28/04/2011

Conversa na escada


Eu ouvia o barulho de uma lata batendo lá fora e sabia que ele tinha chegado. Eu saltava correndo da cama, com os cabelos amarrotados e os olhos remelentos; ali na cozinha, me deparava com o pedreiro, enfiado numa bermuda jeans desfiada na extremidade, suja de pó de tijolo, uma camiseta da copa de 90 com as letras apagadas, um relógio de pulseira prateada, frouxo no punho, e com um boné italiano (que caberia muito bem na cabeça do Gianfrancesco Guarnieri) enfiado na cabeça.

Ele falava muito, e muito alto, era meio surdo, acho. E quando me via ali descalço na cozinha, soltava a voz: “Tá danado. Assim não vai!”. Depois, perguntava, cadê o café, cadê o cigarro, cadê teu pai, e a gente se sentava na escada, da porta da cozinha, pra conversar sobre qualquer coisa. 

Tinha vezes que era a atuação do Cruzeiro (Nonato, Paulo Roberto, Marco Antônio Boiadeiro), noutras, um filme da Tela Quente (fosse terça), do Domingo Maior (fosse segunda). Mas quando me perguntava da novela, ficava tudo obscuro, e eu apenas ouvia as observações que ele fazia sobre a falta de dignidade de uma personagem, sobre a reviravolta no enredo, sobre a beleza das pernas da Letícia Spiller.

Então ele me dava um tapinha nas costa e se levantava, puxava a bermuda escapando do quadril, levantava o boné, coçava a cabeça, e ia no rumo do porão, buscar o saco de cimento. Era aí que eu ia até o banheiro e pegava aquela roupa surrada, entulhada no canto, que tinha usado no dia anterior. Eu tinha uns 16 anos nessa época.

Quando eu voltava ao quintal, o saco de cimento estava em pé, perto de uma mancha cinzenta de cimento ressecado. À esquerda, estava o pedreiro. Empunhava a peneira, girando, sobre o carrinho de mão. Eu descia naquele rumo e já assumia a pá. O assunto retornava no ponto que tinha parado. Comentava que tal personagem da novela era muito safado, e que outro era muito bôbo, e pra tudo concluía que o mundo tava perdido, e naquele ritmo, quase sem perceber, os dois carrinhos de areia coada estavam ao lado do saco de cimento.

Daí ele se sentava na escada e continuava falando, enquanto eu despejava um saco de cal, quatro latas de cimento, e sovava a massa, debaixo do sol. Mas logo eu cometia algum equívoco e ele fazia questão de ser muito cuidadoso. Então brandava da escada que não era assim, não. Depois levantava, acochava a bermuda na cintura e vinha arrastando os chinelos, mostrar o modo correto de fazer.

Tomava a enxada da minha mão e ia operando com precisão o instrumento, me alertando com uma didática efusiva: “Ó, é inhanssim. Inhanssim que tem de conduzi a enxada. Se não for inhanssim, fica toda vida e não vira nada. É três cambotas na masseira, inhanssim, ó!”. Aquele monte de pó desigual, empelotado, aos poucos se tornava uma mistura uniforme, num tom cinza claro, chamuscada de branco.

Então ele dava uma pancada no meio da masseira, abria uma cratera, e eu pensava num vulcão em miniatura. Ele ficava de lado, apoiado na enxada, enquanto eu trazia a água numa lata e despejava naquele buraco. Três latas e ele começava a misturar.

A água cinzenta ameaçava escapar pelas bordas, arrebentar, conforme ele ia distribuindo as enxadadas, mas nunca escapava. O sol reluzia no relógio prateado, girando no pulso, enquanto a enxada rapava aquela pasta de um lado para outro no chão.

Estava pronto. Ele dava uma pancada e a enxada parava de pé, erguida, no meio da masseira. Eu preparava a lata, enquanto ele saia no rumo do andaime, pra então puxar a bermuda e escalar até onde a parede tinha interrompido.

Ouvia o barulho da colher rapando a desempenadeira, e ele começando a cantar uma canção do Amado Batista, na maior altura. Mas logo soltava um assovio agudíssimo, e eu compreendia que era o sinal pra que eu jogasse os tijolos.

***
Quando a gente parou pra tomar café, por volta das nove horas, e eu já tinha carregado grande parte daquela massa até o caixote, subido a escada com a lata cheia de massa nas costas, já tinha jogado os tijolos, dois a dois, que ele pegou e ajeitou no canto do andaime; quando a gente se sentou naquela escada, pra comer um pão com manteiga, é que ele veio me falar de uma mulher.

Não era a mulher dele, a mãe da filha que ele tinha, era uma outra. Uma mulher que ele tinha namorado quando era rapaz novo. Eu era assim do teu porte, ele disse. Namorei muito tempo com ela, quase casei, ele disse. Ele morava em outra cidade na época, trabalhava numa empreiteira e ganhava bem. Gostava de andar bem arrumado, ele disse. Hoje ela é casada, com aquele cara enjoado que trabalha na prefeitura, sabe?

Sim, eu sabia quem era.

Então ele disse que eles se davam bem demais. Que nunca tinha encostado em outra mulher no tempo que teve com ela. Nessa hora eu ri, mas ele ficou sério e jurou por Deus que era verdade. E não era porque não tivesse tentação, ele disse, tinha muita mulher por aí naquela época, mas, ele disse, não tinha a mínima vontade de encostar noutra mulher, entende?

Eu não entendia.

Continuou a história dizendo que tinha sido uma das melhores épocas da vida dele, que tava satisfeito demais com aquilo. Já tinha comprado um lote, e vinha juntando um dinheiro pra construir. Que o pai da mulher fazia o maior gosto, que tava tudo mais ou menos encaminhado. Então, ele disse, um dia, quando foi deixar ela em casa, na hora de despedir, falou pra ela que tinha pensado melhor nas coisas e não queria mais nada com ela. A mulher quase teve um troço na hora, enfiou a mão na cara dele e perguntou quem era a outra, mas não tinha outra, não tinha nada.

Eu fiquei sem entender. Perguntei por que ele tinha feito aquilo. Afinal, na minha cabeça, essa antiga namorada dele, era muito mais ajeitada e gente boa que essa mulher que ele tava.

Ele disse o seguinte: “Cê é novo ainda, não entende desses trem. Mas a gente têm mania de largar os trem que a gente mais gosta, e sabe por que? Pra não estragar. É burrice, mas a gente é assim”.

Não entendi o que ele quis dizer com isso.

“Mas não arrepende?”, eu perguntei.

“Arrependo, e muito. Mas não dá pra saber como é que é que ia ser. Vai saber, e não pode ficar garrado nesses trem, senão o caboclo bate tampinha”.

Enfiei mais um pedaço de pão na boca e me calei. Daí, ele disse:

“Mas tem que abrir o olho, a gente é medroso, e burro e acaba correndo pro lado errado”.

Duas semanas depois os dois cômodos estavam prontos, com tinta fresca nas paredes. Um deles seria meu quarto. O pedreiro não voltou mais. 

Mas, ainda o vejo por aí, e sempre que me vê, já de longe, ele diz: “Tá danado. Assim não vai!”. Às vezes está empurrando um carrinho de mão com as ferramentas, às vezes se equilibrando num andaime, erguendo um muro de frente a um lote, revirando uma masseira, operando a enxada com precisão. E toda vez que o encontro me lembro da conversa na escada.

Hoje, embora entenda mais ou menos o que ele me disse, ainda assim, sei que tem algo ali que me escapa. Talvez nunca compreenda. Mas, enfim, como ele mesmo disse, a gente é burro. Deve ser por isso.

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3 comentários:

  1. Maravilhoso! Lembrei-me de algumas coisas, arrepiei, ri, chorei...

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  2. Eu quis postar sobre algo assim na minha página e você me deu uma idéia. Cheers.

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  3. Não sei se é mais fácil, ou se passa a sensação de assim ser, mas estragar por conta própria salva do futuro que não podemos controlar. Muito boa essa crônica!

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oi.