitos, muito mais do que qualquer relato confessional. Mais ou menos aquele chavão:

Quando Pedro fala de Paulo, sei mais sobre Pedro do que sobre Paulo.

Sempre fiz uso desse método nas fofocas. Costuma funcionar muito bem.

Pois, então.

Dia desses, o amigo A veio me dizer que o amigo B, no meio de uns porres, tinha dito a ele algo terrível. Que eu não acreditaria no que o amigo B tinha dito, a que nível o amigo B tinha chegado! A que nível! Logo o amigo B...

Ele, o amigo A, que me contaria as coisas que o amigo B tinha dito, primeiro se calou, como quem faz certo suspense, como se fosse revelar uma verdade por demais dolorosa e  precisasse se preparar. Soltou um longo suspiro, olhou nos meus olhos (que, aliás, não mostravam muito interesse) e disparou aquela barbaridade que o amigo B tinha dito, meio que imitando a voz do outro embreagado na ocasião:

“O que você ganhou na sua vida toda, amigo A, eu ganho num mês”.

Eu?

Emudeci. Continuei como estava.

O amigo A me encarou, os olhos vivos, esperava alguma opinião favorável, aguardava que me juntasse a ele numa análise obstinada sobre a que ponto tinha chegado o amigo B, nosso nobre amigo B! Esperava de mim, suponho, pelo menos um palavrão automático, um olhar de desdém, qualquer reação para corroborar à tese silenciosa que ele mantinha dentro de si.

Em silêncio, bati a cinza do cigarro.

"Não vai dizer nada?", ele insistiu.
"Cada um com seus problemas".
"Esclareceu muito..." e sorriu.

Estava decepcionado o amigo A. Não voltou mais no assunto e pouco depois foi embora. Quanto a mim, quando um sujeito vem me fazer uma fofoca, descubro mais coisas sobre o fofoqueiro do que sobre a vítima da fofoca.

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13/10/2010

Nenhum palmo de herança

O homem disse, num timbre de voz orgulhoso, que não tinha nenhum palmo de herança nos trinta e seis alqueires de terra,  nenhum palmo de herança desde o mirante até o vale onde brotava a extensa pastagem de gado, divisa com o cafezal florido; em ponto de pobre, não tinha nada que reclamar à Deus ou a quem quer que fosse. O outro, aquele que ouvia essas coisas, inferiu da ausência de queixas do homem, a justificativa para as imagens de santos na sala, a minúscula Nossa Senhora no painel do carro, a correntinha com crucifixo no pescoço, ostentação de gratidão ao Senhor. 

Depois, o homem se calou e saiu a passos curtos guiado pelo ronco dos porcos, afoitos, debruçados uns sobre os outros, os focinhos nas frestas das velhas tábuas do velho chiqueiro debaixo do limoeiro ressecado. 

O outro permaneceu recostado no carro, espiando o homem apanhar a lata de lavagem e apontar com o ombro meia dúzia de cavalos no pasto do outro lado do vale, dizer que lhe pertenciam também, os cavalos e o pasto, nenhum palmo de herança, nada a reclamar de Deus. O outro, aquele que ouvia essas coisas, pensou, mesmo que abstraísse às terras e o carro, mesmo que não houvesse imagens de gesso com as pontas dos dedos descascadas, mesmo que não houvesse trinta e seis alqueires de terra conquistadas a suor, mesmo que não houvesse ostentação de gratidão ao Senhor, mesmo que não houvesse o homem; e ele, recostado no carro, mesmo que não houvesse nada daquilo, os santos, de alguma forma, estariam lá, mesmo que não houvesse Deus ou a palavra santo; os santos estariam lá, plainando sobre os trinta e seis alqueires de terra inexistente,  presença sem corpo,  camada espessa de cerração das manhãs de julho.

Mais uma vez, agora, dentro do chiqueiro, restos de lavagem nas botas, o homem repetiu, nenhum palmo de herança.

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04/10/2010

Crônica de um interior despedaçado


Título do livro, o melhor, talvez, o que nunca escreveria e por isso era tão bom. Como amor não vivido, o lugar desconhecido jamais visitado, por isso sempre lembrado e o poderia ter sido, poderia ter sido o melhor. Vinte sete crônicas sobre dores crônicas, e vida comum, tão comum que doía quase quanto vida mesmo, quase o mesmo peso, o resto era interior, não apenas dentro, mas dentro e fora, aos pedaços, ruas cobertas de mato e cacos de telhas cobertas de limo e areia cinza empelotada, sofá de couro mofado rasgado pelas molas petrificadas e duras, como é dura a resistência das coisas estragadas no abandono daquele porão, apesar da fome dos ratos,  formigas, ferrugem. 

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