07/06/2011

amor é onde nós nunca estivemos: [n° 1 obviedades]

Photographed by John Degotardi Jr.

Se calaram sob as cobertas. A luz do abajur caía fraca sobre o quarto. Então ele começou a falar de um bazar onde havia uma besta de plástico, meia dúzia de flechas pretas com borrachinhas vermelhas na ponta, dessas que grudavam na porta da geladeira, em vidro plano, metal liso. Depois da escola,  passava na frente do bazar, para constatar que a besta permanecia intocável, no alto da prateleira, lacrada, na caixa. Se alguém comprasse aquela besta antes dele seria terrível. A moça dos olhos azuis disse que não podia reservar. 

Tinha uns seis anos na época e lhe pareceu que, dentro daquela caixa, a besta, meia dúzia de flechas, havia alguma coisa a ser atingida (por ele), exatamente ali (anos depois, quando essa sensação voltou, ele poderia chamar de felicidade o ponto a ser atingido, e mais tarde ainda, embora nunca tenha entendido completamente, intuía que não tinha nada a ver com o alvo, e sim com o mirar, mesmo que não houvesse chances), mas aos seis anos era nítido essa ilusão de que a felicidade estava materializada exatamente ali, na besta, meia dúzia de setas com borrachinha vermelha. Precisava ter aquela besta, não havia escolha. 

Ele disse que esperou o mês todo até que sua mãe pudesse comprar a besta. E aquele movimento da moça escalando a escada e descendo com a caixa, que ele não deixou embrulhar e abriu ali mesmo, de fora da loja, arrancando o plástico que brilhava debaixo do sol, o cheiro de brinquedo novo, o cheiro borrachinhas vermelhas e o primeiro tiro foi na porta da loja, isso ele não esqueceu. E foi a primeira vez que alguma coisa que ele desejava de verdade, esperava, aconteceu de verdade. 

Dormiu com a besta ao lado da cama e no dia seguinte bombardeou a geladeira, janelas de metal, paredes, guarda-roupas. 

Onde é a cozinha, era uma varanda, ele disse. E ao lado ficava um lote vago, sem a casa que tem hoje, era só pé de mamono e branquiária alta. Então eu cheguei na beira da varanda, ele disse, fez uma pausa: - e joguei tudo lá. 

Ela não disse nada. 

Nunca entendi por que fiz aquilo, eu queria tanto aquela besta. 

Mas e depois? 

Eu não me lembro muito bem, ele disse, sei que umas semanas depois, sabe-se lá quantos, uns caras tavam andando lá dentro do lote. Eu lembro que cheguei na cerca e perguntei: “ei, cêis num viu uma besta e umas flechinhas aí não?”, “não, não vi não”. É a última coisa que eu lembro. 

Ela se arrastou na cama e se encostou nele, apenas respirando. Ele deu-lhe um beijo na testa e disse que ia fumar e logo voltava. Mas ele precisava apenas respirar um pouco. Por saber, que no fim das contas, a maioria das coisas que haviam conversado, eram dois monólogos, paralelos, se esbarrando aqui ou ali. E ele não fazia a mínima ideia de como resolver isso, mas por hora, bastava chegar a janela, acender um cigarro e respirar um pouco, sabendo que a noite ficaria cada vez mais fria. E talvez ele enfiasse duas meias nos pés essa noite.

14°C ontem?, ele perguntou ao voltar para o quarto.

Ela cochilava. Abriu os olhos e perguntou ou disse alguma coisa, e ele não entendeu. Ele apenas se deitou, ouvindo ela respirar, e assim estava bom, pensou por um segundo, mas logo a sensação se dissipou, feito um plugzinho miúdo que se soltasse, não conseguia parar de pensar no motivo de jogar aquela maldita besta fora. E não seria dessa vez que entenderia.

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