22/11/2010

Da personagem que pensa demais


Sou levado a interrogar em que medida as primeiras leituras feitas na vida, as primeiras leituras que realmente marcam, aquelas leituras que são qualificadas como leituras de formação, são difíceis de se abandonar.

Primeiras leituras, leituras de formação, chamem como quiserem, essas que nos afetam de tal maneira que levamos anos para digerir. Porque pra quem tem essa pretensão de escrita, elas não são apenas responsáveis pelo gosto norteador das leituras posteriores; essas leituras de formação meio que encarnam na nossa escrita. Porque, afinal, é partir delas que começamos, são a matéria prima do nosso fazer. Ou o instrumento do fazer. Como a criança que imita frases ou expressões dos adultos, mesmo que não entenda muito bem o sentido daquelas frases; até que a criança seja capaz de formar suas próprias frases, sua própria linha de pensamento.

Mas é possível se livrar realmente dessas falas? Não ecoam lá no fundo?

Porque, afinal, a criança não só imita o modo de falar, imita também os assuntos, aquilo que os adultos falam. E se livrar dos assuntos, acho, é mais penoso do que se livrar da forma de falar. Como alguma coisa que gruda, como uma geleia grudenta daquele conto "Hereditário" do Amilcar Bettega.

Em alguns momentos me sinto meio que obsediado por aquelas primeiras leituras, pelas leituras de formação; mesmo que o esforço de rejeição seja forte; mesmo que em tese meus argumentos e ideias tenham superado aquilo que aquelas leituras impingiram. É difícil se livrar delas. Não falo nem dos maneirismo, ou cacoetes de linguagem, numa imitação de estilo daqueles autores que carregava debaixo do braço, porque esse tipo de imitação talvez seja por demais evidente e fácil de superar; ou pelo menos aparentemente fácil. Falo de um outro vício, dessas ideazinhas, do hábito dos personagem por uma certa postura reflexiva, um certo afastamento à realidade, um ímpeto para questionar, entender suas razões de ser, de estar no mundo, essas bobagens, essa veia pseudo-metafísica, pseudo-existencialista, com seus problemas típicos: liberdade, verdade subjetiva, solidão, esses tipos sem importância buscando razões para encontrar sua importância nesse mundo sem razão e sem importância.

A construção desses tipos, sempre se dá de dentro para fora, alguma coisa que flui de uma espécie de centro de abertura desse personagem, do núcleo da personagem; com um que de defeito e vai engolindo tudo ao redor, questionamento à medida que alarga, que expande, feito um vazamento, vai alagando tudo, desconstruindo ideias, colocando dúvidas, vai dissolvendo as coisas concretas, tornando tudo pastoso, líquido, dissolvendo tijolos, pedras, dissolvendo o esqueleto do próprio personagem. E fica só um grande núcleo, essa voz do personagem, falando tanto que não diz nada, falando no centro de um grande oco, esvaziando o próprio sentido das palavras, e fica só esse desespero sem saída, ruminando, ruminando; e porque o personagem já engoliu tudo e fica sem alteridade, fica tudo igual e vazio, um personagem escorrendo por todos os lados, igual por todos os lados, sem distinção, e que no fim das contas, sem encontrar onde se reconhecer, se apega ao silêncio como última saída de alteridade, e eu, me apego ao silêncio dessa personagem e também me calo.

Cansei de personagens que pensam demais.

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