O Antônio Lalá era bem surdo. Morava
três casas pra baixo da nossa casa. Dava pra saber o
que ele tava assistindo pelo barulho da televisão.
Não sei por que, mas o Antônio Lalá tava querendo
vender a televisão. Era colorida. E a gente não tinha televisão colorida.
A lá de casa era miúda e redonda. E a grama dos campos era cinza. O Pica-Pau era cinza, o He-Man era cinza. Tudo quanto é coisa era cinza naquele diabo de televisão.
Eu devia
ter uns quatro ou cinco anos. E fui com a minha mãe até a casa do Antônio Lalá.
"Vai comprar mesmo?", perguntou o Antônio Lalá, naquele tom de voz elevadíssimo. "Olha, é uma beleza de televisão!".
Eu olhava na cara colorida do Cid Moreira e ficava até meio hipnotizado.
"Eu sei, Seu Antônio", disse minha mãe.
"Hein?".
"Parece boa mesmo!", minha mãe gritou.
"É um colosso!", disse, e lascou um tapa por cima da televisão, para ressaltar a qualidade do produto.
"Mas eu tenho que esperar o Décimo Terceiro chegar, seu Antônio".
"Esperar quem?".
"O Décimo Terceiro!".
“Ah,
sim!”, disse o Antônio Lalá: “O Décimo Terceiro. E quando ele vem?”.
"Ainda não sei".
E o tal
do Décimo Terceiro me pareceu um senhor de barba. Algum tipo de autoridade que operava
milagres. Vagando de lugar em lugar resolvendo negócios. Um funcionário que despachava. Liberava.
Autorizava. Negócios. Emitia cheques cheios de cifras que eu não entendia. Negócios. Mandava vender e comprar. Negócios.
Mas o Sr.
Décimo Terceiro era meio enrolado, ao que parece. Por causa do jeito
que a minha mãe falava dele, o tom de voz. Praguejando junto das
amigas na cozinha de casa, fumando e bebendo café.
"Será que ele vai demorar a sair?", disse uma das amigas da minha mãe.
Eu pensei comigo que o Sr. Décimo Terceiro era daquelas pessoas que demoravam demais pra se arrumar. Trocava uma roupa atrás da outra. Penteava e despenteava o cabelo. Perguntava à mulher como é que estava a calça. Se o sapato tava combinando. Um homem muito vaidoso.
Sempre demorava. E não foram poucas vezes que minha mãe e as amigas ficaram muito irritadas com a demora do Sr. Décimo Terceiro. Soltavam uns palavrões contra um tal de Estado, noutras, contra um tal
de Newton Cardoso. Deviam ser chefes do Sr. Décimo Terceiro. Estado,
Newton Cardoso. E uma tal de Sra. Primeira Parcela, provavelmente esposa do Sr. Décimo Terceiro. E duas irmãs pequenas, pelo o que entendi, que se chamavam Segunda e Terceira Parcela. Eu ficava de lado com a cabeça embaralhada. Eram figuras tão misteriosas pra mim. Nunca os tinha
visto! E essa turma parecia a turma mais importante do mundo pra minha mãe e as amigas professoras.
Estado. Newton Cardoso. Décimo Terceiro. Primeira Parcela. Estado. Elas repetiam e repetiam, como se estivessem evocando santidades.
Da última
vez que o Sr. Décimo Terceiro tinha vindo, embora não o tenha visto,
ganhei um bonequinho do Comandos em Ação. E foi por causa do Sr. Décimo
Terceiro que a gente pagou um táxis e foi até Lavras, e encheu o
carrinho de compras, tomou sorvete e depois encheu a geladeira de danone. O tal do Sr. Décimo Terceiro era um homem muito bom. O Sr.
Décimo Terceiro deixava minha mãe muito feliz. Agradava muito minha
mãe. Pensei comigo, será que meu pai não tinha ciúmes? Afinal, minha mãe
só falava do Sr. Décimo Terceiro. A alegria dela parecia depender
da chegada do Sr. Décimo Terceiro. Como se o Sr. Décimo Terceiro fosse um namorado antigo, que havia lhe partido o coração em outros tempos, e depois de anos, tentava reatar os laços. Confesso que eu ficava meio confuso às vezes. Porque também estava muito ansioso pela
chegada do Sr. Décimo Terceiro. Não aguentava mais o Chapolin Colorado descolorido.
No fim
das contas, pelo pouco que eu entendi, a vinda do Sr. Décimo
Terceiro dependia da boa vontade do Sr. Estado, e do Sr. Newton
Cardoso, e talvez da liberação da esposa, a Sra. Primeira Parcela. Lembro que me subiu um arrepio na nuca. Não entendia tantas burocracias. E pensei comigo: e se o Sr. Estado e o Sr. Newton Cardoso estivessem mal-humorados? E se a Sra. Primeira Parcela ficasse com ciúmes da minha mãe? Enfim, fosse qual fosse o motivo: e se o Sr. Décimo Terceiro não viesse?
Seria uma
tristeza de um cinza sem fim.
Passei a tarde jogando bola ali perto do Hospital. Depois, vagando por
lotes vazios, derrubando latas de óleo com pedradas. No fim do dia,
já na rua, antes de entrar em casa, ouvi a voz do seu Antônio
Lalá. Entrei correndo. Ele e meu pai estavam ajeitando a televisão
na estande. Então eu soube que tinha corrido tudo certo. O Sr.
Décimo Terceiro tinha passado mais uma vez.
Infelizmente, como das outras vezes, eu não o tinha visto. Tudo bem. Quando o Cavalo de Fogo surgiu roxo azulado na tela, correndo com os olhos vesgos, eu fui me esquecendo daquilo tudo.